• Nenhum resultado encontrado

O Dia L e o Dia E: duas situações emblemáticas na pesquisa de campo

5 OS PERCURSOS DA TRILHA DA PESQUISA DE CAMPO

5.2 Segundo percurso da trilha: aproximação ao campo como pesquisadora

5.2.1 O Dia L e o Dia E: duas situações emblemáticas na pesquisa de campo

O Dia L e o Dia E se configuraram, em minha opinião, como duas situações emblemáticas no percurso da trilha da pesquisa de campo e na própria história de Boa Vista do Tupim.

O Dia L é a abreviação de Dia pela Leitura. No dia 2 de dezembro de 2011 foi armado um grande palanque na praça de Boa Vista do Tupim, para que os estudantes pudessem

compartilhar com a comunidade as práticas de leitura vivenciadas nos diversos Projetos Institucionais de Leitura, realizados nas escolas da rede de ensino.

Foto 17 – Vespasiano, Fernando e Thaís no palanque com professores e estudantes

Fonte: Acervo Particular

Foto 18 – Estudantes de Boa Vista do Tupim lendo para a comunidade

Fonte: Acervo Particular

Além do palanque, as escolas organizaram barraquinhas ao redor da praça para expor o trabalho dos estudantes. Também aconteceram outras atividades como:

 Tenda de narração de histórias para as pessoas da comunidade;

 Cadastramento de leitores na Biblioteca Municipal para empréstimos de livros;  Publicação de uma Revista com artigos de educadores da rede, sobre a formação

leitora;

 Lançamento de um DVD com indicações literárias realizadas por pais, professores, alunos, dirigentes escolares e funcionários.

 Apresentações de teatro do grupo Arte Cidadã, do Município de Boa Vista do Tupim.

 Stand de vendas de livros;

 Seminário Intermunicipal de Leitura, destinado aos professores e coordenadores pedagógicos da região, interessados em discutir as práticas de fomento à formação de leitores. Neste seminário, os educadores de Boa Vista do Tupim realizaram relatos de experiência e destacaram a realização dos Projetos Institucionais de Leitura.

A mobilização da comunidade em torno das atividades do Dia pela Leitura era impressionante. A praça da cidade estava completamente tomada pelos alunos e a programação no palanque era intensa. Crianças de todas as idades liam histórias e recitavam poesias. O Dia pela Leitura me pareceu uma situação emblemática: as crianças tomando o lugar geralmente ocupado pelos políticos em campanhas eleitorais, e compartilhando com a comunidade o que aprenderam na escola.

Neste dia observei as pessoas da comunidade que apreciavam atentamente o que acontecia na praça. Comerciantes, funcionários públicos, vendedores ambulantes tentavam entender o que estava acontecendo e se deixaram tocar pelos encantamentos, ou até mesmo pelos estranhamentos, produzidos naquela situação. Alguns se aproximavam e perguntavam o que estava acontecendo, outros queriam participar ou manuseavam as produções dos estudantes e ouviam as histórias lidas no palanque. Esta iniciativa certamente provocou deslocamentos no habitus daquele grupo social. O Dia L foi mais uma iniciativa dos educadores de Boa Vista do Tupim que ressignificou o modo de conceber o espaço público e o valor atribuído à leitura no contexto social.

A segunda situação que presenciei ao longo da trilha da pesquisa de campo foi o Dia E, também uma abreviação, só que para Dia da Educação. O Dia E é uma das atividades da Campanha Chapada pela Educação40, realizada desde 2004, primeiro ano de campanha eleitoral vivenciada pelo Projeto Chapada.

O último Dia E41, em Boa Vista do Tupim, foi realizado no dia 14 de setembro de 2012 e deu origem ao Documento Final (ANEXO 1) com a sistematização das propostas para a próxima gestão, consideradas prioritárias para melhoria da qualidade da educação no município. A leitura do referido documento revela o quanto o seu conteúdo se distancia dos discursos eleitoreiros, porque sintetiza as necessidades reais e possíveis de uma comunidade, que foram definidas no espaço público, pelas pessoas interessadas na educação como um bem público

Em Boa Vista do Tupim o evento foi coordenado pela professora Cybele Amado e transcorreu tranquilamente, como em todos os outros municípios, porque uma das regras, definidas desde o Lançamento da Campanha, assegura que ninguém poderia se queixar do que não foi realizado ou do que não está bom. Só estava autorizado a se manifestar quem tivesse propostas a apresentar. Os candidatos também não podiam, em hipótese alguma, utilizar aquele espaço para discursos. Todos acataram as regras determinadas e isso foi realmente surpreendente.

Foto 19 – Cybele Amado coordenando o Dia E de Boa Vista do Tupim

Fonte: Acervo Particular

40 Os objetivos e etapas da Campanha Chapada pela Educação já foram apresentados no Capítulo 4. 41 O DIA E acontece a cada quatro anos, sempre no segundo semestre do ano eleitoral em que são eleitos

Foto 20 – Comunidade presente no Dia E de Boa Vista do Tupim

Fonte: Acervo Particular

Foto 21 – Estudantes apresentando suas propostas no Dia E

Fonte: Acervo Particular

Esta ação pode ser compreendida como uma situação emblemática na luta pela requalificação da ordem política na região da Chapada Diamantina, fortemente marcada por uma lógica coronelista. Se, por um lado, não há como garantir a superação dessa lógica em sua plenitude, por outro lado, a reunião de candidatos à Câmara de Vereadores e à Prefeitura, para que assumam compromissos públicos com a sociedade, pode ser visto como um deslocamento no habitus, no sentido de construir outra lógica para a política local.

Essa iniciativa possui uma dimensão simbólica que é, em si, importante, pois procura mostrar a todos, sociedade civil e governantes, o fundamento da ação política como uma negociação, que estabelece metas e responsabilidades, o que não significa, no entanto, a obtenção de resultados em todos os aspectos levantados. Tomar conhecimento do que a comunidade deseja para a educação do município é uma conquista imensa do Projeto Chapada.

5.2.2 Observação participante da reunião de avaliação dos resultados de leitura e produção textual

A primeira situação que acompanhei como pesquisadora foi uma reunião de avaliação dos resultados das aprendizagens dos alunos do 5º ano, realizada com a Professora Maria Aparecida da Silveira, uma das Coordenadoras Pedagógicas do ICEP no ano de 2012, o Secretário de Educação e a Equipe Técnica da Secretaria de Educação.

A razão pela qual esta reunião foi agendada foi o resultado preliminar, divulgado pelo INEP, em 04 de abril de 2012, da Proficiência em Língua Portuguesa e Matemática na Prova Brasil, realizada em outubro de 2011. Identificou-se uma queda significativa no rendimento dos alunos do 5º ano, de acordo com a Tabela 6, o que representaria, consequentemente, uma drástica diminuição do IDEB do município.

Tabela 6 – Resultados da Prova Brasil entre 2005 e 2011

Boa Vista do Tupim5º ano 2005 2007 2009 2011

Proficiência em Língua Portuguesa 134,20 187,16 210,82 162,34 Proficiência em Matemática 148,60 206,51 240,78 176,83 Fonte: Inep, Ministério da Educação

Este fato provocou várias reflexões no município e na Rede Chapada, o que resultou, inclusive, na interposição de recurso junto ao INEP/MEC, realizado pela Secretaria Municipal de Educação, no qual os resultados foram contestados, alegando-se a

“[...] regularidade na progressão do desempenho aferido ao longo destes anos, (...) e os esforços empreendidos pelo município na concretização de ações efetivas com vistas à qualificação do nosso quadro de educadores e à melhoria das aprendizagens dos estudantes que frequentam nossas Escolas.”

Apesar desta defesa, o Secretário de Educação e a Equipe Técnica assumiram o desafio de compreender o que havia acontecido e, na reunião com a Coordenação Pedagógica do ICEP, analisaram minuciosamente os resultados da avaliação interna de Leitura e Produção de Texto, orientada pelo ICEP e realizada pelos profissionais da rede municipal. Destaco um momento da reunião no qual a Coordenadora Pedagógica do ICEP e a Coordenadora do Fundamental I analisam os resultados:

Coordenadora Pedagógica ICEP: Voltando agora aqui para as competências de leitura e de escrita. O que é que temos que preocupa: temos 20% apenas de acerto no estabelecimento de relações e inferências. O rendimento dos alunos cai muito de uma competência para outra: localização de informação explícita está 60%, identificação do assunto 70%, estabelecimento de relação cai para 20%, identificação do fato diferenciado a do comentário do autor cai para 40%. Então, temos aqui uma dificuldade grande justamente naquilo que é a compreensão de textos mais complexos.

Coordenadora Geral do Fundamental I: Eu acho que a questão é mesmo essa, da complexidade dos textos que vão chegando... Como é que se refina esse critério da seleção desses textos, das questões que se propõem, de como que os professores ensinam de fato os meninos a ler, tendo em vista essas habilidades de leitura que precisam ser desenvolvidas. Acho que aí é que tem ainda um problema.

A compreensão de textos mais complexos foi identificada como o principal desafio do município em Língua Portuguesa. Vale destacar o envolvimento de todos na discussão sobre os aspectos pedagógicos e na tomada de decisões acerca dos possíveis caminhos. A responsabilidade pelos resultados e pelas ações futuras não estava depositada em um único ator do processo.

Naquele momento ficou evidente a corresponsabilidade assumida por todos e a disponibilidade em tomar aquele problema como uma possibilidade de aprendizagem. Tanto o ICEP, como o Secretário de Educação e a Equipe Técnica se corresponsabilizaram pela situação apresentada e definiram alguns encaminhamentos. O diálogo que destaco a seguir evidencia essa parceria. O debate gira em torno das reflexões da Coordenadora Pedagógica do ICEP, a partir da observação de uma aula de leitura, realizada em uma das escolas do município, alguns instantes antes da referida reunião de avaliação.

Coordenadora Pedagógica ICEP: A questão que precisamos pensar é: será que a coordenadora, que é uma boa coordenadora, teria

condições de ver os problemas que nós vimos no acompanhamento desta aula de leitura?

Secretário de Educação: É ... Isso é importante, se ela percebeu isso que vocês perceberam. Ela não percebeu o que vocês perceberam? Coordenadora Pedagógica ICEP: Talvez não da forma como nós percebemos, ela identificava problemas, não exatamente quais os problemas e nem como ajudar o professor.

Secretário de Educação: Mas assim, aqui tem duas questões: Uma é identificar o problema e não saber qual é o problema, a outra é identificar o problema errado. Ela não identificou o problema, supostamente certo, que é o problema que vocês observaram. Quando ela se pronuncia que tem o problema, qual é o problema que ela verificou? Existe o problema, mas ela não sabe qual é o problema? Coordenadora Pedagógica ICEP: Eu diria que ela não sabe identificar o problema, essa é a questão, porque cada um vê o que suas experiências profissionais já lhe permitem ver. Thaís, como é que podemos ajudar esse coordenador a ver isso?

Coordenadora Geral do Fundamental I: Penso que a ideia é pegar esses materiais que eles estão sistematizando e abrir espaços e tempos dentro de nossos encontros para discutir. Eu estou trabalhando produção de texto, mas eu vou abrir uma hora para trazer o material de uma aula de leitura para discutir, para tematizar, enfim, trazer um pouco desse olhar e contribuições que possam melhorar o trabalho. É um pouco isso do que vocês estão falando e estou tomando nota de outras sugestões que vão aparecendo aqui também.

Coordenadora Pedagógica ICEP: Esse olhar é fundamental. O que é que eu já consigo ver. Muitas vezes o coordenador está tão imbricado com a produção que não consegue ver o que não está bom. Teve uma coisa que elas até comentaram muito, acharam até bom não estarem preparadas para receber a gente. Porque fizeram uma aula que era uma aula planejada, não era uma aula sofisticada, que não fazia parte do cotidiano da escola. Era uma aula, que já estava ali. Elas comentaram isso positivamente. A professora até comentou: “A gente fica com tanto medo de vocês virem e quando vocês vieram e conversaram tudo isso com a gente, a gente acha bom”. E eu então eu disse, é gente, vocês é que nos ajudam quando deixam a gente entrar na sala, porque a gente fica sabendo o que está acontecendo e o que vocês já sabem fazer. Enfim, eu acho que o foco pode ser mesmo a supervisão do trabalho com leitura.

A reflexão em torno dos problemas enfrentados pelos professores se configurava como uma questão a ser enfrentada por toda a cadeia de formação continuada. O foco na sala de aula parecia ser uma determinação fundamental da qualificação das ações formativas. A dificuldade dos alunos em compreender textos mais complexos se transformou em um desafio para os professores, para os coordenadores pedagógicos que formavam os

professores, para a Coordenadora Geral do Fundamental I, que formava os coordenadores pedagógicos, e para a Coordenadora Pedagógica do ICEP, que formava a equipe técnica. Tudo isso transversalizado pelo olhar atento do Secretário de Educação, que problematizava a situação e legitimava as decisões.

Ao longo da reunião de avaliação também surgiu uma questão específica com os professores do Ciclo I (1º, 2º e 3º anos do Fundamental I) que, de acordo com o relato da Coordenadora Pedagógica do Fundamental I, também demonstravam certa dificuldade com as situações didáticas de leitura de textos mais complexos. Neste ciclo, o investimento maior era na construção do sistema de escrita e menos na compreensão de textos, o que configurava um grave problema.

A partir desta demanda, identifiquei uma possibilidade de verticalizar a investigação acerca dos deslocamentos que ocorrem ao longo do processo experiencial de formação continuada, propondo alguns encontros formativos com professores do Ciclo I de Boa Vista do Tupim.