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3 O CIDADÃO NA REDE: SER POLÍTICO, SOCIAL E CULTURAL

3.4 Os desafios do direito frente às redes digitais e os novos atores sociais

O conflito sempre esteve presente na sociedade, desde os primórdios até os dias atuais. Pode se desenvolver por uma série de motivos, que vão desde uma disputa por território até uma discussão que tem como base o capital cognitivo. No entanto, as consequências (e não as causas) são os mecanismos mais essenciais no âmbito social, pois é por meio delas que novas concepções são construídas, levando a sociedade a um processo crescente de evolução. É possível comprovar isso pelos acontecimentos históricos marcantes dos séculos passados, como as Revoluções Inglesa, Norte- americana e Francesa, as Revoluções Industriais, as duas grandes guerras mundiais e a Guerra Fria, que alteraram significativamente as nações e suas concepções tradicionais, construindo episódios e documentos indispensáveis para o crescimento social, como a Declaração dos Povos da Virgínia, a Declaração dos direitos do homem e do cidadão, o nascimento da Organização das Nações Unidas (ONU), o desenvolvimento industrial, espacial e tecnológico, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, entre outros.

E não são apenas esses grandes eventos que geram modificações político- sociais, os conflitos internos também possuem esse poder de alteração. A luta pelo processo de redemocratização é um dos maiores exemplos da história brasileira. A sociedade precisa de uma pólvora que a motive e a retire da sua zona de passividade

95 Conforme pesquisa do Comitê Gestor da Internet no Brasil (2015), dentre os indivíduos com acesso à

internet (55% da população brasileira), apenas 50% são usuários do governo eletrônico, sendo os serviços ligados à educação pública a atividade mais pesquisada (índice de 24%).

para que lute em prol de novas mudanças, novas condições econômico-sociais e porque não dizer, novas esperanças.

Para Piaget (1977, p. 23), o conflito pode ser caracterizado como um processo de desiquilíbrio social, em que as pessoas atuam em acordo ou desacordo umas com as outras, gerando novas relações ou novas formas de conhecimento. “Os desequilíbrios obrigam um sujeito a ultrapassar seu estado atual e procurar seja o que for em direções novas”. Isto é, incentiva os sujeitos a se movimentarem em busca de novos horizontes. Contudo, é preciso observar que nem sempre os conflitos impulsionam ações positivas, muitas vezes eles trazem devastações econômicas e sociais de grande amplitude, sem nenhum tipo de retorno benéfico. E em outras situações, permanecem na mesma condição anterior ao conflito. O processo de reestruturação social não é algo simples ou que ocorre de uma hora para outra, por isso a dificuldade em serem estabelecidas mudanças significativas.

Para Campos (2013, p. 170), as práticas coletivas virtuais são na atualidade, os maiores motores que impulsionam conflitos, pois as interações diretas entre os usuários permitem a convergência e a divergência sobre cada um dos aspectos ou objetos que são compartilhados na rede. “Indivíduos diferentes, com experiências e vivências diversas, quando motivados a cooperar criam choques de opiniões e reavaliação constante das proposições apresentadas”. E isso acaba suscitando um movimento evolutivo dos pontos de vista e dos próprios processos coletivos, pois se toda a participação caminhar para o consenso imediato, sem que haja qualquer tipo de discussão ou reflexão, a tendência será uma “produção pobre de sentidos e abordagens”.

O desafio do direito, nesse contexto, é possibilitar não só uma resposta ou uma solução adequada para esses conflitos que permeiam as sociedades atuais, mas também a proteção e garantia dos direitos humanos e fundamentais, bem como um controle ou modulação da dicotomia que existe entre liberdade e segurança, pois ao mesmo tempo em que o Estado precisa proteger a liberdade de expressão, deve também garantir o direito à privacidade e a segurança nacional.

Assim, denota-se, no âmbito do que foi apresentado no decorrer da pesquisa, a existência de três desafios principais que o direito deve enfrentar no contexto das novas tecnologias de informação e comunicação: O primeiro é a garantia do acesso de todos os indivíduos às redes digitais. O segundo volta-se para a regulação e limitação da vigilância

realizada nas redes. E o terceiro está ligado ao oferecimento de uma resposta adequada para as demandas sociais, com a efetivação dos direitos de cidadania.

Os dois primeiros são questões que já estão sendo enfrentadas pelo direito brasileiro, tendo em vista que estão reguladas no Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965), que entrou em vigor em 2014. De acordo com o artigo 4º, inciso I, um dos objetivos do disciplinamento do uso da internet no Brasil é a garantia do acesso de todos à internet, tendo em vista ser essencial para o exercício da cidadania (artigo 7º). Além disso, desde 2011 é considerado um direito humano básico pela Organização das Nações Unidas, conforme Relatório sobre a promoção e a proteção do direito à liberdade de opinião e expressão.

Para Castells (2013, p. 82-84), os países que não estão equipados com plataforma digital têm muito menos probabilidade de passar por movimentos populares em prol da democracia, porque “as redes da internet e de telefonia celular não são apenas ferramentas, mas formas organizacionais, expressões culturais e plataformas específicas para a autonomia política”.

Da mesma forma é o entendimento de Giuseppa Spenillo (2004, p. 251), ao afirmar que a real democracia só pode ser alcançada se os meios para produzir comunicação estiverem ao alcance de todos.

Para que as comunidades populares possam rever o lugar de receptores que lhes tem sido conferido em nossa sociedade e, assim, chegarmos a uma condição de real democracia, em que os elementos necessários para produzir comunicação (e não só consumi-la) estejam realmente a disposição de todos, é preciso empenho dos comunicadores para levar às camadas populares o arsenal de recursos tecnológicos a serviço da comunicação e, mais do que isso, trabalhar em prol de encontrar e fazer serem usados os recursos comunicacionais locais, variados e ricos.

Assim, para que de fato o país possa contar com a participação efetiva de todos os indivíduos é preciso garantir que o acesso se torne de fato universal. O primeiro passo - a elaboração de uma norma jurídica nesse sentido - já foi realizado, resta agora a aplicação de políticas públicas eficazes na efetivação desse direito, especialmente como forma de viabilizar também a proteção de outros direitos constantes no Marco Civil da Internet, como a liberdade de expressão, comunicação e manifestação do pensamento (artigo 3º), que leva a reflexão acerca do segundo desafio.

A Lei 12.965/2014, no artigo 2º, afirma que a liberdade de expressão é um dos fundamentos da disciplina do uso da internet no Brasil. No entanto, existem outros dois elementos que precisam ser contrabalanceados frente à essa liberdade. O primeiro é o direito à privacidade, que também é objeto de proteção do Marco Civil da internet (artigos 3º, 7º e 8º), especialmente em razão da necessidade de regulamentação dos bancos de dados criados por empresas privadas e pelo poder público. Os usuários possuem o direito de não ter seus dados divulgados sem a sua autorização, tampouco tê-los em bancos de dados por período superior àquele disposto na legislação referida (seis meses quando se tratar de provedores de aplicação e um ano quando for provedor de conexão).

O segundo ponto de discussão está ligado a segurança nacional. O rastreamento, controle e vigilância exercido na internet sob a justificativa de combate as ações ilegais e ao terrorismo é uma questão bastante delicada para o direito, pois trabalha com a dicotomia existente entre liberdade e segurança e o ordenamento jurídico precisa proteger ambos os direitos. Dessa forma, tendo em vista que o Marco Civil da Internet busca garantir a liberdade de expressão e o direito à privacidade e não proíbe a criação de banco de dados, apenas exige o respeito à honra, imagem e intimidade das pessoas, se torna um desafio para o direito efetivar de forma conjunta esses três direitos, especialmente em razão do alcance global e da velocidade que as informações possuem no ciberespaço.

E, por fim, o terceiro desafio possui uma amplitude maior, já que não é vinculado somente a esfera da internet, pois as lutas em torno da garantia dos direitos e da cidadania sempre estiveram presentes em nossa história, assim como a cobrança por parte dos grupos sociais para que os poderes oferecessem melhores alternativas para os problemas enfrentados pelas sociedades.

A Constituição Federal promulgada em 05 de outubro de 1988 afirma já no artigo 1° que dentre os fundamentos da República Federativa do Brasil está a defesa da cidadania. Logo após, apresenta como objetivos fundamentais a construção de uma sociedade que seja livre, justa e solidária, a garantia do desenvolvimento nacional, a erradicação da pobreza e da marginalização, a redução das desigualdades sociais e regionais e a promoção do bem de todos, sem qualquer tipo de discriminação. Esses objetivos vão ao encontro dos princípios que regem a democracia e também dos direitos de cidadania.

Seguindo a linha de pensamento de Marshall (1967) ao estabelecer a divisão dos direitos de cidadania em direitos civis, políticos e sociais, é possível perceber que a

Constituição Federal dispôs de um capítulo próprio para cada um desses direitos. Os direitos civis, por exemplo, vêm especificados no título II (direitos e garantias fundamentais), capítulo I, que versa sobre os direitos e deveres individuais e coletivos, partindo no caput, do princípio da igualdade, um dos pilares da cidadania moderna.

No capítulo IV (também do título II) encontram-se os direitos políticos. A parte inicial dispõe sobre as formas de participação popular (plebiscito, referendo e iniciativa popular), tendo em vista que o parágrafo único do artigo 1° da Constituição (1988) afirma que o poder soberano emana do povo, e esse poder será exercido por meio dos representantes eleitos e do próprio povo de forma direta. Em seguida, constam dispositivos que tratam do voto, do alistamento eleitoral, da elegibilidade e ilegibilidade e dos casos de perda ou suspensão dos direitos políticos. E no capítulo V há regulamentações destinadas aos partidos políticos.

Já os direitos sociais constam no capítulo II (título II) e buscam garantir que todos os brasileiros tenham acesso a educação, saúde, alimentação, trabalho, moradia, lazer, segurança, previdência social, proteção da maternidade e da infância e assistência aos desamparados. Em seguida, a Constituição abrange uma série de direitos trabalhistas que devem ser aplicados para todos os trabalhadores urbanos e rurais, além de direitos de associação profissional ou sindical. Destaca-se, ainda, que no capítulo II e no capítulo III do título VIII há uma regulamentação específica acerca da seguridade social e da educação, respectivamente.

E os direitos econômicos, que também fazem parte dos direitos de cidadania, são apresentados no título VII, capítulo I, que trata dos princípios gerais da atividade econômica, quais sejam: soberania nacional, propriedade privada, função social da propriedade, livre concorrência, defesa do consumidor, defesa do meio ambiente, redução das desigualdades sociais e regionais, busca do pleno emprego e tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte.

Contudo, esses não são os únicos direitos de cidadania garantidos. Gilmar Bedin (2002), ao tratar da temática, subdivide os direitos por meio de gerações, em que as três primeiras correspondem a divisão apresentada por Marshall (1967). No entanto, ele afirma existir, de tempos em tempos, uma evolução dos direitos, tendo em vista o processo evolutivo da sociedade. Desta forma, há outras categorias de direitos que também se enquadram nos direitos de cidadania e constam nos textos constitucionais e internacionais atuais.

Os direitos de quarta geração, que englobam os direitos de solidariedade encontram-se dispostos na Constituição Federal, no título VIII, capítulo VI, que trata sobre a proteção do meio ambiente, no capítulo VII que aborda proteção da família, da criança, do adolescente, do jovem e do idoso, e no artigo 4° que visa a autodeterminação dos povos, com base numa política de independência nacional, de não violência e solução pacífica dos conflitos.

E o direito à paz, correspondente a quinta geração de direitos, consta também no artigo 4°, quando no inciso VII o legislador afirma que o país promoverá a defesa da paz nas suas relações internacionais. E também é possível considerar como uma extensão desse direito à paz, a adoção do Brasil a tratados internacionais que versem sobre os direitos humanos, assim como o reconhecimento da jurisdição do Tribunal Penal Internacional e da Corte Interamericana de direitos humanos, que rege as relações estabelecidas na América e tem como fonte legal a Convenção interamericana de direitos humanos (Pacto de San José da Costa Rica), de 1969, pois isso impulsiona o Estado no reconhecimento e garantia desses direitos.

Para Zeifert e Andrighetto (2013, p. 91), a presença desses direitos no texto constitucional demonstra não só a relevância política que possuem, mas também, um avanço na concepção da cidadania. Representam, na verdade, a “proteção institucionalizada ao exercício dos direitos humanos, reconhecidos e formalizados no Estado democrático de direito”.

Com o advento das novas tecnologias, houve uma expansão dos movimentos em torno dessas questões, pois as microesferas públicas formadas a partir das redes incitaram não só a participação dos cidadãos, mas também a movimentação deles, o ativismo e a reivindicação constante do reconhecimento e da indignação pelas situações de violência e afronta aos direitos humanos e fundamentais. Cotidianamente visualizamos essas violações nas redes sociais e sites de informação. Exemplos atuais nesse sentido são os ataques constantes promovidos pelo Estado Islâmico, assim como os protagonizados pelo grupo extremista Boko Haram96.

96 O Boko Haram surgiu em 2002, na cidade de Maiduguri, no Estado de Yobe. Seu principal objetivo é a

criação de um Estado Islâmico na Nigéria e uma de suas maiores atuações foi o sequestro de 276 meninas em 2014, que alcançou repercussão internacional, fazendo com que outros países, como os Estados Unidos, França, Reino Unido e cinco países africanos buscassem a elaboração de uma estratégia para a dissolução do grupo (PALDINI, 2014).

O desafio maior do direito nesse contexto não está em regulamentar a situação, que já possui um respaldo jurídico em documentos nacionais e internacionais e sim estabelecer uma forma capaz de garantir uma aplicação dos direitos conforme as especificidades que cada sociedade carrega97. Para Boaventura de Sousa Santos (2014,

p. 29):

Ao pensamento convencional dos direitos humanos faltam instrumentos teóricos e analíticos que lhe permitam posicionar-se com alguma credibilidade em relação a estes movimentos, e, pior ainda, não considera prioritário fazê-lo. Tende a aplicar genericamente a mesma receita abstrata dos direitos humanos, esperando, dessa forma, que a natureza das ideologias alternativas e universos simbólicos sejam reduzidos a especificidades locais sem nenhum impacto cânone universal dos direitos humanos.

Assim, para poder pensar os direitos humanos para além dessa visão convencional, o autor afirma ser necessário o desenvolvimento de uma concepção contra- hegemônica98 e intercultural dos direitos humanos, capaz de trabalhar sob uma ótica

igualitária no tratamento dos indivíduos. “Se a humanidade é só uma, porque é que há tantos princípios diferentes sobre a dignidade humana e justiça social, todos pretensamente únicos e, por vezes, contraditórios entre si?” (SANTOS, 2014, p. 28).

Essa concepção vai ao encontro da ideia de que os novos atores políticos e sociais compõem uma classe disforme e heterogênea – a multidão, capaz de abarcar as mais diferentes singularidades e especificidades, mas que é ao mesmo tempo composta por seres humanos que precisam do reconhecimento como cidadãos e da proteção dos seus direitos. Se são universais, cabe ao ordenamento jurídico não estabelecer dois pesos e duas medidas na proteção desses direitos e é dever dos próprios indivíduos garantir o valor público e cívico do que é produzido no ciberespaço99, pois são esses valores que

possibilitam benefícios para a sociedade como um todo e é a partir deles que se

97 Para exemplificar situações políticas que corroboram esse pensamento, Santos (2014) cita três

movimentos: os movimentos indígenas latino-americanos, os movimentos dos camponeses na África e na Ásia e os movimentos religiosos islâmicos.

98 “(...) a hegemonia é um feixe de esquemas intelectuais e políticos que são vistos pela maioria das pessoas

(mesmo por muitos dos que são negativamente afetados por ela) como fornecendo o entendimento natural ou único possível da vida social. Por outro lado, a contra-hegemonia resulta de um trabalho organizado de mobilização intelectual e política contra a corrente, destinado a desacreditar os esquemas hegemônicos e fornecer entendimentos alternativos credíveis da vida social” (SANTOS, 2014, p. 33).

99 Para Malini e Antoun (2013, p. 85-86), a globalização “transformou a informação em uma arma, e o Estado,

global ou local, está sempre envolto, pós-modernamente, nas guerras de informação”. Mas não é só o governo que está envolvido, a população também participa da guerra ao usar a contrainformação para lutar contra o Estado. Ela inventa “valores e práticas democráticas no seu interior, utilizando-se da comunicação distribuída em rede interativa em vigor na internet”.

desenvolvem as lutas sociais, já que trabalham com a tensão existente entre a liberdade individual e o valor social (SHIRKY, 2011).

“Precisamos nos manter vigilantes, todos juntos, para que esta continue sendo uma sociedade da qual nos orgulhemos, não a sociedade dos imigrantes sem documentos, das expulsões” (HESSEL 2011, p. 12), da desvalorização da vida, da banalização da violência, da afronta aos direitos humanos. “Devemos entender que a violência dá as costas à esperança”, que é indispensável para o engajamento dos cidadãos. “Eis porque não devemos deixar que ódio demais se acumule” (HESSEL, 2011, p. 18), pois ele pode impulsionar a sociedade para caminhos distintos daqueles que buscam a garantia dos direitos fundamentais, da cidadania e do Estado Democrático de Direito.