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4. FAMÍLIAS DE CRIANÇAS EM SOFRIMENTO PSÍQUICO GRAVE

4.3 DESAFIOS NO CUIDADO

Historicamente, a família foi afastada do tratamento do doente mental que, na maioria das vezes, era internado em hospitais psiquiátricos. Esse afastamento era justificado em dois sentidos: no primeiro, para proteger a família - o doente mental poderia ser perigoso para a estrutura familiar e era colocado como um exemplo negativo que não deveria ser imitado – e, no segundo, para proteger o doente mental da família - a família era considerada promotora da loucura, ou seja, o doente mental era resultado de um ambiente conflituoso. Neste cenário, a família funcionava como informante da doença e da trajetória da pessoa com transtorno mental, e os cuidados cabiam exclusivamente aos trabalhadores da saúde mental e dos serviços assistenciais (AMARANTE, 2007; DIMENSTEIN et al, 2010; NAVARINI, HIRDES, 2008).

11 A política social PBF foca na renda e oferece condições mínimas para a população mais necessitada (BRASIL,

47 A partir da implementação da reforma psiquiátrica, a política de saúde mental no Brasil passou a propor mudanças na lógica de cuidado e defender a aproximação das famílias aos seus membros com transtornos mentais. Ainda, a política atual preconiza que a efetivação da reforma psiquiátrica se dá por meio da relação entre os trabalhadores da saúde mental, os usuários e suas famílias, pautando-se no vínculo e em um modelo de saúde humanizado que considere o cuidado integral. Nesta nova composição, aparecem importantes desafios para as famílias, principalmente no que se refere ao redimensionamento permanente do cotidiano, às tensões no convívio e à sobrecarga para o cuidador (BARROS, JORGE, VASCONCELOS, 2013; BRASIL, 2010).

Apesar de não tão recente, a implementação da reforma psiquiátrica ainda traz consigo resquícios da lógica manicomial. Esta se refere a uma visão biomédica, sustentada por interesses privados (como a indústria farmacêutica), ancorada no princípio da doença versus cura, que considera o sofrimento como um aspecto orgânico, sendo a base de intervenção centrada na sintomatologia e medicalização. Nesse modelo, o atendimento ao paciente se dá de forma segmentarizada, sob a perspectiva de múltiplas especialidades que atuam separadamente (AMARANTE, 2007; DIMENSTEIN et al, 2010).

O contraponto da lógica manicomial é justamente o que a reforma psiquiátrica visa implementar: uma saúde mental coletiva. Nesta, parte-se do entendimento de que saúde e doença são resultantes de processos sociais complexos e que demandam uma abordagem interdisciplinar e intersetorial, por meio da construção de dispositivos territorializados de atenção e cuidado, incluindo, aqui, a participação da família. Nesse modelo, o sujeito em sofrimento é o foco de intervenção, mas também é considerado o seu entorno social. A medicação não é mais o principal método de intervenção, mas sim mais um recurso de cuidado. As formas de atenção e de cuidado prezam pelo intercâmbio de diferentes saberes, capazes de produzir uma forma de intervenção que considere a complexidade dos problemas relacionados à saúde mental. O cuidado ao doente mental deve estar articulado com o território, como “uma rede de relações entre sujeitos, sujeitos que escutam e cuidam" (AMARANTE, 2007, p. 82). Nesse sentido, compreende-se a família como um destes sujeitos que cuidam, que compõem toda uma rede de outros sujeitos.

Em sua história, as compreensões acerca da doença mental e da lógica de cuidado refletem significativamente nas dificuldades que são enfrentadas hoje pelas famílias. A visão de “identificação do paciente como vítima e portador da psicopatologia da família” ainda é predominante (NAVARINI, HIRDES, 2008, p. 681). O estigma que o adoecimento psíquico

48 carrega pode motivar o afastamento dos familiares do convívio social por vergonha, cansaço e frustração.

A estratégia de cuidado pautada na lógica de normalização dos sintomas é um dos dificultadores para as famílias, que acabam insistindo em manter uma rotina habitual, não condizente com as necessidades do portador de transtorno mental. Quanto mais a sintomatologia se aproxima de comportamentos socialmente aceitos, maior a defesa das famílias em reconhecerem a complexidade dos desafios que o cuidado ao portador de transtorno mental exige (ROSA, 2003).

Nesse sentido, o diagnóstico em si acaba não importando tanto para as famílias, que tendem a categorizar o familiar com transtorno mental como “doido” ou “normal”. Por vezes, os familiares podem não compreender plenamente a doença mental, contudo possuem um saber de senso comum, constituído na relação e na vivência com o sujeito, que lhes desperta os sentidos e atribui um significado ao conhecimento que lhes escapa (ROSA, 2003). Este exemplo pode ser considerado um movimento de resistência da família em relação ao modelo biomédico, e acredita-se que é justamente nele que a lógica de cuidado humanizado floresce.

Os aspectos referidos, acrescidos dos sentimentos de culpa, insegurança, isolamento, distanciamento das relações afetivas, exclusão social e dificuldade em mobilizar o próprio desejo, comuns nestas famílias, são alguns dos fatores que dificultam a aproximação das famílias aos serviços que prestam cuidado ao doente mental, bem como sua inserção no tratamento do familiar em sofrimento (COLVERO, IDEM, ROLIM, 2004; MELMAN, 2006).

O impacto que o transtorno mental provoca no grupo familiar está estreitamente relacionado à posição que o portador de transtorno mental ocupa na família. No caso das crianças, foco deste trabalho, o cuidado é um cargo atribuído majoritariamente à figura materna e por ela assumido. Ela substitui as suas próprias necessidades, enquanto mulher e sujeito de desejo, pelas necessidades do filho com transtorno mental (ROSA, 2003).

A instituição familiar é reconhecida como a principal estrutura em que a criança desenvolve seus aspectos físicos e emocionais, sendo nela que ocorrem as principais construções subjetivas que estruturam o sujeito. Dessa forma, ao se abordar o sofrimento psíquico em crianças e adolescentes, a família deve ser considerada como foco principal na obtenção de informações sobre o dinamismo em que o sofrimento da criança se constitui e se expressa (NAVARINI, HIRDES, 2008).

Cada família possui um repertório de experiências e situações vivenciadas que lhe serve de referência para interpretar o mundo. Esse conhecimento pode ser reconhecido como uma

49 forma de tessitura psíquica, social e cultural que ancora a chegada do bebê. Por si só, trata-se de um processo complexo, mas pode se transformar em um desafio muito maior, em circunstâncias especiais. O surgimento de distúrbios mentais na primeira infância produz um eco que afeta toda a família, que é obrigada a constituir um novo repertório de recursos frente àquilo que é considerado anormalidade da criança (CAVALCANTE, 2001).

Tratando-se de sofrimento psíquico grave, corresponde-se a uma condição crônica. O diagnóstico desta condição na criança reflete na família a vivência de sentimentos diversos, como a sensação de fragilidade, preocupação constante e até mesmo o sentimento de culpabilização, somados à sobrecarga de cuidados e à necessidade de adaptação da família diante de momentos de crise e de possíveis mudanças em sua rotina (WEIS et al, 2013).

A adaptação de cada família acontece de modo singular e é um processo que depende de diversos fatores, como “a complexidade e a gravidade da doença, a fase em que o grupo se encontra e as estruturas disponíveis para satisfazer suas necessidades” (WEIS et al, 2013, p. 35). Por isso, é fundamental que os profissionais envolvidos no processo de cuidado da criança reflitam sobre as intervenções junto aos cuidadores e familiares a partir das necessidades e possibilidades que apresentam em sua realidade (NAVARINI, HIRDES, 2008).

Em um estudo realizado por Delfini, Bastos e Reis (2017), os autores observam que a percepção de que a criança apresenta algo de diferente em seu desenvolvimento é identificada primeiramente no ambiente familiar. Contudo, famílias que buscaram ajuda, em um primeiro momento, depararam-se com opiniões de amigos, familiares e até mesmo de médicos, no sentido de que “cada criança tem seu tempo”. O ingresso da criança na escola e o reconhecimento de dificuldades no contexto escolar seria o que incentivaria as famílias na busca por tratamento.

O sofrimento psíquico da criança afeta a ela e também diretamente a seus cuidadores, gerando sentimento de frustração diante das limitações da criança, quando comparada a outras. Além do desafio de suporte emocional e material à criança, os cuidadores de crianças com sofrimento psíquico enfrentam dificuldades como as despesas financeiras e temporais que são dispensadas à criança e à busca por serviços, o que, por vezes, impossibilita-os inclusive de exercer atividades remuneradas e também de convívio social (NAVARINI, HIRDES, 2008).

Diante do não acesso à informação, algumas famílias buscam tratamento em hospitais gerais, que não as direcionam adequadamente aos serviços especializados. Ainda, nos casos em que a família consegue acesso aos serviços, depara-se com a dificuldade de ser inserida no processo terapêutico da criança, que recebe uma forma de tratamento no serviço que não está

50 relacionada com as estratégias de cuidado que recebe no ambiente familiar (MONTEIRO et al, 2012)

No que se refere às dificuldades das famílias de crianças com TEA, estas aparecem relacionadas a uma interação complexa entre a gravidade dos sintomas da criança, características emocionais da família e disponibilidade de recursos comunitários e sociais. A apresentação dos sintomas de autismo, em seu início, provoca rupturas imediatas no contexto familiar, que interrompem atividades rotineiras e transformam o clima emocional em que se vive. Por vezes, as dificuldades específicas das crianças com TEA, como a não cessação da sintomatologia com o tempo, acaba mobilizando aspectos da dinâmica familiar, principalmente no que se refere a convivência social. Nesse sentido, os autores referem que, em relação aos pais de crianças com outros diagnósticos, como Síndrome de Down, os pais de crianças com TEA apresentam maior nível de manifestações como estresse, ansiedade e depressão (ANDRADE, TEODORO, 2012).

Em um estudo sobre pais de crianças com transtornos graves de desenvolvimento, Franco e Apolonio (2016) considera que pais com dificuldades em aceitar a condição de seu filho e que escapam de seus papéis, limitando-se a entregar a criança para tratamentos, também estão com seu funcionamento emocional, afetivo e social ameaçados. Nestes casos, o tratamento da criança pode ser comprometido, uma vez que seu processo de desenvolvimento exige que seus cuidadores proporcionem ambiente e espaço adequados.

Podem ocorrer diversas dificuldades para a família que busca ajuda para uma criança e/ou adolescente em sofrimento psíquico: o gasto de energia que envolve essa busca, o investimento do tempo que poderia estar sendo compartilhado em família, dificuldades econômicas, privação das necessidades de outros membros do grupo familiar, corte de atividades sociais, diminuição de interações com o mundo exterior, dentre outros. Esse processo também pode ser dificultado pela burocracia do sistema, que muitas vezes empurra o usuário de um serviço a outro. Este fator, além de interferir na dinâmica familiar, por vezes acaba desorganizando estas famílias a ponto desistirem da busca por tratamento para a criança (MONTEIRO et al, 2012).

Cuidar de um indivíduo em sofrimento psíquico grave pode se tornar um peso para o grupo familiar que passa a sofrer uma sobrecarga física e emocional, que inevitavelmente irá refletir nos cuidados da criança. Ao nascer, a criança encontra na família um mundo organizado por parâmetros construídos socialmente e que refletem, além da cultura específica da própria família, valores, hábitos, mitos e pressupostos que exprimem o funcionamento social de

51 determinado contexto. Nesse sentido, compreende-se que o olhar para as famílias deve considerar sua correlação com demais instituições sociais (SZYMANSKI, 2004).

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