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4. FAMÍLIAS DE CRIANÇAS EM SOFRIMENTO PSÍQUICO GRAVE

4.2 AS FAMÍLIAS E AS INSTITUIÇÕES DE CUIDADO

Na obra A Polícia das Famílias, Donzelot (1980) apresenta um resgate histórico dos papéis assumidos pela família no desenvolvimento social, no qual discute como as instituições estatais delineiam, regulam e decretam normas, valores, funções e deveres às famílias. Segundo o autor, enquanto o que inquieta as famílias são os filhos adulterados, o que perturba o Estado é o desperdício de forças vivas. O Estado, então, intervém na desordem familiar com estratégias corretivas.

44 Donzelot (1986) define a família moderna por um modelo pedagógico de liberdade vigiada. Neste, o propósito seria o de dirigir as crianças para espaços de maior vigilância, como a escola e a habitação familiar e, assim, evitar o excesso de liberdade e a desordem social. Nesse sentido, a família torna-se o cerne do debate político do Estado.

A partir do século XIX o Estado intervém na família por meio de dois principais polos: o assistencial e o médico-higienista. O polo assistencial se refere ao direito à assistência do Estado, que intervém com meios para que os indivíduos se tornem autônomos. O polo médico- higienista, por sua vez, é um instrumento de controle da saúde e da doença (DONZELOT, 1986):

A tendência médica é a vertente necessária da tendência industrial, pois a influência que esta última exerce sobre a salubridade é incontestável, no sentido que teve que multiplicar o número de perigos aos quais as populações manufatureiras ficam, em geral, mais expostas do que as populações agrícolas. Entretanto, se as causas de insalubridade se multiplicaram com a extensão das artes da indústria, é preciso convir que o estudo aperfeiçoado das ciências de onde essas causas nasceram diretamente oferece, para prevení-las e combatê-las, meios outrora ignorados: é a lança de Aquiles que cura as feridas que ela própria provocou (p.56-57).

Desde o século XIX, o Estado tem investido nas famílias como aliadas do ordenamento social, como evidencia-se no campo da saúde pública e políticas sociais mais recentes, como o SUS e o SUAS. A configuração destas alianças sempre esteve pautada em perspectivas etnocêntricas e normativas acerca dos modelos familiares. Os saberes e as práticas das famílias foram desconsiderados, tornando-se meras consumidoras de prescrições inscritas no modelo biomédico e coadjuvantes das mais diversas especialidades (DIMENSTEIN et al, 2010).

O surgimento de políticas públicas no Brasil, no início do século XX, período do desenvolvimento industrial, atende à necessidade emergente do Estado no controle social e na exploração do trabalho. Legislações sociais e instituições públicas como educação, saúde e habitação surgem como uma forma de incentivo às famílias, para garantir a produtividade dos trabalhadores. A disponibilização de serviços que promovam o bem-estar da população, como por exemplo, a implementação do Serviço Social da Indústria (SESI), cumprem o papel de orientar os trabalhadores e suas famílias não apenas em seus trabalhos, mas adentram todos os seus sentidos, incluindo espaços de lazer (CARVALHO, IAMAMOTO, 2007).

Neste contexto, o comunitário torna-se um cenário de aspiração para atividades assistenciais que reproduzem interesses privados por meio da produção de demandas da, e para, a comunidade (SCHEINVAR, 2006). Exige-se das famílias que cuidem de seus segmentos mais vulneráveis. Nesse sentido, o discurso de líderes políticos e religiosos associam a percepção de

45 perdas, no que se refere a condições de vida (violência, fome, tráfico, entre outros), às mudanças nas estruturas familiares. Em palavras mais comuns, culpabiliza-se as chamadas famílias desestruturadas pela crise econômica, política e social. Em contrapartida, estudiosos da família e da vertente de estudos feministas compreendem que as mudanças nas estruturas familiares fazem parte de um processo amplo de transformações econômicas e sociais, e não o contrário. Nesse sentido, assim como outras instituições, a família também passa por mudanças importantes (GOLDANI, 2001).

A busca das famílias por apoio em serviços assistenciais, em sua maioria, parte de um terceiro ou outras instituições que identificam uma problemática familiar, por exemplo: a escola identifica situações de abandono, absenteísmo ou problemas graves de inclusão do aluno. A saúde é acionada em casos de dependência química e adoecimento psíquico. A assistência social, por sua vez, em situações de pobreza extrema e maus-tratos. Por fim, o sistema judicial é alertado por furtos e tráfico (MATOS, SOUSA, 2006).

Uma vez que os serviços assistenciais são organizados por áreas de intervenção, e as famílias em vulnerabilidade são atingidas por múltiplas demandas, acabam se acumulando relações com diversos técnicos e instituições que atendem de maneira pontual demandas que exigem um olhar sistêmico. Ainda, a parcialização na compreensão dos casos diminui a eficácia de intervenções dos profissionais e serviços e até mesmo incide de forma negativa nas resoluções, o que resulta em “o caso é de todos e não é de ninguém”. Como exemplo da complexidade do trabalho em rede, evidencia-se que uma família que procura um centro de saúde por motivo de doença, pode ocasionar a tomada de conhecimento de outras situações de risco social, sendo necessário acionar outros serviços além da saúde (MATOS, SOUSA, 2006).

No que se refere ao âmbito da educação, este aparece relacionado a mudanças sociais. A relação entre instituição escolar e família é historicamente marcada pela intenção de formar cidadãos trabalhadores, higiênicos e ordeiros. Esta intenção colonizadora da escola em relação à família provoca uma relação vertical entre ambas, e a família é vista como subordinada à escola na educação de seus filhos. Este fenômeno se refere a uma desconfiança social e histórica sobre a competência da família no cuidado às crianças. Na contemporaneidade, manifesta-se no afastamento das famílias em relação às instituições de educação (FARIA FILHO, MENDES, 2000).

No âmbito da saúde, as políticas públicas voltadas para a família ainda são caracterizadas por práticas centradas no indivíduo. O Programa de Saúde da Família (PSF), por exemplo, primeira estratégia de reorientação do modelo de atenção à saúde, por vezes ainda

46 parece exercer uma abordagem fundamentada no individualismo assistencial. Compreende-se que é necessário que os serviços de atenção primária considerem a família não somente como geradora de crises, mas também de soluções. Nesse sentido, a unidade familiar deve ser tomada como base de referência para o desenvolvimento de programas dirigidos à saúde e não mais o indivíduo (SERAPIONI, 2005).

Por fim, no âmbito da assistência social, identifica-se que o Programa Bolsa Família (PBF)11 é a política mais acessada por famílias de crianças e adolescentes, enquanto os Centros

de Referência da Assistência Social (CRAS) são menos acessados pelas famílias, por receio de terem suas informações violadas. As políticas sociais aparecem permeadas por um caráter conservador, uma vez que impõem condicionantes de acesso para o público, impedindo o desenvolvimento da autonomia dos sujeitos (SERAPIONI, 2005).

A fim de superar a atual fragmentação das políticas públicas, como o direito à saúde, à educação, à habitação, ao transporte e à segurança, assim como daquelas voltadas aos indivíduos, como os direitos das mulheres, gestantes, crianças e idosos, faz-se necessária a criação de propostas de integração das diferentes intervenções no campo social, que dialoguem entre si e com a realidade de seus usuários a cada determinado tempo histórico (SERAPIONI, 2005).