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Descartes e a Ciência Moderna

Para a ciência moderna, chegar à conceituação do princípio de inércia era um marco decisivo e fundamental para que as reflexões acerca do movimento tivessem um eixo comum, pois, até então, as conjecturas eram de toda ordem, faltando um ponto de convergência que a pudesse fazer erigi-la.

De acordo com os historiadores da ciência, apesar de René Descartes26 (1596 – 1650) ter conceituado inércia, sua física foi um fracasso total, pois estabelecia uma física matemática, porém sem matemática.

A formulação do conceito também é resultado da busca incessante de uma resposta para explicar a queda dos corpos. Viu-se todo o trabalho de Galileu que, em 1604, já a estabelecia como a primeira lei da física.

O trabalho de Descartes nesta área inicia-se em 1618, quando Isaak Beeckman27, físico, nos primeiros contatos com ele, percebe os seus dons extraordinários e pede-lhe para resolver o problema da queda dos corpos.

Evidentemente que Descartes, conhecedor dos problemas da física nascente, não trabalhou sozinho, pois o próprio Beeckman teve um papel preponderante, na medida em que já conhecia que a Terra exercia uma força atrativa nos corpos e por isto estes caíam, bem como, neste cair, aumentavam de velocidade simplesmente porque, a cada instante da queda, os corpos tinham novas atrações e conservavam as anteriores, resultando, assim, num aumento da velocidade.

Assim, a contribuição de Beeckman para a conceituação de inércia foi imprescindível e não seria correto atribuir somente a Descartes tal façanha, pois os conhecimentos de Beeckman sobre a física setecentista eram formidáveis e, já em 1613, tinha formulado a lei de conservação do movimento, ou seja, o que uma vez está posto em movimento permanece em movimento eternamente. Tese a que Galileu também havia aderido ao realizar o experimento com as bolas em planos no declive, no aclive e na horizontal. Porém, apelou a Descartes para resolver o problema de integração que não foi capaz de fazer.

26 Filósofo francês cujo nome latino era Cartesius (daí seu pensamento ser conhecido como cartesiano), é

considerado o precursor do racionalismo. Em 1628, enquanto morava na Holanda dedicou-se à composição de uma obra que deveria abarcar o conjunto da física, intitulado Tratado do Mundo e da Luz. Em 1634, quando este trabalho ficou pronto para impressão, Descartes renuncia à publicação do mesmo, após tomar conhecimento da condenação de Galileu, motivada por uma tese a que ele também havia aderido: o movimento da Terra.

27 Por volta de 1618 Descartes ingressa na carreira militar indo para os Países Baixos, onde estabelece forte

amizade com Isaak Beeckman, médico e estudioso da física matemática, que em muito influenciou o desenvolvimento do pensamento racional cartesiano.

O problema da queda dos corpos Beeckman domina perfeitamente no campo da física, porém encontrar uma fórmula matemática para o cálculo da velocidade e a trajetória que os graves percorrem, isso ele pedirá a Descartes.

Descartes antecede as conclusões finais do princípio da inércia, aprimorando ainda mais a matematização do mundo. Com seu método peculiar e fiel a ele, inicia sua hipótese de existência de um espaço fundamental de base, ou seja, um espaço ideal e matemático, no qual seria possível tirar conclusões compatíveis com as novas descobertas e, assim, reconstrói o mundo com suas próprias idéias.

Partindo dos pressupostos propostos por Beeckman, porém a todo momento esquecendo-se daqueles e estabelecendo os seus, Descartes parte para a resolução do problema da queda dos corpos.

Isaak Beeckman, como já foi apontado, adere ao pensamento de Gilbert e Kepler no que tange à atração dos corpos pela Terra, ou seja, os corpos caem porque são atraídos por ela e na queda eles se aceleram porque são, a cada instante do movimento, atraídos de novo pela Terra, e estas novas atrações conferem-lhes, a cada novo instante, um novo grau de movimento, enquanto os movimentos de que estavam já animados permanecem, ou seja, a velocidade aumenta na proporção dos espaços percorridos. Está evidente a ação da gravidade, em Beeckman, na geração de aceleração.

Disto conclui-se que, para ele, está certa a não necessidade do impetus, mostrando- se, inclusive, irrelevante para compreender o movimento de queda livre; porém como solicitou a Descartes para solucioná-lo, coube a este a formulação do princípio de inércia.

Nas palavras de Koyrè (1986), Descartes ao iniciar os seus cálculos, isto é, medir a distância percorrida e o tempo empregado na queda dos corpos, cometerá um grande erro, chegando a uma resposta inexata, que Beeckman não percebeu.

Primeiramente, a maneira como Descartes concebe o movimento é diferente da de Beeckman, pois entende a queda dos corpos como um movimento que tem um fim natural, ou seja, a Terra. Entretanto, ao abordar a queda livre dos corpos, utiliza-se do mesmo expediente de Beeckman, de que os corpos, ao serem atraídos pela Terra, percorrem um espaço e que na medida em que vão desenvolvendo esse movimento recebem sempre novas trações, e conseqüentemente aumentam de velocidade até atingirem o chão. O movimento da queda é, portanto, um movimento violento. Esse raciocínio é suficiente para resolver o problema colocado e calcular o tempo da queda.

A solução apresentada por Beeckman, por meio de seus cálculos, é correta, a saber: os espaços percorridos são proporcionais aos quadrados dos tempos. Teoria que Galileu já

havia comprovado, em Pisa, denominando de lei matemática da queda dos corpos. Essa lei mostra que, após intervalos Δt de tempos iguais, a bola percorre sucessivamente distâncias (acumuladas) 1d, 4d, 9d, 16d etc., isto é, a bola desce após um tempo 1Δt uma distância 12d, após 2Δt uma distância acumulada 22d, após 3Δt uma distância acumulada 32d, e assim por diante. Porém, esta não foi a solução proposta por Descartes, que o fez por meio da pirâmide, ou seja, admitindo a força tratora da Terra e a sua conservação, essas seriam somadas e a cada instante haveria uma variação de velocidade, sempre crescente em forma de cubos e não como quadrados.

Por ser um matemático, um geômetra e não físico, Descartes não se preocupa com essa possibilidade do crescimento da força atrativa, apenas trata de estabelecer uma relação entre as duas séries de grandezas variáveis, fugindo dos princípios estabelecidos por Beeckman e ao mesmo tempo solucionando a questão erroneamente; mais precisamente, parte da idéia da queda dos corpos acabada, ou seja, de forma parada, apenas atendo-se à trajetória dos corpos, eliminando o tempo. O que para Beeckman representava o tempo transcorrido, para Descartes era a trajetória. Restava, assim, o cálculo deste trajeto, ou melhor, determinar a velocidade em cada ponto dele.

Dessas acepções, pode-se ressaltar que aqui está a interpretação errônea de Descartes, na medida em que, para Beeckman, esse trajeto era o espaço percorrido, enquanto para o primeiro referia-se ao movimento do corpo, isto é, soma de velocidades realizadas. O erro está em conceber o movimento uniformemente acelerado como um movimento em que a velocidade cresce proporcionalmente ao caminho percorrido e não proporcionalmente ao tempo transcorrido.

A relação entre espaço e tempo, a geometrização em excesso e conseqüentemente a negligência do aspecto físico são as principais causas dos erros cometidos por Descartes, que, de fato, não compreendeu os princípios da física de Beeckman.

Segundo Koyrè (1986), os cálculos elaborados por Descartes, com seu rigor matemático característico, são, porém, falhos do ponto de vista da física, inclusive resgatando o conceito de impetus, pois substitui o princípio de conservação do movimento, que Beeckman brilhantemente formulou, pelo conceito de força. Parte da idéia de que velocidade é proporcional à força e que força constante produz velocidade constante. Parece haver aqui um retrocesso no campo da filosofia natural.

Descartes parece ainda não estar preparado para algo tão específico e é por isso que evita o princípio de conservação de Beeckman, pois este situa-se entre a matemática, a

geometria e a física no sentido temporal. Uma prova desta dificuldade é sua fuga do movimento, um estado do móvel que pode ser passado para outro e, ao mesmo tempo em que encarna a mudança, se mantém idêntico. Essa entidade paradoxal ainda lhe é demasiadamente insólita e nova, por isso prefere algo mais denso e mais claro, a saber: a força motriz e a trajetória.

O problema da queda dos corpos continua ainda sem definição unânime e só será resolvido dez anos mais tarde quando o próprio Descartes, admitindo o princípio de conservação de movimento, elaborado por Beeckman, após apresentar novos cálculos, adota-o e curiosamente invoca o princípio divino. Afirma Descartes:

Después de haber examinado la naturaleza del movimiento, es preciso que consideremos su causa. Puesto que puede ser considerada en dos formas, iniciaremos su estudio por la primera y más universal de ellas, esto es, por la causa general de todos los movimientos que son en el mundo. Consideremos, a continuación, la otra, esto es, la razón de que cada parte de la materia adquiera un movimiento que antes no tenía. En relación con la primera causa del movimiento, me parece que es evidente que no es otra que Dios, quien en razón de su Omnipotencia ha creado la materia con el movimiento y con el reposo y que ahora conserva en el universo, mediante su concurso ordinario, tanto movimiento y reposo como el producido al crearlo (...) También conocemos que hay perfección en Dios no sólo en razón de la inmutabilidad de su naturaleza, sino también porque obra de una forma que nunca cambia. De tal modo que no debemos suponer otros cambios en sus obras, si no se le desea atribuir inconstancia, que los cambios que nosotros apreciamos en el mundo, aquellos otros cambios que nosotros creemos, porque Dios los ha revelado, que han acontecido y que sabemos que han de acontecer en la naturaleza sin que quepa argüir que ello conlleva inconstancia alguna por parte del Creador. De donde se sigue que Dios conserva en la materia la misma cantidad de movimiento, puesto que ha movido de formas diversas las distintas partes de la materia cuando las ha creado, y puesto que las mantiene a todas ellas de igual manera y siguiendo incesantemente las mismas leyes que ha hecho observar en su creación (DESCARTES, 1995, pp.96 e 97).

Como Descartes tem sua própria cosmologia e partindo de sua concepção sobre os objetos reais e a realidade, cria uma nova imagem do universo. Para ele, o que é essencial na matéria é extensão e movimento, assim, o universo é uma entidade extensa e infinita, e conseqüentemente é pleno, não vazio; pois o vácuo não existe. No que se refere a esta extensão do mundo afirmou:

(...) la materia extensa que compone el universo no tiene límites, puesto que, cualquiera que fuera la parte en la que deseemos fingir estos límites, aún podemos imaginar un más allá de los espacios indefinidamente extensos, que nosotros no solo imaginamos, sino que concebimos ser en efecto tales como los imaginamos; de suerte que contienen un cuerpo indefinidamente extenso, porque la idea de la extensión que nosotros concebimos en un espacio, cualquiera que sea, es la verdadera idea que debemos tener del cuerpo (DESCARTES, 1995, pp.85 e 86).

Tendo como base esses pressupostos, Descartes estabelece seu postulado, a saber: Deus quando criou o universo de extensão infinita lhe conferiu também um movimento. A quantidade de movimento total criada é imutável não podendo aumentar nem diminuir, porém, localmente o movimento de um corpo pode ser alterado pela troca com outro e enquanto um deles perde movimento o outro ganha a mesma quantidade. Com este pensamento Descartes estabelece a terceira lei de natureza afirmando que:

(...) si un cuerpo que se mueve y que alcanza a otro cuerpo tiene menos fuerza para continuar moviéndose en línea recta de la que este otro cuerpo tiene para resistir al primero, pierde la determinación de su movimiento... sin perder nada de su movimiento; pero si tiene más fuerza, mueve este otro cuerpo y pierde tanto movimiento como transmite al otro. Así vemos que un cuerpo duro que nosotros hemos lanzado contra otro, que es más grande y más duro y está en reposo, retorna hacia el mismo punto de donde procede y no pierde nada de su movimiento; ahora bien, si el cuerpo con el que choca es blando, entonces se detiene porque le transfiere su movimiento. Las causas particulares de los cambios que acontecen a los cuerpos están todas comprendidas en esta regla, al menos aquellas causas que son corporales, pues no cuestiono en este momento si los ángeles o los pensamientos de los hombres tienen la fuerza de mover los cuerpos; ésta es una cuestión que reservo para su estudio en un tratado que espero construir sobre el hombre (DESCARTES, 1995, pp.101 e 102).

Também afirmava que cada corpo permanece em seu estado de movimento retilíneo – que é a forma geométrica mais simples, criada por Deus ao dar partida ao movimento geral – permanecendo neste estado até que o corpo seja afetado por alguma força externa:

De acuerdo con la segunda ley de la naturaleza, cada parte de la materia, aisladamente considerada, no tiende a seguir su movimiento trazando líneas curvas, sino seguiendo líneas rectas, aunque varias de sus partes sean frecuentemente obligadas a desviarse, por que encuentran otras en su camino, y aunque cuando un cuerpo se mueva, siempre se forme un círculo o un anillo de toda la materia que es movida a la vez. Esta regla, como la precedente, depende de que Dios es inmutable y de que conserva el movimiento en la materia en virtud de una operación muy simple, pues no conserva el movimiento tal y como ha podido conservarlo en algún momento anterior, sino como precisamente lo hace en el mismo instante que lo conserva. Y aunque sea verdad que el movimiento no se produce en un instante, sin embargo es evidente que todo cuerpo que se mueve está determinado a moverse siguiendo la línea recta y no una curva... (DESCARTES, 1995, pp.100 e 101).

Assim, entende-se que para Descartes o mundo passa a ser geometria generalizada e o movimento uma translação geométrica. O tempo seria uma dimensão geométrica da mesma natureza que o espaço.

Embora Descartes, por sua concepção peculiar da cosmologia, crie uma impossibilidade, pois o movimento retilíneo e uniforme só existe no vácuo, pode-se atribuir- lhe o título de formulador final do Princípio da Inércia, porque sobre suas idéias emergirá o estabelecimento do contexto teórico moderno das ciências.