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Voltando à discussão proposta na introdução deste trabalho, ou seja, a tentativa de desmistificar a idéia de que Thomas Hobbes é avesso às garantias das liberdades individuais, é importante o resgate dos ideais jusnaturalistas e, a partir daí, mostrar a relação existente entre a idéia dos movimentos dos corpos e o que isso teria acarretado nos homens vivendo em estado de natureza, isto é, o entrechoque de corpos humanos numa realidade em que não há normas e nem regras sociais.

Os pensadores jusnaturalistas33, sem a preocupação de fixar uma época cronológica e histórica, estão de acordo quando afirmam que em algum momento o homem teria vivido um estado puro de natureza, sendo seus objetivos principais fazer uma análise do homem neste estado, isto é, sua forma de encarar o mundo, a natureza de seu ser, e principalmente seu

33 Jusnaturalismo: Doutrina segundo a qual existe e pode ser conhecido um direito natural, isto é, um sistema de

normas de conduta intersubjetiva diverso do sistema constituído pelas normas fixadas pelo Estado (direito positivo). Este direito natural tem validade em si, é anterior e superior ao direito positivo e, em caso de conflito, é ele que deve prevalecer.

relacionamento com os demais homens e com a própria natureza e, a partir daí, demonstrar o que teria levado esses indivíduos ao estado de sociedade.

A corrente jusnaturalista é assim definida e usada com o objetivo de referir-se ao desenvolvimento e à difusão que a antiga e recorrente idéia do direito natural teve durante a Idade Moderna entre os séculos XVII e XVIII. A conceituação desse direito é um tanto quanto complexa, pois seu significado é muito amplo e na História da Filosofia aparecem no mínimo três versões fundamentais no sentido de identificar sua origem, a saber: a primeira é a crença de uma lei divina, revelada aos homens; a segunda é a tese de uma lei natural inerente a todos os seres animados e, por fim, a de uma lei ditada pela razão, assim presente exclusivamente no homem.

A origem do jusnaturalismo moderno é marcada com a publicação da obra de Hugo Grócio (1588 – 1625), intitulada “De iure belli ac pacis”34, e teve com o alemão Samuel Pufendorf, seu discípulo, uma grande divulgação, pois este afirmava que antes de Grócio ninguém distinguia exatamente os direitos naturais dos direitos positivos e que, por isso, para ele, Grócio era considerado o pai do direito natural. É notável que as reflexões de Grócio tenham sido um marco decisivo para uma definição do direito natural moderno, mas não se pode esquecer que ele não partiu do nada e teve como fundamento de sua teoria um cabedal de análises já realizadas desde os gregos, passando pelos pensadores medievais até a modernidade, e certamente sofreu as influências das discussões já realizadas em todo esse período, por sinal muito fértil no que concerne a este tema.

As análises jusnaturalistas remontam à Grécia antiga, já presentes na tragédia de Sófocles, em que a figura de Antígona simbolizará e dará origem a essa reflexão. Na obra, Antígona não aceita as ordens do rei, porque as considera inferiores às leis estabelecidas pelos deuses, que são superiores e eternas. Tem-se aqui, portanto, um embrião que percorrerá toda a História da Filosofia, na qual o cerne da discussão será se o justo por natureza se contrapõe ao justo por lei, permitindo que surjam argumentos e hipóteses os mais diversos possíveis, e estará presente em quase todas as reflexões filosóficas em que o tema sociedade civil for debatido.

Ainda na Antigüidade, observa-se em Platão e Aristóteles que o tema jusnaturalismo será motivo de muitas especulações, pois para estes toda a natureza era governada por uma lei universal racional e imanente. Tais discussões serão depois difundidas pelos estóicos, principalmente por Cícero, que defende a existência de uma lei verdadeira, conforme a razão,

imutável e eterna, que não se modifica com os povos e com os tempos e que os homens não podem violar sem renegar a própria natureza humana.

A tese de um direito natural ditado pela razão será também motivo de reflexões em todo o período medieval. Embora com significados antagônicos, várias teses a esse respeito caminharão juntas neste período, passando por Santo Agostinho, São Tomás de Aquino, Guilherme de Ockham, entre outros.

Na História Moderna o jusnaturalismo, que assume características laicas e no campo político liberais, foi resultado, em grande parte, das influências da doutrina de Cícero do direito natural e também do próprio São Tomás de Aquino, para quem a lei natural foi imposta por Deus e se acha presente na razão humana, portanto, como norma racional. Esta tese apesar de forte e muito difundida sofrerá uma grande oposição, primeiro por Guilherme de Ockham, para quem o direito natural é sim ditado pela razão e revelado por Deus, mas ao homem também é dado o direito de modificá-lo, uma vez que este possui o livre arbítrio.

Voltando à tese de Hugo Grócio, ele não só se oporá a São Tomás, como também irá mais longe, afirmando que o direito natural é de fato ditado pela razão, sendo independente não só da vontade de Deus, como também da sua própria existência. A tese de uma doutrina natural como fundamento de um direito que pudesse ser reconhecido como válido por todos os povos, isto é, um direito que tenha como fonte exclusiva de validade a sua conformidade com a razão humana e não como algo sobrenatural, motivou definitivamente os pensadores modernos a encararem o tema a partir desta nova versão. Esta afirmação marcará o jusnaturalismo moderno e influenciará a sociedade no campo moral, político e do direito, isto é, uma nova cultura será desenvolvida, agora laica e antiteológica, embora as discussões de um direito herdado ou convencional ainda permaneçam como centro das reflexões na modernidade.

As principais características do jusnaturalismo moderno, após Grócio, ganharão novos enfoques e permearão toda a discussão acerca das leis positivas e o fundamento do Estado. Em virtude disso, tem-se a chamada “Escola do direito natural”, que abrangerá autores e correntes diversos, tais como os grandes filósofos Hobbes, Leibniz, Locke e Kant, entre outros, que se preocuparam com problemas de ordem jurídica e política e também juristas-filósofos como Pufendorf, Thomasius e Wolff que, ao tratar a questão do direito natural, se dedicaram ao estudo do direito privado e público, mas com maior ênfase ao primeiro. Por outro lado, os filósofos, especialmente Hobbes, Locke e Rousseau, terão como tema central quase exclusivamente o direito público, o problema do fundamento e da natureza do Estado.

Evidentemente, não se pode afirmar que todos esses pensadores tivessem o mesmo nível de preocupação, pois, embora partam dos conceitos de direitos inatos, estado de natureza, estado civil, contrato social, entre outros, o caminho a ser percorrido é específico em cada um e às vezes apresentam diferenças profundas, tais como enquanto para alguns esses conceitos são tratados como fatos realmente acontecidos, particularmente para Rousseau e Kant são apresentados como meras idéias, ou seja, têm uma justificativa apenas racional e não histórica.

Ainda que o tema acarrete inúmeras discussões, pode-se perceber nos autores um ponto comum de convergência de idéias tão amplas e generalizadas, que é justamente o método racional utilizado para o desenvolvimento de um estudo sobre o assunto, permitindo tratar questões do direito, da ética, da filosofia prática, da moral e da política de uma forma jamais adotada, ou seja, a partir da ótica da natureza humana. Assim, os temas abordados pelos autores, com suas causas e conseqüências, são fundamentados no próprio homem e não possuem uma explicação divina. Dessa forma, a noção de unidade dos chamados jusnaturalistas é precisamente a idéia de que é possível uma verdadeira ciência da moral, estabelecendo e descobrindo regras universais de conduta, através do estudo da natureza do próprio homem. É nesta perspectiva que Hobbes procurará desenvolver sua filosofia tendo como paradigma os ideais de exatidão das ciências naturais.

As discussões decorrentes das idéias jusnaturalistas trouxeram uma preocupação antropológica, já que se perdeu espaço para uma justificação senhoril de tudo o que existia e acontecia no mundo, através da teologia racional aristotélico-tomista. A partir dessas idéias, o homem passa para o centro das preocupações e descobre-se que possui capacidades sem limites com a autonomia do conhecimento. Assim, ele rompe as barreiras do tempo, alarga os horizontes do conhecimento e descobre que não necessita esperar intervenções divinas para resolver seus problemas, pois é capaz de resolvê-los pelas suas próprias forças.

Depois de Hugo Grócio, é com Thomas Hobbes que essa discussão volta à tona, ou seja, com a preocupação antropológica dessa nova concepção do homem moderno, ressurge a discussão do direito natural, pois, junto ao paradigma da modernidade, constituiu-se a questão do progresso, do desenvolvimento que se estabeleceu na sociedade. A busca de uma fundamentação a partir do direito natural consiste em saber se o homem em algum momento viveu em um estado puro de natureza e em que consistiu tal estado. E, ainda, se no momento em que o homem deixa o estado de natureza e passa a viver na sociedade civil, deixa de existir como estado de natureza ou o mesmo continua existindo em seu espírito.

É possível que Hobbes tenha uma resposta para essas questões. Mas para respondê- las com eficácia, será necessário, em primeiro lugar, recorrer ao pensamento hobbesiano quanto à vida do homem em estado natural.