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Liberdade e estado de sociedade

Viu-se que no estado de natureza, apresentado por Hobbes, a possibilidade de existir liberdade é nula, ou melhor, é ilusória, pois se trata de um estado em que as paixões imperam e, segundo o autor, destas, a única coisa que se pode esperar é a tentativa de dominação de um homem sobre o outro. Tais paixões, como resultado de um processo mecânico, só poderão gerar mais paixões e conseqüentemente mais inseguranças e conflitos. Assim, a única maneira de salvaguardar suas vidas é a instituição do contrato social, em que a paz e a liberdade poderão existir efetivamente:

Diz-se que um Estado foi instituído quando uma multidão de homens concordam e pactuam, cada um com cada um dos outros, que a qualquer homem ou assembléia de homens a quem seja atribuído pela maioria o direito de representar a pessoa de todos eles (ou seja, de ser seu representante), todos sem exceção, tanto os que votaram a favor dele como os que votaram contra ele, deverão autorizar todos os atos e decisões desse homem ou assembléia de homens, tal como se fossem seus próprios atos e decisões, a fim de viverem em paz uns com os outros e serem protegidos dos restantes homens (HOBBES, 1974, p.111).

A fundamentação do Estado na perspectiva de Hobbes se dá pela simples situação à qual cada homem estava submetido quando vivia em estado de natureza.

O objetivo a partir de agora será o de tentar demonstrar o significado do papel do Estado na visão do autor, sua origem, seu desenvolvimento e os seus objetivos maiores, a saber: a conquista e a manutenção da paz e da liberdade e, a fim de que isto seja possível, em hipótese alguma o soberano poderá ficar sujeito às leis civis, de forma que a sua supremacia em relação à sociedade civil seja fundamental para que tais objetivos sejam postos em prática.

O desenvolvimento do conceito hobbesiano de Estado é um processo natural que tem sua origem na análise do homem em estado de natureza, de forma que são definidas as leis naturais e o ponto em que se dá a passagem destas para a situação posterior, isto é, a criação da comunidade por meio de um pacto, daí decorrendo a fundamentação do poder do soberano e das leis civis.

O processo de formação do Estado tem seu início já no estado de natureza, no qual são apontados dois aspectos: no primeiro, os indivíduos são considerados isoladamente, governados exclusivamente por paixões e também por suas razões; no segundo aspecto, o mais importante, observa-se que as leis da razão, ou a própria reta-razão, são definidas com a consideração dos direitos do outro que, como já se afirmou, será o motivo pelo qual se fundamentará o Estado.

Thomas Hobbes dá ao estado de natureza original uma definição bem peculiar quando atribui ao homem um direito natural e não derivado de todas as coisas, embora este direito natural seja comumente chamado de direito a tudo, sendo esta uma das razões de sua concepção de estado de natureza ser associada ao estado de guerra.

De uma forma geral, sua argumentação quanto a essa denominação ao estado de natureza não se dá pelo simples direito a tudo, isso é primordial, mas existem outras causas que são igualmente importantes como, por exemplo: a competição, a vaidade, a falta de liberdade, o apetite; além do direito maior, a preservação da própria vida, que o homem poderá utilizar caso julgue necessário. Pode-se inferir, a partir destes conceitos simples, que a própria formação do Estado já se encontra neste seio, justamente pelo fato de que o direito a tudo significa ao mesmo tempo um direito a nada, uma vez que para conseguir tal direito o homem terá de competir com outro, que também tem para si que tudo pode. Isso significa que o conflito é inerente, é possível que aconteça a qualquer momento, de modo que os homens não poderão agir somente pelas paixões, porque seriam levados à própria extinção.

Assim, deve-se observar que, embora todos considerem legítimo este direito a tudo, ou seja, uma liberdade total, existe um elemento de reciprocidade, de forma que os homens não podem reconhecer o direito de outrem a todas as coisas, pois dessa maneira estariam negando a si próprios tal direito, já que o outro também tudo pode. Assim, pode-se concluir que o direito primário não tem por base a razão e o que o autor faz é transformar, deste modo, cada homem em um átomo completamente isolado, sozinho, ou seja, resgatando sua idéia original dos movimentos dos corpos, na qual o homem é tratado como todos os demais corpos que existem, isto é, sempre em movimento, resultado obtido pelos seus entrechoques, já que habitam num mesmo universo.

É dessa forma que Hobbes argumenta que o direito a tudo não é fundamentado pela razão, e sim resultado de um movimento físico que acontece em todos os corpos, inclusive no homem, como já foi abordado nos capítulos anteriores, ou seja, os conflitos são inerentes aos homens, o que explica sua conceituação sobre o estado de natureza e a ausência de liberdade neste estado.

Assim, o conceito de Estado também é inerente ao homem, pois se usasse apenas suas paixões (conatus), caminharia para a própria destruição. Desta concepção, pode-se perceber que a idéia de Estado já se encontra presente nos homens decorrente do uso da razão e que, portanto, mesmo no estado de natureza já se pode perceber o embrião que dará origem ao Estado.

A noção de Estado37 moderno começa a se configurar mais claramente no período Renascentista, tendo sido exaltada como potência plena desde Maquiavel. Já a expressão pacto social, sendo de origem jurídica e consagrada na Europa entre os séculos XVI e XVIII, pressupõe a celebração de um contrato juridicamente perfeito, entre seres humanos racionais, dotados de vontades e exercitando os limites de suas liberdades.

De certa forma, a noção de poder político sempre esteve associada à idéia de comando ditado por aqueles que detêm a autoridade, que desde a formação da sociedade civil será oriunda do pacto entre os indivíduos. Portanto, para Hobbes, as concepções de Estado e de contrato já faziam parte dos indivíduos, mesmo que em potência, vivendo em estado de natureza. Muitas vezes tais conceitos são tratados como sendo características do pensamento moderno, mas um percurso pela História da Filosofia mostra justamente o contrário, ou seja, desde os pensadores clássicos esses temas já eram objetos de reflexões. Vale destacar e relembrar que para Hobbes este processo de formação do Estado não será de forma natural. Ao fazer esta afirmação, o que se pretende é demonstrar o que de fato encaminhou os indivíduos ao estado civil, que para ele foi o próprio conatus, diferentemente de Aristóteles, para quem o homem já está incluso, de certa forma, em uma organização social, ainda que primitiva. Isso para Hobbes não acontece, pois concebe os indivíduos isolados, lutando por seus interesses, e será este conflito o motor propulsor do estado civil.

A partir de agora, as reflexões serão centralizadas especificamente na organização da sociedade civil, em que se realiza a plena liberdade, que só será possível mediante a elaboração do contrato e conseqüentemente a elevação de um poder para garantia e funcionamento do pacto social, o que Thomas Hobbes soube esclarecer e fundamentar muito bem.

Viu-se que a permanência dos homens no estado natural os levaria à própria destruição, haja vista que entre homens vivendo juntos, com as mesmas características e as mesmas potencialidades, a possibilidade de conflito estava instaurada e, portanto, a vida era ameaçada a todo instante, impossibilitando a convivência social, pois o medo do outro e da morte estavam sempre presentes. Naquele estado imperava o domínio das paixões (conatus), a força que impele os indivíduos a cometerem atos às vezes independentemente da vontade,

37 Segundo Nicola Abbagnano (1998) - Dicionário de Filosofia – Em geral Estado significa a organização

jurídica coercitiva de determinada comunidade. O uso da palavra Estado, no sentido moderno do termo, deve-se a Maquiavel. Podem ser distinguidas três concepções fundamentais: a primeira denomina-se organicista, segundo a qual o Estado é independente dos indivíduos e anterior a eles; a segunda denomina-se atomista ou contratualista, segundo a qual o Estado é criação dos indivíduos e a terceira concepção chama-se formalista, segundo a qual o Estado é uma formação jurídica. As duas primeiras concepções alternam-se na história do pensamento ocidental; a terceira é moderna e, na sua forma pura, foi formulada só nos últimos tempos. Trabalhou-se nesta tese com a segunda concepção.

pois, como impulsos, apareciam nos homens como forma de necessidades causadas pelo mecanicismo, o que conseqüentemente acarretaria a falta de liberdade, gerando a insegurança e o medo.

Porém, este estado de constante instabilidade em que os homens naturais viviam servirá como mola propulsora para que estes dêem um salto para o estado de sociedade, em que a liberdade será possível, pois os homens carregam em si essa aparente contradição, ou seja, ao mesmo tempo em que querem a liberdade, desejam o domínio sobre os demais e é nesta dicotomia que passarão de um estado para outro, como necessidade, ou melhor, como forma de garantir a vida, a paz e a liberdade que é o seu propósito:

O fim último, causa final e desígnio dos homens (que amam naturalmente a liberdade e o domínio sobre os outros), ao introduzir aquela restrição sobre si mesmos sob a qual os vemos viver nos Estados, é o cuidado com sua própria conservação e com uma vida mais satisfeita. Quer dizer, o desejo de sair daquela mísera condição de guerra que é a conseqüência necessária das paixões naturais dos homens, quando não há um poder visível capaz de os manter em respeito, forçando- os, por medo do castigo, ao cumprimento de seus pactos e ao respeito àquelas leis de natureza que foram expostas... (HOBBES, 1974, p.107).

Assim, é em conseqüência do medo e pelo uso da reta-razão que os homens caminharão para a formação da sociedade civil e delegarão o poder a um soberano, capaz de mantê-los e organizá-los nesta nova condição de vida.