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CAPÍTULO 1. A LEITURA

1.3. PROCESSOS IMPLICADOS NA LEITURA

1.3.1. DESCODIFICAÇÃO

Foucault (s.d., como citado em Morais, 1997, p. 132) refere que “as palavras oferecem- se aos homens como coisas a decifrar”. A escrita assemelha-se a um código secreto que codifica os sons, as sílabas e as palavras de uma língua. Assim, a sua descodificação deve ensinar-se. Um bom leitor é um descodificador nato (Dehaene, Dehaene-Lambertz, Gentaz, Huron & Sprenger-Charolles, 2011).

Como já referimos, os grandes passos na arte de ler são os de nível inferior, isto é, os de descodificação. Nesta linha de ideias, Morais (1997, p. 158) advoga que “a capacidade de descodificação é uma espécie de propulsor”, referindo também que “o impulso para a leitura é dado pela actividade de descodificação”, que é lenta e trabalhosa.

Para Cruz (2007, p. 56), a descodificação, sendo um dos amplos processos da leitura, é “a capacidade de reconhecimento das palavras” e “o processo pelo qual se extrai suficiente informação das palavras através da ativação do léxico mental, para permitir que a informação semântica se torne consciente”. É, assim, “inquestionável que para ler é necessário identificar as letras e as palavras, e discriminá-las do ponto de vista perceptivo” (Viana, 2009, p. 15).

Segundo Sim-Sim (2009, p. 12), “decifrar, ou descodificar, significa identificar as palavras escritas, relacionando a sequência de letras com a sequência de sons correspondentes na respetiva língua”.

Descodificar um sistema de escrita alfabética, como é o caso do Português, implica a capacidade de traduzir sequências de letras nas sequências de sons que compõem as palavras de uma dada língua. Desta forma, a consciência fonológica é a base da descodificação de palavras, sendo esta, por sua vez, o início da capacidade de compreensão de um texto. Nesta linha de ideias, para Viana (2009).

As escritas alfabéticas permitiram, de uma forma eficiente e prática, codificar a linguagem oral nos seus elementos sonoros mais pequenos: as palavras são compostas por sons e as letras codificam esses sons. Assim, com um número reduzido de letras conseguimos reproduzir a infinidade de combinações sonoras necessárias para construir todas as palavras de uma língua de ortografia alfabética. Para ler é necessário dominar este código, e a investigação tem mostrado que as competências de decifração são extremamente importantes para o reconhecimento das palavras, sendo este, por sua vez, determinante para extrair sentido do que é lido (compreender) (p. 14).

São vários os autores que veem no reconhecimento de palavras o objetivo primeiro das fases iniciais da aprendizagem da leitura, considerando Cruz (2007, p. 57) que “o reconhecimento fluido de palavras é um requisito sine qua non para o desenvolvimento da leitura”. Face ao exposto, nos primeiros anos de escolaridade devem realizar-se atividades que recorram ao domínio dos mecanismos de descodificação de palavras. Neste sentido, para descodificar palavras deve-se “transformar os grafemas nos fonemas correspondentes e combiná-los para pronunciar a palavra correspondente” (Cruz, 2007, p. 57), apesar de ser uma estratégia demorada, é usada por leitores principiantes.

Outra forma de descodificação é a que se processa visualmente, uma vez que os leitores têm palavras guardadas na memória, de experiências de leitura anteriores. É um processo rápido de descodificação, porém funciona apenas com palavras conhecidas (Cruz, 2007). O autor refere, ainda, o descodificar por analogia, ou seja, os leitores fazem uma analogia com palavras que conhecem visualmente. Recorrem à memória procurando palavras semelhantes. Esta forma de descodificar torna-se limitada para leitores principiantes.

Cruz (2007) refere também o uso do contexto na descodificação. Pode usar imagens associadas ao texto, o seu conhecimento da linguagem e do mundo ou a memória do texto já lido. Este modo de descodificar com base no contexto acaba por não funcionar com a maioria das palavras, sendo assim pouco fiável.

Concluímos que todas estas formas de descodificar devem ser usadas ao mesmo tempo, sendo a descodificação visual a maneira mais rápida e eficiente para decifrar palavras, fazendo-se de forma automática e inconsciente.

Considerando que o sucesso da decifração de palavras é “a pedra fulcral da leitura” (Sim-Sim, 2009, p. 17), esta autora apresenta um conjunto de linhas gerais para o ensino da decifração:

 Deve ocorrer em contexto real de leitura - histórias, poesias, notícias - por oposição a uma sequência repetitiva de fichas e de exercícios mecânicos;  Deve ter como suportes as experiências e os conhecimentos da criança

sobre a linguagem escrita, designadamente sobre as funções da escrita e sobre a estruturação gráfica que rege e organiza a linguagem escrita;

 Deve ter como alicerces a consciência fonológica, particularmente a consciência fonémica;

 Deve ser explícito, direto e transparente, permitindo ao aluno a prática autónoma e independente da correspondência aprendida, ou o consequente treino em parceria com os colegas;

 Deve contemplar e regular o reconhecimento de padrões ortográficos frequentes – prefixos, sufixos, sequência consoante/vogal, dígrafos,

 Deve fomentar a leitura de palavras frequentes para que a criança as reconheça rápida e automaticamente;

 Deve estar intimamente associado a práticas de expressão escrita (Sim-Sim, 2009, pp. 25-26).

Assim, que processos estão implicados na descodificação? Citoler (1996) e García (1998) consideram que a tarefa da leitura implica quatro grandes módulos: o percetivo, o léxico, o sintático e o semântico que funcionam de forma interativa e paralela.

Em primeiro lugar, na leitura estão inerentes processos percetivos, onde se pretende identificar símbolos gráficos para decifrar e posteriormente captar a mensagem escrita (Cruz, 2007). Por outras palavras, onde estão incluídos processos de extração de informação, que têm a ver com a memória de trabalho e onde se efetuam tarefas de reconhecimento e análise linguística (García, 1998). Por se tratar de atividades cognitivas, Citoler (1996) dá especial enfoque à memória de trabalho, onde se retém ou processa informação enquanto se vai elaborando outra informação nova que chega ao sistema.

Nos processos percetivos são utilizadas tarefas relacionadas com os movimentos oculares, isto é, movimentos dos olhos e fixações (Citoler, 1996; Cruz, 2007; Morais, 1997). Assim, um leitor utiliza cerca de 90% do tempo a perceber a informação e aproximadamente 10% a encontrar nova informação para perceber (Cruz, 2007; García, 1998; Morais, 1997). Contudo, estes valores não são fixos, variando de leitor para leitor ou de texto para texto, tendo em conta a sua complexidade.

Quando lemos, temos a sensação de que os nossos olhos percebem as palavras através das linhas, de forma contínua e uniforme, à medida que avançamos. Todavia, esta sensação está errada, uma vez que os olhos executam vários movimentos oculares rápidos que alternam com fixações, isto é, momentos em que os olhos se detêm imobilizados num ponto, permitindo ao leitor perceber parte do material escrito. É nesses curtos espaços de tempo (200 a 250 milésimos de segundo, segundo vários autores) que a informação é extraída (Citoler, 1996; Cruz, 2007; Morais, 1997).

Para além da dimensão percetiva, a descodificação de palavras implica uma dimensão

léxica. Identificadas as letras que constituem uma palavra, o processo seguinte é o de

recuperar o significado dessa palavra no léxico interno, ou seja, tentar entender “o conjunto de operações necessárias para se chegar ao conhecimento que a pessoa tem acerca das palavras e que se encontra armazenado num léxico interno ou léxico mental” (Cruz, 2007, p. 63). Para a construção deste tipo de informação sobre as palavras participam as fontes fonológica, semântica e ortográfica, que se vão acumulando e que constituem a matéria-prima ou unidades com as quais os leitores constroem um significado (Citoler, 1996; Cruz, 2007).

Foram múltiplos os estudos propostos para explicar a obtenção do significado das palavras e a organização do léxico mental. Não obstante, as investigações no campo da leitura estão de acordo em considerar que o que se destaca é o modelo de dupla via, também designado de modelo dual, que pressupõe um sistema de escrita de tipo alfabético com duas vias ou estratégias para aceder ao léxico (Carvalho, 2011; Citoler, 1996; Lopes, 2010; Morais, 1997; Cruz, 2007; Viana, 2009):

Uma via direta, visual, ortográfica ou léxica, que permite a ligação automática da forma ortográfica das palavras à sua representação interna no sistema semântico, de forma a aceder ao seu significado;

Uma via indireta, fonológica ou subléxica, que recupera a palavra mediante a aplicação das regras de correspondência entre grafemas e fonemas (Carvalho, 2011; Citoler, 1996; Cruz, 1999; Cruz, 2007; García, 1998; Lopes, 2010; Morais, 1997; Viana, 2009).

Através da via direta, a leitura implica a análise visual das palavras, a sua comparação com um conjunto de representações armazenadas no léxico visual, para verificar com qual existe maior identidade. Por esta via só podemos ler palavras que o leitor conhece, isto é, palavras que fazem parte do seu léxico visual. No que respeita às palavras não familiares e às que não possuem representação léxica, designadas de pseudopalavras, a única via para as ler é a via indireta ou fonológica. Neste caso, a leitura consiste na identificação das letras que compõem as palavras no sistema de análise visual; na recuperação dos sons correspondentes a essas letras, de acordo com o mecanismo de conversão grafema/fonema; na consulta do léxico auditivo para identificar a representação correspondente a esses sons; ativação do significado correspondente no sistema semântico dessa representação (Carvalho, 2011; Cruz, 2007).

Carvalho (2011, p. 29) afirma que “a priori o leitor não sabe que via utilizar no reconhecimento da palavra escrita”, sendo que ativa “os dois mecanismos: o lexical e o fonológico” em simultâneo. Refere, ainda, a autora e de acordo com investigações neste campo que “a via ativada em primeiro lugar depende da experiência do leitor e do tipo de texto” (Carvalho, 2011, p. 29). Consoante aumenta a proficiência do leitor, a via lexical ganha maior protagonismo.

Nesta linha de ideias, Cruz (2007) salienta que as duas vias não são mecanismos independentes, apesar de distintos. Para que se efetue uma leitura eficaz colaboram ambas as vias, ou seja, são duas partes sinérgicas do mesmo processo e dependem de conhecimentos que o leitor já tem sobre as palavras, designadamente conhecimentos de tipo fonológico, semântico e ortográfico. São conhecimentos interativos e interrelacionados entre si que, quando se trata de palavras familiares, as representações ortográficas são ativadas, fazendo com que a leitura seja mais rápida. Por sua vez, a via fonológica é fundamental no reconhecimento de palavras

desconhecidas, na leitura de pseudopalavras e na pronunciação que o leitor encontra pela primeira vez (Citoler, 1996; Cruz, 2007; Morais 1997).