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DESCOLONIZANDO A RELAÇÃO ENTRE MIGRAÇÃO LATINA E O IMPÉRIO ESTADUNIDENSE

DESLOCAMENTOS HUMANOS

2.3 EM TORNO A DESCOLONIZAÇÃO: POR QUE UMA MUDANÇA EPISTEMOLÓGICA?

2.3.3 DESCOLONIZANDO A RELAÇÃO ENTRE MIGRAÇÃO LATINA E O IMPÉRIO ESTADUNIDENSE

Wallerstein (apud GROSFOGUEL, 2008) defende que as elites globais do século XXI seguem a mesma fórmula utilizada pelas aristocracias feudais do século XV : a criação de um sistema histórico e mais pernicioso que o atual para que os privilégios possam ser resguardados. Em contrapartida, movimentos de resistência podem fazer a balança pender para o lado que agrega as maiores porções populacionais. A tese é simples: a transformação é vital nesse momento de transição e os movimentos populacionais no mundo inteiro têm uma enorme importância, pois trazem em seu cerne o germe da mudança de mentalidades e comportamentos através da convivência entre as diferenças (de raça, etnia, gênero, classe, de nacionalidades e das mais variadas expressões da cultura).

O chamado a descolonizar aparece e se justifica por conta justamente das transformações, do que é gerado a partir das interações sociais. Neste cenário, pensar as interações no interior do império estadunidense mais do que si mbólico é necessário.

Diz Grosfoguel (2008, pp. 606-607):

in the year 2000, non-hispanic whites were a demographic minority in 70% of US cities, while latin@s were the fastest -growing population. Latin@s populations increase 50% between 1990 and 2000. The majority of them are work ing-class and racialized subjects (Chicanos, Salvadorians,Puerto Ricans, Dominicans, indigenous, afro-latinos, etc.) coming from colonial and neo-colonial experiences in the periphery of the world economy. (…) Today the latin@s population constitutes the largest minority in the United States – around 12,8% of the total population. Conservatives estimates (…) project that by the year 2060 non-hispanic whites will be a demographic minority in the US, and latin@s will be the largest minority in the group (25% of the total population)23.

23 Tradução livre: “Nos anos 2000, os brancos não-hispânicos era uma minoria demográfica em

70% das cidades dos Estados Unidos, enquanto latin@s foram a população que mais cresceu. Populações latinas cresceram 50% entre os anos 1990 e 2000. A maior parte deles são de classe trabalhadora e sujeitos racializados (chicanos, salvadorenhos, porto-riquenhos, dominicanos, indígenas, afro-latinos, etc), vindos de experiências coloniais e neocoloniais na periferia da economia mundial. (...) Hoje, as populações latinas constituem a maior minoria dos Es tados Unidos – aproximadamente 12,8% do total da população. Estimativas conservadoras (...) projetam que, para o ano de 2060, brancos não-hispânicos serão uma minoria nos Estados Unidos e latin@s serão a maior minoria demográfica (25% do total da população).

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Esse panorama e como lidamos com ele é o centro do grande desafio que emerge, tanto para os Estados Unidos, como também para os demais países latino-americanos. Descolonizar o entendimento sobre as migrações, portanto, deixa de ser uma categoria exótica, para figurar como uma das principais fontes de pensamento crítico quando tratamos da interação norte-sul.

O termo descolonização tem sido usado tradicionalmente quando se remete a períodos históricos muito específicos, indicando a transição da administração colonial para a formação de Estados independentes em regiões periféricas do sistema. Entra, portanto, também em apreciação o mito europeu de que vivemos em uma era pós-colonial. E é mito precisamente porque parte do pressuposto de que em um momento caracterizado como pós já não precisamos compreender o colonialismo, que trata-se de uma transição concluída, em que não faz mais sentido insistir em certas categorias de análise.

Pensar nas migrações a partir da perspectiva de Quijano (2005), de colonialidade do poder, nos leva a diferentes visões sobre as interações e integrações de migrantes em outra sociedade. As pessoas não chegam a territórios neutros, limpos, puros. Na maior parte das vezes, os migrantes chegam a sociedades metropolitanas constituídas a partir de uma história colonial, de um imaginário colonial, com hierarquias de raça/etnia, ou seja, os migrantes estão em um espaço em que as relações de poder já foram constituídas ou influenciadas pela colonialidade. Não há, portanto, incorporação ou integração neutra.

De acordo com Grosfoguel (2008), ao aplicar a lógica da decolonialidade, pode-se observar três tipos de migrantes transnacionais – e note-se a diferença de abordagem quanto à caracterização das diásporas e diaspóricos, conforme abordamos na página 38:

a) Os sujeitos raciais/coloniais do império: são os que estão dentro de impérios como parte de uma longa história colonial, como é o caso de afro- americanos, dos nativos americanos e dos próprios mexicanos. Todo imaginário metropolitano colonial, assim como a hierarquização racial/étnica são frequentemente produzidas em relação a esses grupos. Eles são os diferentes dentro de um contexto que não os pertence.

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b) Imigrantes: que são aqueles racializados como brancos (geralmente europeus, ou que tenham origem europeia, como euro-latinos, euro- africanos, euro-australianos) que têm posições sociais mais cômodas ou mesmo passaram por processos de mobilidade social em sua primeira ou segunda geração na Europa e, pelo processo de identificação, utilizam um repertório linguístico metropolitanos, maneirismos e costumes elitizados. Como diz Grosfoguel (2008, p. 609), são brancos ou brancos honorários. c) Imigrantes coloniais: os que vivem em regiões periféricas que podem nunca

ter sido diretamente colonizadas pelo país para onde se vai migrar. Na entrada, em uma nova sociedade, são racializados como sujeitos raciais/coloniais do império. É o caso de porto-riquenhização de dominicanos em Nova York, chicanização de salvadorenhos em Los Angeles. O discurso construído é o de transferir para esses migrantes o preconceito já existente.

Essa outra categorização é um contraponto às teorias de migração e de diásporas clássicas, com viés europeu, que informam certos parâmetros para mensurar o sucesso ou não de certos processos migratórios utilizando o parâmetro europeu como experiência universal. É assim que quando certos grupos não obtêm sucesso (financeiro ou profissional, por exemplo), isto é atribuído a certos problemas culturais daquela comunidade migrante (a preguiça, a desonestidade, a desorganização).

A ideia de transnacionalismo também é desafiada quando se coloca a necessidade de descolonizar as migrações, dado que as formas e comportamentos das travessias diferem nas experiências, rotas, nas escolhas e motivadores e formas de inserção nos principais centros.

Ainda que a abordagem transnacionalista não caia na chamada analogia imigrante24, por ter um entendimento mais profundo e particularizado dos

24 Immigrant analogy, pelo termo de Grosfoguel (2008), refere-se à postura da academia euro-

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deslocamentos, em que raça, gênero e nacionalidade importam, há um certa homogeneização das experiências da periferia, admitindo-se que os migrantes periféricos estão divididos entre dois Estados e, da mesma forma, suas culturas e identidades. A baixa percepção e mesmo aplicação da colonialidade como categoria de análise pode acabar levando a conclusões equivocadas, uma vez que parte do princípio de que assim como a experiência periférica é a mesma, a integração ou incorporação desses migrantes em uma nova sociedade metropolitana se dá da mesma forma. Essa seria uma analogia migrante do sul, que não dá conta da diversidade dos processos migratórios que ocorrem. Ou até dá, mas de forma separada e desvinculando o objeto de sua história, de seus condicionantes.

Uma abordagem decolonial, a partir dos conceitos de colonialidade e, após isso, colonialidade do poder também se mostra imprescindível para que não se recaia, como muitas vezes ocorre na literatura sobre deslocamentos populacionais, a explicações culturalistas que, muitas vezes, incorrem em estigmas.

Dentro dos territórios-metrópole, o racismo é invisível. Trata-se de outro mito do anglo-eurocentrismo: o de que o racismo é um problema das periferias do sistema- mundo. Se estamos falando da migração como experiência efetivada de um novo colonialismo e admitimos que o antigo colonialismo nunca foi terminado (e, por isso, não reconhecemos aqui um contexto pós-colonial), podemos concluir que o racismo continua presente, que cria estigmas e importantes diferenciações sociais que separam migrantes e nacionais e colocam os migrantes como pessoas descidadanizadas – se eles estiverem naquelas categorias de Grosfoguel (2008) de sujeito racial/colonial e de imigrantes coloniais. E isso ocorre porque também no tocante ao racismo/diferenciação, os indivíduos não habitam sociedades neutras, mas sociedades em que a colonialidade do poder está contida.

Usar abordagens culturalistas na migração é falar de racismo, mas sem usar a palavra raça. É um artifício para causar menos incômodo, mas prosseguir com o impacto negativo que encontram as populações ao chegarem num novo país. Elas

experiência migratória Europa-Estados Unidos e utilizar esse mesmo parâmetro quando se referem aos processos que vão da periferia para o centro.

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continuam, por seus traços, atrasadas, preguiçosas, conflitivas, sujas, mal educadas e tendentes à desonestidade, traços supostamente culturais que demarcam a inferioridade dos povos periféricos. Por isso, ocupariam postos de trabalho com remuneração menor, mais insalubres, nem sempre serão considerados para cargos-chave ou de confiança. E assim o racismo cultural, levando em conta uma cultura da pobreza, reproduz as mesmas estruturas de racismo em uma sociedade de acolhida. Note-se que o problema aqui, a partir do discurso do mérito, continua sendo a pobreza de fora e não o racismo de dentro da sociedade. E reproduzir esse esquema dentro da academia é desastroso.

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