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CAPÍTULO 4 A PAZ POR VIR DAS MULHERES

5.1 Descolonizando o fazer científico

Descolonizar é um processo histórico em que cabe discernir o movimento histórico da forma e do conteúdo com os quais ele é produzido. É necessária uma modificação do “ser”: o colonizado precisa passar da situação de espectador à de ator privilegiado. Também é preciso haver um novo entendimento da atual situação colonial e lutar contra os chamados “soldados”, que são os que criam, em torno do explorado, uma atmosfera de submissão e inibição que fortalece as forças de ordem. A violência que presidiu a constituição do mundo colonial acabou sendo reivindicada e assumida pelo colonizado. É uma violência baseada na supremacia do homem branco com uma violenta crítica ao colonizado.

pertencimento a outro território que não o seu, salientando que o indígena, o negro e, durante muito tempo, as mulheres também foram desumanizados, amparados por uma linguagem que os animalizava. Interessante perceber, sobretudo pelo atual contexto brasileiro, as características do cenário de guerra: violência, polarização e mentiras, as quais, muitas vezes, não são problematizadas e forjam um falso mundo imaginário. Nesse contexto, as pessoas passam a pensar que a única solução para o problema é a própria violência. Com isso, a experiência da vulnerabilidade e do perigo, a não proteção, o terror e o medo podem marcar em profundidade o psiquismo das pessoas, especialmente das crianças e dos jovens. Disseminar o ódio é uma prática não só do pensamento totalitário, mas também do pensamento colonialista. O termo “pós-colonialidade” faz alusão ao trabalho de um grupo de pesquisadores formados pela academia anglo-saxã e originários do sudeste asiático e do Oriente Médio que, a partir dos anos 1980, começaram a elaborar uma série de questionamentos sobre os países que levaram a cabo o colonialismo. Entre os acadêmicos, estavam Homi Bhabha, Gayatri Spivak e Edwars Saïd. Os principais postulados da corrente pós-colonial fazem alusão à reprodução, ao desenvolvimento e à manutenção das estruturas coloniais mesmo após os processos de independência vividos pelas colônias. Isso quer dizer que os processos de independência não modificaram a ordem social, econômica, política e cultural que foi imposta pelos impérios europeus, como o português, francês ou britânico. Os estados-nação mantiveram essa ordem que naturaliza hierarquias sociais de subordinação, marginalização e exclusão a populações que foram historicamente relegadas e que não fazem parte do modelo de homem branco, heterossexual e de classe média. Nesse caso, mulheres, negros, indígenas ou aqueles que não adotam uma identidade heterossexual são mantidos às margens em seus próprios países.

A crítica pós-colonial começou a questionar os relatos dos processos de independência, assim como a consolidação dos estados-nação, as relações de poder que sustentam as estruturas sociais, o papel das elites nacionais na reprodução dos sistemas de discriminação, as relações econômicas que essas novas nações seguem sustentando com as antigas metrópoles e a própria constituição desse novo sujeito independente que se tornaria, então, um cidadão. Em outras palavras, “pós-colonial” não se refere à superação do colonialismo, mas sim à maneira como este se mantém no tempo das mais diversas formas, mesmo depois das novas configurações nacionais das ex-colônias.

É nesse sentido, por haver um sentimento de que as teorias originárias do norte não davam conta dos problemas existentes no sul global, que a partir dos estudos pós-coloniais e descoloniais observa-se uma grande contribuição: atribuir-se à colonização uma dimensão

epistemológica e ideológica. Ou seja, os pós-colonialistas chamaram atenção para o fato de que a colonização não consistiu apenas em uma experiência de exploração econômica, mas foi também a imposição de uma racionalidade sobre outra. Autores como Santiago Castro-Gómez, Boaventura de Souza Santos, Walter Mignolo, Aníbal Quijano e Juan Blanco reconhecem ainda que a dominação cultural foi crucial para viabilizar a dominação de cunho econômico.

As teorias pós-coloniais passaram a ocupar espaço na América Latina a partir dos anos 1990, porém com algumas críticas, entre elas as que apontavam que a corrente pós-colonial reflete uma história particular que não pode ser generalizada para o mundo todo em virtude de que as colônias asiáticas tiveram uma história muito diferente das colônias espanholas e portuguesas. Além disso, suas estruturas sociais também são diferentes e não dariam conta das especificidades do período colonial latino.

Para Santiago Castro-Gómez (2005), o pós-colonialismo deu um passo importante ao identificar um “ponto cego” em Karl Marx: a inaptidão da teoria marxista para compreender a dinâmica internacional do capitalismo (divisão internacional do trabalho) e a importância dos aspectos ditos “superestruturais” nesse fenômeno, sobretudo a questão racial. Ao mesmo tempo, os autores pós-coloniais teriam deixado de lado um elemento essencial ao substituírem considerações sobre a economia e a luta de classes pela análise da dimensão “epistemológica” ligada à produção de discursos. O argumento de Castro-Gómez, como apologia do pós- colonialismo latino-americano, desenvolve-se em torno desse movimento de afastamento e subsequente reaproximação com Karl Marx. Para o autor (2005, p. 19), Marx permaneceu aferrado a uma visão “teleológica e eurocêntrica” da história que o tornou incapaz de ver o colonialismo como um elemento essencial, constitutivo da modernidade. Em vez disso, Marx percebia a divisão internacional do trabalho em termos “aditivos”, como uma reprodução geograficamente deslocada do mesmo padrão que poderia ser compreendido em uma versão autocontida da Europa. Castro-Gómez (2005) lembra como a tese dos “povos sem história”, herdada de Georg Hegel por Karl Marx, permitiu a este excluir a possibilidade de que a América Latina pudesse ser considerada sequer como candidata ao agenciamento do processo revolucionário mundial.

Com efeito, em Marx o colonialismo é visto apenas como um estágio historicamente prévio ao capitalismo e ao comunismo. Como a revolução burguesa levava ao capitalismo, este deveria necessariamente preceder a revolução socialista. Assim, a periferia do mundo estaria desde já subtraída da luta revolucionária: “para Marx, el colonialismo no era otra cosa que el pasado de la modernidad y desaparecería por completo con la crisis mundial que daría paso al

comunismo”. (CASTRO-GÓMEZ, 2005, p. 19). Contudo, no âmbito das teorias pós-coloniais surgem os estudos subalternos ou da subalternidade. O conceito gramsciano de “subalterno” é (re)significado por uma série de acadêmicos que se interessam em definir as condições de subordinação e exclusão das populações relegadas nas histórias oficiais. Assim, eles propõem um novo ângulo historiográfico: contar as histórias do ponto de vista do subalterno, e não do das elites.40

Esse giro historiográfico não se contentava apenas em encontrar a voz do subalterno e fazê-la falar. Também fez, assim como Antonio Gramsci, críticas às ideologias nacionalistas que impunham uma visão racista, classista, sexista e homofóbica diante de um cidadão específico. Quanto a isso, é fundamental entender que o grupo dominador exerce uma hegemonia que não é nada mais que uma série de forças temporariamente agrupadas para acender aos postos de poder. Esse caráter provisório implica que pode e deve ser contestado por quem está subordino a ele, assim como sua temporalidade é efêmera e sempre passível de ser combatida e subvertida. No caso italiano das primeiras décadas do século XX, Gramsci via nos sindicatos dos trabalhadores italianos a força principal para essa mudança.

Segundo Nelson Maldonado-Torres (2016), o chamado “giro descolonial” implica uma mudança de atitude no sujeito prático e de conhecimento, seguida pela transformação da ideia em projeto de descolonização. Por sua vez, o giro descolonial, assim como a ideia de descolonização, encontra raízes na resposta visceral dos sujeitos conquistados diante da violência extrema da conquista, que invalida os conhecimentos, as formas de ser e, até mesmo, a humanidade dos conquistados. Os princípios do giro descolonial e a ideia de descolonização fundem-se sobre o grito de espanto do colonizado diante da transformação da guerra e da morte em elementos ordinários do mundo da vida que se transforma, em parte, no mundo da morte ou em um mundo da vida apesar da morte. A ideia da descolonização também expressa dúvida ou ceticismo com respeito ao protetor colonial.

A categoria descolonização começou a ser utilizada pelas Ciências Sociais no final do século XX, mais precisamente a partir da década de 1970. No Brasil, Paulo Freire publicou em 1973 a obra Extensão ou comunicação: a conscientização no meio rural, em que ele questionava os problemas de comunicação entre o técnico e o campesinato. Ainda que

40 Sobre o subalterno ocorre uma violência epistêmica, definida por Gayatri Spivak como o silenciamento discursivo dessa “outra” voz por parte do poder colonial e patriarcal. Ao mesmo tempo, atua sobre o subalterno uma forma de conhecimento reproduzido nas escolas, nas leis e nos meios massivos de comunicação, que criam um marco discursivo (naturalizado) para autodenominação, com vistas a eliminar a possibilidade crítica da subversão linguística. Assim, não só a voz subalterna é excluída, como também suas experiências devem ser narradas com uma linguagem que não lhe pertencia e que a violenta antes de sua pronunciação.

divergissem sobre o lugar de fala e das diferenças em relação ao pensamento descolonial, Aníbal Quijano e Boaventura de Souza Santos aproximam-se da proposta de concepção de um pensamento que se diferencia das análises eurocêntricas.

Tanto a teoria pós-colonial quanto a descolonial latino-americana consistem em críticas bastante incisivas à modernidade, compreendidas tanto a partir de seu aspecto epistemológico quanto cultural, social e político. Entretanto, algumas características as diferenciam. Em princípio, é preciso destacar que o marco de início da modernidade, para os descoloniais latino- americanos, é a chegada dos colonizadores à América, momento em que a Europa confronta-se com o seu “Outro” e consegue controlá-lo, violentá-lo e vencê-lo. Os teóricos pós-coloniais, por sua vez, localizam o surgimento da modernidade no momento em que Inglaterra e França passaram a exercer o papel de forças imperiais no século XVIII.

Por situar o nascimento do capitalismo, da modernidade e da colonialidade no mesmo momento histórico, a crítica dos descoloniais alcança um caráter mais profundo e radical, dirigindo-se não apenas ao capitalismo, mas à própria modernidade. Ao se compreender a colonialidade como a outra face da modernidade e a pobreza do Sul como a outra face do desenvolvimento do capitalismo no Norte, tem-se uma visão mais ampla e complexa da realidade na qual estamos inseridos.

Por outro lado, está presente na formulação dos autores a compreensão semelhante à dos pós-colonialistas acerca do papel desempenhado pela cultura e pela epistemologia na concretização do projeto colonial e da exploração econômica das colônias, cujos efeitos são sentidos até hoje, tanto no Norte quanto no Sul. Para tornar tal característica mais lógica, bem como para qualificá-la e distingui-la em relação às teorias pós-coloniais, é crucial a distinção traçada pela teoria descolonial entre “colonialidade” e “colonialismo”.

O colonialismo estaria vinculado a um período de tempo em que as nações latino- americanas estiveram sob o controle das metrópoles europeias, notadamente Portugal e Espanha, dependência esta que se encerraria uma vez alcançada a independência. A colonialidade, por sua vez, diria respeito à lógica de domínio no mundo, que independe do controle sobre territórios específicos. As relações de poder da colonialidade transcendem o período propriamente colonial – o colonialismo, portanto –, em que pese terem aí se iniciado.

Além disso, enquanto o projeto pós-colonial situa-se entre a teoria crítica europeia proveniente do pós-estruturalismo e as experiências da elite intelectual nas ex-colônias inglesas na Ásia e no norte da África, o projeto descolonial tem outra matriz: estaria situado na própria modernidade e teria como característica a contestação dela mesma, trazendo à tona experiências

distintas das produzidas nos centros de poder imperial. (MIGNOLO, 2007). O conceito de descolonialidade traz implícita a compreensão de hierarquias que se dão em escala global, mas também em escala local. Assim, abarca tanto as contribuições contra-hegemônicas locais em contraposição às globais quanto “la crítica y perspectivas olvidadas por la crítica criolla”. (BLANCO, 2009, p. 114-115).

Walter Mignolo (2007) alerta que o pensamento descolonial pressupõe a diferença colonial. Significa que a teoria reivindica a localidade de todo o pensamento, inclusive o europeu, que é transmitido como se fosse “neutro”, “deslocalizado” ou “universal”, mas que, de fato, é fruto de certa realidade social. Nesse ponto, a confluência com os estudos pós- estruturalistas é bastante clara.

A perspectiva descolonial recebeu muitas contribuições oriundas das análises do sistema-mundo. Demonstra-se, segundo Santiago Castro-Gómez e Ramón Grosfoguel (2007, p. 14), como “la división internacional del trabajo y las luchas militares geopolíticas son constitutivas de los procesos de acumulación capitalista a escala mundial”. Essa concepção é o que permite que se diga que a descolonialidade considera os elementos da superestrutura marxista como estrutura na forma de uma heterarquia; a cultura está entrelaçada aos processos da economia-política (CASTRO-GÓMEZ; GROSFOGUEL, 2007), não perdendo de vista a inserção na macronarrativa marxista que, embora, tenha sido em alguma medida resgatada pelos pós-colonialistas, não o foi com a mesma intensidade e com a mesma preocupação com as estruturas de base como nas teorias descoloniais.

Portanto, ainda que compartilhem uma crítica ao eurocentrismo e uma ênfase à produção de conhecimento como indispensável à manutenção das estruturas de poder, muitos aspectos afastam a teoria pós-colonial da descolonial. Em suma, se com o marxismo a teoria descolonial diverge no sentido de destacar a importância do olhar para as instituições, a epistemologia e a cultura como elementos cruciais para a exploração capitalista e para a hierarquização da sociedade, da pós-colonialidade o pensamento descolonial diverge na medida em que intenta atrelar as hierarquias locais à narrativa do capitalismo global, não à maneira decentralizada dos pós-modernos, mas por meio de uma verdadeira recentralização. A pós-colonialidade é, antes de tudo, uma aposta política para descolonizar o saber-poder e problematizar a construção do outro. A descolonização pode tornar-se, além disso, um processo de reaprendizagem das estruturas cognitivas, ou seja, um processo de luta pelos sentidos.