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CAPÍTULO 4 A PAZ POR VIR DAS MULHERES

5.2 Patriarcado e colonialismo

Data do quarto milênio a.C. o início do desenvolvimento do sistema patriarcal em que o domínio social predominante cabe a pais e maridos. Essas sociedades agrícolas tinham desenvolvido novas formas de desigualdades entre homens e mulheres. O deslocamento da caça e da coleta para a agricultura pôs fim, gradualmente, a um sistema de considerável igualdade entre homens e mulheres: “Na caça e na coleta, ambos os sexos, trabalhando separados, contribuíam com bens econômicos importantes. As taxas de natalidade eram relativamente baixas e mantidas assim em parte pelo aleitamento materno”. (STEARNS, 2012, p. 31).

A agricultura beneficiou o domínio masculino. Os homens passaram a ser responsáveis pela plantação, enquanto cabia às mulheres a assistência feminina. A vida nômade da caça e da coleta limitava o confinamento doméstico das mulheres. Com isso, a taxa de natalidade elevou- se, assim como o trabalho das crianças começou a ser aproveitado: “Dessa forma, as vidas das mulheres passaram a ser definidas mais em termos de gravidez e cuidado das crianças. Era o cenário para um novo e penetrante patriarcalismo”. (STEARNS, 2012, p. 32). Foi a partir da instituição da propriedade nas sociedades agrícolas que os homens passaram a ter preocupação com a herança, começando a regular a sexualidade das esposas. Havia a preferência por filhos ao invés de filhas: “Muitas famílias adotaram o infanticídio para ajudar a controlar a taxa de natalidade, eliminando as meninas com mais frequência”. (STEARNS, 2012, p. 32-33). É o início da domesticidade da vida privada.

Os sistemas patriarcais enfatizavam culturalmente a fragilidade das mulheres e a sua inferioridade. Às mulheres cabiam os afazeres domésticos, sendo que, em alguns casos, também havia restrições para que elas frequentassem o espaço público. Muitas mulheres ficaram tão intimidadas e isoladas pelo sistema que manifestações de protesto tornavam-se improváveis – embora algumas mulheres pudessem obter certa satisfação em manipular seus maridos e filhos ou em dar ordens a mulheres consideradas inferiores no ambiente doméstico. Isso significa, para o espaço doméstico e para quem o habita, o desmoronamento de seu valor e de sua munição política, quer dizer, da sua capacidade de participação nas decisões que afetam toda a coletividade.

As consequências da ruptura dos vínculos entre mulheres e o fim das alianças políticas que eles permitiam tornaram-nas mais vulneráveis à violência doméstica, por sua vez potencializada pelo estresse causado pela pressão do mundo exterior sobre elas. A

despolitização do espaço doméstico torna-o vulnerável e frágil. São inúmeros os testemunhos, graus e meios cruéis de vitimização que ocorrem quando desaparece o amparo do olhar da comunidade sobre o mundo familiar. Desmoronam a autoridade, o valor e o prestígio das mulheres e de sua esfera de ação. (SEGATO, 2010). Na Grécia antiga, argumenta Arendt (2001), a casa, o espaço doméstico e a família constituíam um ambiente de dominação, violência e tirania. Assim, mulheres, crianças e escravos eram os dominados. A família constituía o campo do pré-político, o lugar do atendimento das necessidades.

Chama-se de privado porque é o local onde é proibido legislar, tomar decisões, onde ocorre a suspensão do direito, ou seja, no qual mulheres, crianças, escravos e, mais recentemente, trabalhadores domésticos estavam privados de direitos. Ainda conforme Hannah Arendt (apud MANZINI-COVRE, 1996, p. 38), “o privado não tem a conotação do mundo contemporâneo, de intimidade, mas sim de privação – de indivíduos privados de participar da vida pública, privados de direitos, privados de poder”. Nessa perspectiva, a família constitui-se como o lugar dos desiguais, embora paradoxalmente constitua o espaço de liberdade do homem, local onde ele tem sua existência assegurada pelo atendimento de suas necessidades no âmbito doméstico e onde a liberdade e a política são sustentadas pela tirania. Assim se estrutura a relação entre o espaço público e o privado na sociedade capitalista. Cabe salientar, portanto, que a democracia que conhecemos, fundada na ideia da polis, é a democracia dos homens. O alcance do patriarcalismo foi poderoso e extenso (STEARNS, 2012). A agricultura e, posteriormente, a civilização aprofundaram de maneira progressiva as desigualdades entre homens e mulheres. Contudo, os sistemas patriarcais variaram muito, nunca sendo de fato universais. Isso significa reconhecer que as relações injustas entre homens e mulheres já existiam antes da chegada dos colonizadores à América. Há um patriarcado e um machismo latino, negro, indígena e popular que também tem um caráter sexuado da dominação racista. O patriarcado é um método que objetifica para deslegitimar. Com isso, a relação patriarcal supõe formas de opressão e converte-se em um meio perfeito para a penetração do racismo e, mais tarde, do neoliberalismo.

Com a chegada dos europeus à América, a dominação europeia afetou inevitavelmente o status dos homens nativos, que passaram a ser forçados a uma relação de subordinação com os colonizadores. Na maioria dos casos, ocorreu maior subjugação das mulheres, à medida que os homens afirmavam sua masculinidade de novas maneiras. Os colonizados foram definidos, desde o primeiro momento da colonização, como não humanos, cuja animalidade impedia-os de serem vistos como homens e mulheres, ainda que as mulheres brancas fossem consideradas

como não homens.

A dicotomia central da modernidade colonial é a hierarquia dicotômica entre o humano e o não humano, porque homens e mulheres só alcançam o status de humanos ao tornarem-se civilizados. O processo de redução ativa das pessoas, a desumanização que as tornava aptas para a classificação e o processo de subjetivação41 objetivavam converter os colonizados em

menos que seres humanos. A colonialidade é negação. Tanto a modernidade quanto a colonialidade são processos que negam a existência do outro, muitas vezes com o intuito de controlá-lo. Nesse sentido, são processos violentos, dado que a violência está impregnada da negação da existência do outro. Assim, podemos dizer que a violência sempre foi endêmica na constituição da sociedade brasileira.

As mulheres integraram-se mais rapidamente à vida nas cidades, ao serviço doméstico e a atividades independentes. O contato com os europeus, de modo geral, piorou as condições das mulheres índias, em parte por causa da reação dos homens índios, mas principalmente porque os europeus tentavam reforçar a hierarquia de domínio masculino. Além disso, os europeus demonstravam espanto com a situação dos índios e estavam convictos, muitas vezes, de que estavam ajudando as mulheres. Paula Allen (1992) afirma que muitas comunidades originárias americanas eram matriarcais e reconheciam positivamente tanto a homossexualidade quanto o “terceiro gênero”42. Também entendiam o conceito de gênero de forma igualitária, não da forma

subordinada como o capitalismo eurocentrado decidiu impor.

Na sociedade Yoruba, não havia um sistema de gênero institucionalizado. Antes da colonização ocidental, essa categoria não se configurava como um princípio organizador. Entre os Yuma, por exemplo, havia uma tradição para designar o gênero baseada nos sonhos. Se uma fêmea sonhava com armas, transformava-se em macho para todos os tipos de propósitos práticos. Allen (1992) também evidencia que a heterossexualidade característica da construção colonial moderna das relações de gênero é produzida e construída miticamente. Portanto, no processo colonizador, havia conflito em relação ao entendimento dos conceitos de trabalho e sexualidade que, por sua vez, reforçavam a deterioração da condição das mulheres. Stearns (2012, p. 111-112) descreve esse processo:

As visões europeias sobre gênero eram menos igualitárias do que as da maioria dos grupos indígenas, pelo menos até o final do século XIX. Essas visões eram constituídas por pressões para mudar para a agricultura e se afastar de conflitos

41 Subjetivação, assim como escreveu Michel Foucault (1984), é a construção de sujeitos pela ação de práticas e discursos de poder, frequentemente relacionados com a sexualidade e a dominação.

42 Michael Horswell (2003) explica que falar em “terceiro gênero” não significa que existam três gêneros. No entanto, é uma maneira de desprender-se da bipolaridade de sexo e gênero.

armados, o que teve como inesperada consequência a volta da agressão dos índios para dentro do grupo, em geral contra mulheres. Essa situação certamente decorreu da incapacidade dos europeus de admitir o bom funcionamento de outro sistema de gênero diferente do seu.

A chegada dos portugueses e espanhóis trouxe óbvios desafios para as mulheres e os homens indígenas. No caso dos militares espanhóis, estes enfrentaram com frequência a oposição militar tanto de mulheres quanto de homens. Os primeiros resultados das conquistas no século XVI foram desorientadores: mortes massivas por doenças como varíola, abuso sexual e sequestro de mulheres pelas forças militares:

O contato entre colonizadores e indígenas resultou em consequências nefastas para os índios, em especial no que se refere às doenças que acompanhavam a chegada das caravelas; doenças para as quais os índios não possuíam defesa orgânica alguma. Tal fato acabou gerando uma multidão de órfãos desamparados; o que acabou levando os jesuítas a criarem os colégios de meninos (VENÂNCIO, 2012, p. 189).

Os colonizados eram julgados por suas deficiências e, a partir delas, a missão civilizadora justificava enormes crueldades. Muitas vezes, após uma vitória, exigiam mulheres (que também eram consideradas e tratadas como objetos), mercadorias e recompensas: “Vocês deverão entregar mulheres com pele clara, milho, galinhas, ovos e tortas”, dizia um relatório asteca.

Em sua obra Sexo y conquista, Araceli Barbosa Sánchez (1994) analisa como o ódio dos espanhóis contra as mulheres e contra a “feminilidade” dos homens levou os conquistadores a práticas de violência extrema, tortura, morte e degradação dos cadáveres, das mulheres indígenas que resistiam à violação e contra os “sodomitas”, equiparando-os de alguma maneira. Historicamente, os povos originários eram vistos como selvagens e violentos e as mulheres indígenas como objetos sexuais fáceis e acessíveis. Anne McClintock (1995) argumenta que o colonizador sofre de ansiedades e temores com respeito ao incógnito que assume uma conotação sexual, um medo de ser devorado sexualmente; por isso, precisa ser controlado.

Coincide que toda situação de conquista e dominação cria condições para a apropriação sexual das mulheres dos grupos derrotados para afirmar a superioridade do vencedor. Essas condições perpetuam-se na violência contra as mulheres e configuram o imaginário de que a culpa pelo abuso ou pela violação é do derrotado (ou da vítima). O imaginário do linchamento também pode ser associado à linguagem da violência que foi utilizada pelos colonizadores desde o princípio em terras latino-americanas. A missão civilizadora usava a dicotomia hierárquica de gênero como juízo, ainda que a generização dicotômica dos colonizados não

fosse o objetivo do juízo normativo.

À medida que aumentava o intercâmbio entre europeus e indígenas, os líderes cristãos julgavam como imorais as práticas sexuais que envolviam particularmente as mulheres, como explica Stearns (2012, p. 114-115):

(...) ávidos por impor o casamento cristão, os missionários trabalharam para fragmentar o amplo e extensivo grupo em que as famílias se constituíam, considerando-os, entre outras coisas, centros de vício sexual. O resultado foi o aumento do isolamento das mulheres umas das outras.

A expansão colonial sobre a vida doméstica – o modelo da mãe branca, saudável e maternal – ocorreu principalmente em contraposição às figuras de uma feminilidade degenerada como a das indígenas e, mais tarde, das escravas africanas. Segundo María Lugones (2011, p. 108):

La transformación civilizadora justificaba la colonización de la memoria, y por ende de los sentidos de las personas de sí mismas, de la relación inter- subjetiva, de su relación con el mundo espiritual, con la tierra, con el mismo tejido de su concepción de la realidad, de su identidad, y de la organización social, ecológica y cosmológica.

A modificação do modelo de mulher para o de mãe cuidadora pode ser observado, inclusive, nas obras de arte produzidas após o século XV. A criação de figuras de linguagem também é outra maneira de exercer a colonialidade. Esses foram os meios pelos quais a raça, a etnicidade e a classe social se entrecruzaram com a sexualidade para criar normas conjugais e familiares e as imagens de nação que se buscava construir. Em outras palavras, houve uma sexualização da raça e uma racialização do sexo. Para as mulheres, a colonização significou um duplo processo de inferiorização racial e subordinação do gênero. Para os missionários, os indígenas ficavam demasiadamente nus; praticavam sexo antes do casamento, adultério e poligamia.

Foi assim que as missões cristãs passaram a exigir que os índios usassem roupas, mesmo habitando regiões muito quentes e úmidas. Com certa frequência, separavam homens e mulheres jovens para evitar relações sexuais e intervinham ativamente na escolha dos parceiros de casamento na tentativa de assegurar que as famílias fossem fiéis aos preceitos cristãos. Além disso, atacavam práticas tradicionais funcionais como o aborto. Segundo Oyéronké Oyewùmi (1997), a associação colonial entre anatomia e gênero é parte da oposição binária e hierárquica, aspecto central na dominação das fêmeas introduzida pelo colonialismo. As mulheres são aquelas que não possuem um pênis, não têm poder e não podem participar da arena pública. Peter Stearns (2012, p. 113) destaca:

Em geral, e para além da questão da sexualidade, os esforços missionários se voltaram para a redução dos papéis desempenhados pelas mulheres na vida indígena, tanto na América Central quanto na do Sul. Aos olhos dos missionários, as mulheres eram parideiras e agentes domésticos, irracionais e, com frequência, problemáticas. Raramente conferiam muita virtude mesmo às mais fiéis convertidas, embora, ironicamente, tenham sido mulheres, incluindo índias, os principais suportes da Igreja na América Latina.

Com a chegada dos europeus, as mulheres indígenas perderam terreno no campo religioso, exceto por benefícios espirituais que o culto católico proporcionou a muitas delas, embora o catolicismo exigisse que as mulheres fossem subordinadas nos assuntos que envolvessem a religiosidade. Elas também perderam espaço nas posições de poder, já que a burocracia própria dos europeus selecionava sempre os homens para posições como a de dirigentes de aldeias, por exemplo. As índias tornaram-se católicas devotas e membros ativos de irmandades e fraternidades que criavam novas relações de solidariedade em um tecido social mais antigo, porém desmembrado, e asseguravam a companhia em velórios e enterros.

O colonialismo europeu marcou a América Latina com cicatrizes profundas: em sua maior parte é um continente católico, regido por uma economia de mercado determinada por um centro externo à sua região, cuja estrutura é patriarcal, racista e discriminadora. Também são frutos do colonialismo capitalista, a pobreza e a desigualdade, visto que aos países colonizadores interessava retirar a riqueza das colônias para a sua manutenção. Essa pobreza, “filha” da discriminação racista colonial, tem como principal consequência a falta de acesso a bens e serviços, sem falar que torna a pessoa “menos pessoa”, o que autoriza, de certo modo, o uso de ações violentas e o descaso.

A condição de gênero e a condição das mulheres negras e indígenas derivam ambas da mesma tecnologia de hierarquização que sempre confere a mulheres, negros e índios o lugar do derrotado, tirando sua voz e possibilidade de reconhecer-se positivamente em seus saberes, que são incorporados aos saberes dos homens ocidentais (exatamente como se exclui os derrotados da história).

A modernidade organiza o mundo ontologicamente em categorias homogêneas, atômicas, separáveis. A crítica do universalismo feminista feita pelas mulheres negras e latinas centra-se na ideia de que a intersecção entre raça, classe, sexualidade e gênero vai além das categorias da modernidade, tendo-se a consciência de que na América Latina a ordem sócio- racial hierárquica das desigualdades interage com a etnicidade.