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1 – A ISENÇÃO OPE LEGIS DO LOCADOR FINANCEIRO E A

DESCONFORMIDADE DO BEM.

A relação triangular dos contratos de locação financeira (fornecedor/locador/locatário) leva a diversas considerações doutrinárias e jurisprudenciais, nomeadamente no que diz respeito às responsabilidades que estão em causa quando estamos perante uma situação de desconformidade do bem objeto da locação financeira. Tentemos, pois, perceber qual o âmbito da tutela do locatário financeiro.

O Decreto-Lei nº 149/95, no seu artigo 12º dispõe que o locador “não responde pelos vícios do bem locado ou pela sua inadequação face aos fins do contrato, salvo o disposto no artigo 1034º do Código Civil”. De facto, a tarefa do locador financeiro é tão só a de financiar, surgindo como um intermediário financeiro,

68 Cfr. MORAIS, Fernando de Gravato, ob. cit. pag. 332.

69 Cfr. Ac. Trib. Rela. Porto de 06.03.2014 e ainda o considerado pelo Ac. do STJ de 14.04.2011.

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alheio ao bem em questão. Interessa-nos, pois, perceber o âmbito da relação entre o locatário e o fornecedor do bem.

De facto, normalmente é o futuro locatário que se dirige ao estabelecimento do fornecedor com o intuito de obter informação sobre o bem a adquirir, escolhendo-o. Muitas vezes é o próprio fornecedor que dá a conhecer ao futuro locatário possibilidade da celebração de um contrato de locação financeira, possuindo mesmo os impressos para tal. É certo que nesta aceção o locador financeiro surge como um mero financiador, totalmente alheio ao bem, a mais das vezes que nem sequer chega a ter contacto com este, sendo diretamente entregue ao locatário. Esta é apenas uma das imagens que a locação financeira reveste. Mas cumpre dizer que é, de longe, a mais corrente.

A lei atribui ao locador financeiro esta exoneração, uma isenção da responsabilidade deste, não respondendo pelos vícios do bem locado, somente pelos vícios de direito. Esta é uma matéria que, também ela, é alvo de diversas orientações na doutrina e jurisprudência não só portuguesa, mas também na

comparada. Em Portugal temos autores como LEITE DE CAMPOS71 que defende que, pelo facto de ser o

locatário a escolher o bem, limitando-se o locador a apenas financiar o mesmo, deve ser aquele a interceder junto do vendedor na eventualidade de qualquer defeito do bem. Aliás, para este autor não se trata de um “poder”, mas antes de um “dever” que o locatário tem de agir contra o vendedor, no interesse do locador. Na

esteira destes pensamentos surge CALVÃO DA SILVA72, para quem é perfeitamente natural que, tendo sido

o bem escolhido pelo locatário e vestindo o locador a sua normal veste de financiador, este esteja isento de

responsabilidades.73

GRAVATO MORAIS74 afirma que face às posições adotadas na doutrina portuguesa é de fácil

conclusão de que estamos perante uma isenção ope legis da responsabilidade do locador financeiro. Mas vai

mais além. Este autor desconstrói o artigo 12º do Decreto-Lei nº 149/95, confrontando os preceitos deste artigo com outros próximos, nomeadamente o artigo 1032º do CC e o nº 1 do artigo 913º do CC. Identifica como amplos os vícios a que se refere o artigo 12º do referido Decreto-Lei, por forma a englobar nesta categoria qualquer desconformidade do bem com o contrato, quer resulte de um qualquer vício presente na coisa ou na falta de qualidade da mesma, a qual, obviamente, não foi garantida pelo vendedor no momento de aquisição. Segundo este autor, o conceito de defeito no quadro jurídico da locação financeira não é diferente do vertido no artigo 913º do CC e do regime jurídico da venda de bens de consumo – artigo 2º, nº 2 do Decreto-Lei nº 67/2003, de 8 de abril.

Em ordenamentos em que o direito positivo não se tenha ocupado desta questão de uma forma tão dedicada como o nosso, uma exoneração do locador financeiro pode suscitar maiores incertezas.

GONZÁLEZ CASTILLA75 explica que a inclusão nos contratos de locação financeira de uma cláusula de

exoneração do locador surge na necessidade que as sociedades financeiras têm em que seja o financiado, e não o financiador, a assumir os riscos de investimento do capital financiado, sub-rogando-lhe em troca os

seus direitos e eventuais atos contra o vendedor do bem. No mesmo sentido vai GUTIÉRREZ GILSANZ 76

para quem uma cláusula de exoneração de responsabilidade será lícita sempre que não exista dolo por parte

71

Cfr. CAMPOS, Diogo Leite de, ob. Cit., pág. 104.

72 Cfr. SILVA, João Calvão da, ob. Cit. pág. 23.

73 No mesmo sentido v.g DUARTE, Rui Pinto, ob cit., pp. 56 e 57, 184 e 185.

74 Cfr. MORAIS, Fernando de Gravato, ob. cit. pp. 186 e 187.

75 GONZÁLEZ CASTILLA, Francisco, ob cit. pp 182, 183 e 184.

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do locador financeiro. Entende que este tipo de cláusula evitará que o locador financeiro se oponha às ações do locatário financeiro, nomeadamente o poder dirigir-se ao vendedor e exigir deste a a reparação dos defeitos, a garantia de funcionamento adequado do bem ou, inclusivamente, a entrega de outro bem com

características idênticas. Este autor é defensor da teoria de que a subrogação convencional permite, ainda,

ao locatário financeiro obter não só a resolução do contrato de compra e venda, mas também a resolução do

contrato de locação financeira. BUITRAGO RUBIRA77 também entende tratar-se de um caso de subrogação

convencional totalmente válido e eficaz, em que o locatário financeiro tem a faculdade de utilizar contra o

vendedor do bem todas as ações que “ex iure proprio” pertencem ao locador financeiro enquanto comprador

do bem.

Como já referido, esta regra é a comummente aceite pela doutrina e jurisprudência nacional e estrangeira. No entanto, há autores que, defensores da natureza locatícia do contrato de locação financeira, invocam a nulidade de cláusulas de exoneração de responsabilidade do locador financeiro. É o caso de

RESCIO78, para quem, apesar do carácter financeiro deste contrato, o mesmo não se pode escusar da sua

natureza locatícia, o que, por si só, torna a cláusula de exoneração uma cláusula abusiva. Para este autor a função não é tudo e o carácter financeiro do contrato não deve ser a razão pela qual se deve evitar toda a

disciplina jurídica da locação e da compra e venda com reserva de propriedade.79Não nos parece, à margem

de tudo o que até aqui ficou analisado, ser esta uma posição a ter em conta.

Uma imagem que não poderíamos deixar de retratar é a que nos é transmitida pelos autores que defendem a isenção de responsabilidades do locador financeiro mediante a condição da existência (ou disponibilização por aquele) de meios de reação do locatário diretamente contra o vendedor. É o que GARCIA SOLÉ defende. Para este autor, o locador financeiro ficará exonerado de qualquer responsabilidade se, por um lado, este atuar sem dolo e sem conhecimento dos vícios e, por outro, este é obrigado a conceder

ao locatário meios para poder reagir contra o vendedor80 . Parece-nos claro que esta tentativa de garantir a

defesa do locatário financeiro é de todo legítima. De facto, em ordenamentos jurídicos em que o direito positivo ainda não adotou qualquer posição face a uma exoneração concreta do locador financeiro e, subsidiariamente, um modelo de tutela do locador financeiro, tal solução parece-nos, à primeira vista, que serve o propósito. Compreende-se esta posição pela consciência de prover o locatário financeiro de armas que o permitam colocar-se numa situação tão forte e privilegiada quanto a do locador financeiro, num

eventual confronto com o vendedor. É a referência que nos dá GIORGIO DE NOVA81, considerando a

legalidade da cláusula de exoneração total do locador financeiro na exata medida em que esta coloca o locatário nas necessárias condições de exercer os seus direitos face ao vendedor do bem.

Ora, estamos já em posição de assumir que em face do quadro jurídico vigente da locação financeira82

e das posições doutrinais analisadas, o locador financeiro exonera-se de qualquer responsabilidade face à desconformidade do bem pois este é o mero financiador da aquisição do mesmo, não se interessando por ele, a mais das vezes nem chega sequer a conhecê-lo.

77 BUITRAGO RUBIRA, José Ramón, ob cit. pp. 197 e 198.

78 RESCIO, G.A., La translazione del rischio contrattuale nel leasing, 1989, pp. 150 e ss., apud GONZÁLEZ CASTILLA, ob cit. p. 184.

79 idem

80 GARCÍA SOLÉ, F., La subrogación em los derechos de la compañia de leasing frente al proveedor o vendedor, Act. Civil, 1989, pp 299 e ss, apud GONZÁLEZ CASTILLA, ob cit. p. 184 e apud MORAIS, Fernando de Gravato, ob cit. p. 186.

81 De Nova, Giorgio, Il contrato di leasing, 3ª Ed., Milano, 1995 apud MORAIS, Fernando de Gravato, ob cit. p. 186.

82 O artigo 12º do Decreto-Lei nº 149/95 consagra a exoneração do locador financeiro no tocante aos riscos inerentes à desconformidade do bem.

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