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SEÇÃO II METODOLOGIA

2.4 Descrição dos Participantes

Dentro da pesquisa que segue a PCCol, o pesquisador não é mero observador passivo que tem o intuito de somente descrever e entender o outro. Ao mesmo tempo, o outro jamais pode ser entendido como mero objeto do pesquisador. Todos (pesquisador e o pesquisado) são, nessa vertente metodológica, coparticipantes ativos e sujeitos no desenvolvimento e transformação do conhecimento. Segundo Kemmis (1987, p. 87-90), toda pesquisa que almeja a reflexão crítica necessita de um pesquisador disposto a deixar de ser aquele que apenas vislumbra o contexto e insere-se como agente que integra os processos que nele ocorrem.

Falar de reflexão crítica, de acordo com Kemmis (1987), ultrapassa o ato de falar sobre "pensamento crítico". É preciso que todos os envolvidos localizem-se em um quadro de ação que está, por sua vez, inserido na história de uma situação (atividade social) (Cf. KEMMIS, 1987). Assim, é necessário que todos os ―participantes negociem suas agendas na construção do conhecimento‖, enquanto refletem ações diárias cuja compreensão está, muitas vezes, ―distorcida ou escondida pelo senso comum‖ (MAGALHÃES, [1994] 2007a, p. 61). As ações diárias desses participantes são espelho das suas vivências, experiências e concepções, que precisam, no decorrer da pesquisa, ser refletidos, conflitados e transformados. Por conta disso, é importante descrever e inserir a pesquisadora como integrante dos participantes de pesquisa.

2.4.1 Pesquisadora40

Meu interesse pelos estudos sobre a surdez e suas implicações linguísticas, históricas, sociais, culturais e educacionais surgiu já na graduação. Mas, antes da graduação, já havia conhecido surdos. De 2005 a 2008, trabalhei como operária em algumas montadoras automobilísticas e metalúrgicas. Em uma montadora, conheci Ana41, a única surda do turno da manhã. Foi no setor de separação de peças irregulares que Ana e eu iniciamos uma breve, mas marcante amizade.

Surda por conta de rubéola, Ana era oralizada, mas com dificuldade de articulação. Gostava de ensinar sinais a todos que mostravam interesse. Foi com ela que aprendi os meus primeiros sinais em Libras. Eu a ajudava no preenchimento de fichas,

40 Como essa participante trata-se da pesquisadora, foi necessário o uso da 1ª pessoa do singular em sua descrição.

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pois ela tinha muita dificuldade com o português escrito. Ana, durante o trabalho na linha de montagem, mostrava em seu rosto uma expressão de angústia e tristeza, pois via todas as colegas conversando durante o trabalho. Ela, no entanto, estava com as mãos ocupadas pelo trabalho e, consequentemente, impossibilitada de conversar.

Ana contava sobre o amor pela filha ouvinte que sabia muito bem a Libras, sobre ter desistido da escola no Ensino Médio, pois dizia que os professores a ignoravam, sobre a relação difícil com os familiares que não entendiam bem sua oralização e não se interessaram em aprender a Libras que lhe foi ensinada por amigos surdos. Fui desligada da montadora e perdi o contato com Ana, que tanto me marcou com suas expressões faciais tão expansivas e história de vida.

Em 2009, no primeiro ano de graduação, conheci Janaína42, uma colega de turma que se tornou uma grande amiga. Ela disse ter vontade de estudar sobre surdez e educação. Foi nesse momento que meu interesse sobre esse tema de pesquisa emergiu. Poderia eu, um dia, contribuir, mesmo que minimamente, para transformar o quadro educacional que minha colega Ana vivenciou na educação básica? Talvez, poderia. Falei a Janaína que a temática me encantava também e fomos em busca de orientação. Esse primeiro norteador veio da professora Dra. Fernanda Miranda Cruz, docente da área de linguística da UNIFESP.

Foi sob a sua orientação que fiz minha primeira iniciação científica, de cunho investigativo-teórico, intitulada ―Investigação Teórica acerca das Concepções Identidade e Cultura Surda‖. Esse 1º ano de pesquisa (de 2010 a 2011) me deu bases e esclarecimentos sobre como a surdez é vista e refletida nos campos educacionais, culturais e linguísticos. Nesse período, também fiz cursos para aprender a Libras de modo mais formal.

Ao finalizar essa iniciação, fui apresentada a quem traria muitas mudanças em minha vida acadêmica. Foi em uma roda de conversa, realizada em um evento do departamento de Letras da UNIFESP, que tive o primeiro diálogo com a professora Dra. Sueli Salles Fidalgo. Ela contava sobre seu trabalho com Educação Inclusiva, Necessidades Educacionais Específicas e Formação de Professores. Nesse instante, decidi que queria fazer uma nova iniciação científica na qual fosse necessário ir a

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campo. Ao relatar meu desejo de ir a campo à professora Fernanda, esta me encaminhou à professora Sueli.

Sob a orientação da professora Sueli, realizei a iniciação científica ―O Sujeito Surdo Bilíngue: A Construção do Indivíduo Surdo em Meio a Dois Mundos e Duas Línguas‖, durante 2 anos (de 2013 a 2015), financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). Nessa pesquisa, fui a campo e, através dos relatos dos participantes (4 surdos adultos bilíngues), percebi, dentre outros aspectos, que a família tem papel fundamental no desenvolvimento do sujeito surdo, bem como o fato de que a ausência da Libras, nesse contexto, implica impactos marcantes na vida social e educacional.

Concomitantemente, fui auxiliar de classe em uma sala de aula especial para crianças surdas em uma escola municipal de Guarulhos, além de continuar estudando Libras. Foi nessa classe, com o professor bilíngue, o instrutor surdo e as crianças que aprendi, na prática, como a Libras era fundamental para aquele alunado. Nessa escola, vi o quanto o trabalho pedagógico abarca não somente a sala de aula, mas a comunidade escolar e as famílias dos alunos. O envolvimento (ou não) das famílias das crianças refletia de forma clara nos seus desenvolvimentos escolares.

Além disso, no Grupo de Estudos/Curso de Extensão sobre Cultura e Identidade Surda (GEICS)43, coordenado pelos professores Márcio Holosi, Sandra Campos e Sueli Fidalgo, houve diálogos, leituras e construção de artigos que abordaram as questões do contexto familiar, o desenvolvimento de língua dos surdos, língua materna e primeira língua. Ainda pude escrever um artigo em parceria com o professor Márcio Hollosi acerca de um dos temas discutidos no grupo: língua materna e primeira língua. Foi, também, nessa época, que pude finalizar até o Módulo 3 o curso de Libras na Prefeitura de Guarulhos, além de ter atuado como estagiária neste.

Foi a partir dessas experiências que comecei a me voltar de forma mais direcionada às questões sobre a Libras e o contexto familiar dos surdos. Assim, busquei leituras e mirei a temática em minha pesquisa de mestrado. Agora, tenho a oportunidade de mergulhar no convívio familiar de uma criança surda e compreender, (re)construir

43 Posteriormente, esse grupo de estudos foi transformado no Grupo de Pesquisa: Estudos sobre Identidade e Cultura Surdas, GP da UNIFESP, cadastrado no CNPq, sob a liderança das professoras Sueli Fidalgo e Sandra Campos, e do qual a participante pesquisadora deste trabalho faz parte.

em conjunto com essa família a comunicação e interação através da Libras com seu filho surdo.

2.4.2 Nina (a mãe)

Nina44 é uma jovem dona de casa de 22 anos, natural da cidade de Juazeiro, no interior da Bahia. Engravidou aos 16 anos e teve seu filho, Gustavo45, aos 17. O pai do menino não assumiu a paternidade, e Nina, com apoio de sua irmã e sua mãe, se responsabilizou pela criação de Gustavo. Uma otorrinolaringologista diagnostica, através do exame BERA46, que Gustavo, com 6 meses de vida, estava perdendo a audição gradativamente e que, em breve, se tornaria surdo profundo. A médica apenas a orientou a procurar tratamento em um hospital de Salvador.

A ida para a capital baiana se deu pela busca de mais possibilidades para Gustavo. Após enfrentar longas filas, houve muitos exames, o uso de aparelho auricular e, por fim, veio a indicação do implante coclear.

Esperançosa e em busca de um melhor tratamento para o filho, Nina vem para São Paulo por volta do último trimestre de 2017. Sem emprego e em um estado desconhecido, além dos exames e orientações dadas pelos médicos, ela traz consigo a vontade de lutar por melhores oportunidades para Gustavo. Em São Paulo, ela começou a frequentar uma igreja evangélica. Uma das frequentadoras a indica a EMEBS. Assim, Nina matriculou Gustavo na escola no início de 2018 (uma turma da educação infantil – período da tarde47). Foi nessa EMEBS que Nina descobriu outras perspectivas para o desenvolvimento escolar, linguístico e social de seu filho e sua família.

A equipe pedagógica disse a Nina o quão importante seria que ela aprendesse Libras e frequentasse o curso do idioma ofertado na escola para toda comunidade e familiares. É a partir daí que este trabalho se insere e se entrelaça ao processo de ensino- aprendizagem dessa mãe.

44 Nome fictício para preservar a identidade da participante.

45 Nome fictício para preservar a identidade do filho da participante.

46 BERA - Brainstem Evoked Response Audiometry, também conhecido como PEATE (Potencial Evocado Auditivo do Tronco Encefálico), tem o intuito de examinar a integridade das vias auditivas, desde a orelha interna até o córtex cerebral. Com esse exame, pode-se diagnosticar se existe ou não perda de audição e, caso haja, se esta se relaciona com lesões na cóclea, no nervo auditivo ou no tronco encefálico (Informações obtidas em: Portaria 423/00. BRASIL. Ministério da Saúde: Departamento de Nacional Auditoria do SUS – Sistema Único de Saúde, Coordenação de Sistema de Informação). 47

2.4.3 Pedro (o padrasto)

Pedro48 é um rapaz de 22 anos, funileiro, nascido em Minas Gerais, mas vive desde pequeno na cidade de São Paulo. Conheceu Nina no início de 2018 e a amizade tornou-se namoro. Atualmente, estão noivos, amasiados e com planos de casar no próximo ano.

Antes de conhecer Nina, jamais havia se deparado com as questões que sucedem na criação de uma criança surda. O desejo de querer entender e se relacionar melhor com Gustavo fez com que Pedro iniciasse o curso de Libras. Sempre frequentou o curso com Nina desde o seu princípio. Assim que firmou compromisso, se responsabilizou pelos gastos e questões financeiras de mãe e filho. Pedro participa de toda a vida escolar de Gustavo: momentos de lazer, festinhas na escola etc. Acabou se tornando elemento importante no convívio e relações de Gustavo e Nina. Por isso, sua participação emergiu como fundamental para esta pesquisa.