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DESENCONTROS ENTRE ALFABETIZAÇÃO E MÚSICA

4 III MOVIMENTO (Allegretto) – ENCONTROS, DESENCONTROS E

4.2 DESENCONTROS ENTRE ALFABETIZAÇÃO E MÚSICA

Vygotsky (2008) sinaliza que, semanticamente, a criança parte do todo, de um complexo significativo, e só mais tarde começa a dominar o significado das palavras e a dividir o seu pensamento em unidades, uma diferenciação que não era percebida por ela no início. Logo, o movimento semântico e o sonoro fonético são opostos e complementares.

É nesse ponto que o problema comparativo da música com a alfabetização no campo da linguagem se estabelece. Trubetzkoy27 (1981, p. 16-17) elenca que “[…]

os sons não são elementos puramente físicos, mas psicofísicos por definição […] o que distingue o fonema do som não é o caráter puramente psíquico, mas antes seu caráter diferencial que faz dele um valor linguístico”. Para o autor, fonema é a menor unidade distintiva na estrutura de uma língua. Ou seja, a linguagem humana possui todo um sistema que determina um processo de percepção sonora e assegura a codificação de seus elementos isolados e sua conversão em formas complexas de percepção sonora. Ainda sobre a linguagem humana, Luria (1979, v.II p. 91) esclarece que ela

[…] dispõe de todo um sistema de códigos sonoros, à base dos quais se constroem os seus elementos significantes: as palavras. Para distinguir os sons do discurso ou fonemas não basta possuir um ouvido agudo; para percebê-los é necessário efetuar um complexo trabalho de discriminação dos indícios essenciais do som do discurso e de abstração dos traços estranhos, secundários para tal distinção. Cada etapa historicamente formada possui um complexo código de traços essenciais, que permitem distinguir o sentido de uma palavra pronunciada; na língua portuguesa esses traços são, por exemplo, as marcas de sonoridade ou surdez das consoantes (sons muitos semelhantes que se distinguem por apenas um destes traços) como, por exemplo “b” e “p”, “d” e “t” que permitem mudar o significado da palavra. Podemos tomar como exemplo a distinção entre palavras como “braça” e “praça”, “bala” e “pala”, “dote” e “pote”. Esses traços sonoros, de significado semântico distintivo, são denominados traços fonemáticos; aqui a essência da captação auditiva do discurso consiste em 27 Nikolay Sergeyevich Trubetzkoy (Moscou, 1890 - Viena, 1938) foi um linguista russo cujos preceitos formaram o núcleo do Círculo de Praga de Linguística Estrutural. Ele é considerado o fundador da morfofonologia. No seu livro Princípios de Fonologia, publicado após sua morte, apresenta sua famosa definição de fonema como a menor unidade distintiva na estrutura de uma língua. Esse trabalho foi crucial para que a fonologia e a fonética passassem a ser vistas como duas ciências distintas.

distinguir esses traços da cadeia falada, torná-los dominantes, abstraindo simultaneamente o timbre com o qual são pronunciadas as palavras e a altura do tom que distingue a voz de quem as pronuncia.

Se o ser humano não tiver domínio perceptivo desse sistema fonemático de outra língua, ele não só não entenderá, como também não escutará os sons que o compõem.

Estabelecemos aqui o limite máximo a que este trabalho se propõe a analisar as diferenças e similitudes em relação à alfabetização e à musicalização. É a partir deste momento que passam a se estabelecer algumas diferenças entre os processos e relações com outras áreas do conhecimento.

Na Fonologia, segundo Trubetzkoy (1981) e Luria (1979), o fonema é o elemento básico da linguagem, entendida aqui como a terceira função tratada por Vygotsky (2008), a da comunicação. Ou seja, são aqueles sons que erroneamente representamos por letras, os quais em si mesmos não têm qualquer significado, mas, quando combinados, geram as palavras e, através dessas, carregam sua significação social. Neste ponto, podemos dizer o mesmo das notas musicais (do, re, mi, fa, sol, la, si). Em si mesmas, não têm significados, são apenas sons que vibram em determinadas frequências.

No nível seguinte da linguagem comunicativa, formam-se as frases. Percebemos nitidamente três estágios: do fonema à palavra e da palavra à frase. Embora sob determinado ponto de vista os fonemas possam se parecer às notas musicais, na musicalização não há o estágio das palavras; passa-se imediatamente ao domínio da frase.

Do ponto de vista da linguagem, em Vygotsky (2008), o significado semântico das palavras se dá a partir do domínio significativo da frase, indo da compreensão do todo em direção à parte. Nessa perspectiva, a musicalização também não é contemplada como um processo semântico ou de significação, uma vez que não possui palavra.

Nesta investigação, também estabelecemos associações com o pesquisador Lévi-Strauss28 (1978), o qual, ao pesquisar sobre as bases comuns entre significado

e mito e suas relações com a formação do pensamento científico, estabeleceu uma relação entre mito, linguagem e música. Tal relação poderá ser uma alternativa para esse problema na similitude entre alfabetização e música. O autor, baseando-se na comparação de fonemas com notas musicais, analisa que

[…] agora pode-se comparar a mitologia quer com a linguagem, quer com a música, mas há uma diferença: na mitologia não há fonemas; os elementos básicos são as palavras. Assim, se se tomar a linguagem como um paradigma, é constituído por, em primeiro lugar, fonemas; em segundo lugar, palavras; em terceiro lugar, frases. Na música há o equivalente aos fonemas e o equivalente às frases, mas falta o equivalente às palavras. No mito há um equivalente às palavras, um equivalente às frases, mas não há equivalente para os fonemas. Há, portanto, em ambos casos, um nível que falta. Se tentarmos entender a relação entre linguagem, mito e música, só o podemos fazer utilizando a linguagem como ponto de partida, podendo-se depois demonstrar que a música, por um lado, e a mitologia, por outro, têm origem na linguagem, mas que ambas as formas se desenvolveram separadamente e em diferentes direções: a música destaca os aspectos do som já presentes na linguagem, enquanto a mitologia sublinha o aspecto do sentido, o aspecto do significado, que também está profundamente presente na linguagem. (LÉVI-STRAUSS, 1978, p. 48).

A abordagem dada por Lévi-Strauss (1978) nos leva direto ao encontro com os estudos linguísticos como um campo possível de fornecer subsídios para a continuação desta investigação. Porém, o que podemos observar é que essa tentativa de entendimento acaba por fragmentar o objeto de estudo da musicalização e da alfabetização, privilegiando, assim, uma compreensão dos elementos individuais que não necessariamente guardam unidades significativas do todo, aqui, a significação em música. Neste caso em específico, o foco seria a concreticidade da linguagem como forma, expressão e comunicação.

28 Claude Lévi-Strauss (Bruxelas 1908 - Paris 2009) foi um antropólogo, professor e filósofo francês. É considerado fundador da Antropologia Estruturalista em meados da década de 1950 e um dos grandes intelectuais do século XX. Desde seus primeiros trabalhos sobre os povos indígenas do Brasil, que estudou em campo, no período de 1935 a 1939, e a publicação de sua tese As estruturas elementares do parentesco, em 1949, publicou uma extensa obra, entre elas uma tetralogia, as Mitológicas, dedicada ao estudo dos mitos.

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