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4 III MOVIMENTO (Allegretto) – ENCONTROS, DESENCONTROS E

4.3 POSSIBILIDADES

Se buscarmos uma abordagem da diferenciação entre significado e sentido em Vygotsky (2008), poderemos nos manter em uma base mais sistêmica que envolve a linguagem em todas as suas funções e o próprio desenvolvimento do humano, apontando possibilidades para a continuidade desta pesquisa. Em se tratando do significado das palavras, Vygotsky (2008) entende que ele é uma generalização ou conceito que surge com um fenômeno do pensamento construído pela coletividade. Complementando, Luria (1986) indica que o significado é um sistema de relações que se formou no processo histórico-social da humanidade e está condensado na palavra. Quando esta é assimilada, domina-se a experiência social em diferentes graus de compreensão individual. Dessa forma, o significado é uma formação dinâmica atrelado ao funcionamento do pensamento.

O sentido, segundo Luria (1986, p. 45), é o “significado individual da palavra, separado deste sistema objetivo de enlaces; está composto por aqueles enlaces que têm relação com o momento e a situação dados”. Assim, pode-se entender que ele varia de pessoa para pessoa e se configura de acordo com a situação.

[…] a mesma palavra possui um significado, formado objetivamente ao longo da história e que, em forma potencial, conserva-se para todas as pessoas, refletindo as coisas com diferente profundidade e amplitude. Porém, junto com o significado, cada palavra tem um sentido, que entendemos como a separação, neste significado, daqueles aspectos ligados à situação dada e com as vivências afetivas do sujeito. (LURIA, 1986, p. 45).

Segundo Wazlawick (2007, p. 108), “o sentido é o elemento fundamental da utilização viva, ligada a uma situação concreta afetiva (emoções e sentimentos) por parte do sujeito”.

Logo, o significado da palavra é enriquecido com o acréscimo dos sentidos procedentes do contexto, os quais mudam de um sujeito para outro e mudam também no mesmo sujeito em diferentes tempos e situações.

Vygotsky (1992, p. 276), utilizando das pesquisas de Paulhan29,

[…] afirma que o sentido da palavra é complexo, fluido e está em mudança permanente. De alguma maneira ele é único para cada consciência e para uma consciência individual em circunstâncias diferentes. Nesse aspecto, o sentido da palavra é inesgotável. A palavra adquire sentido numa frase. A frase em si mesma adquire sentido porém no contexto do parágrafo, o parágrafo no contexto do livro, e o livro no contexto dos trabalhos escolhidos do autor. Finalmente, o sentido da palavra é determinado por tudo o que na consciência está relacionado com aquilo expresso na palavra.

Segundo Rey (2007), nesta época, Vygotsky (1992) estava tendendo a compreender a psique como um sistema que teria, em suas bases, unidades que reproduziriam em si mesmas as características do todo.

Em outras palavras, ele estaria gestando um tipo de unidade psíquica envolvida com uma compreensão sistêmica da personalidade. Para fundamentar essa interpretação, Rey (2007) cita Luria, no epílogo das Obras Escolhidas de

Vygotsky (1987) publicadas em inglês:

Não é só o sentido que está além da palavra. O sentido não é o elemento final dessa cadeia. Além da palavra estão as expressões dos objetivos e os motivos. Além da palavra estão os afetos e as emoções. Sem a exploração das relações da palavra com o motivo, a emoção e a personalidade, a análise do problema de “Pensamento e Linguagem” fica incompleto. (VYGOTSKY, 1987, p. 369 apud REY, 2007, p.157).

Logicamente, Luria estava se referindo à parte final das pesquisas de Vygotsky, as quais, segundo Rey (2007), ainda não foram traduzidas do russo. Nesse sentido, o autor cita Vygotsky (1984, p. 328 apud REY, 2007, p. 162):

No processo da vida socioetal [...] as emoções entram em novas relações com outros elementos da vida psíquica, novos sistemas aparecem, novos conjuntos de funções psíquicas; unidades de uma ordem superior emergem, governadas por leis especiais, dependências mútuas e formas especiais de conexão e movimento.

29 Frederic Paulhan (1856-1931) foi psicólogo francês. Ocupou-se das questões da psicologia dos processos cognitivos (concretamente, do pensamento, da memória e da linguagem) e da psicologia dos afetos.

Assim, podemos compreender que sentido e significação, na obra de Vygotsky, tendem a não ser apenas categorias, mas possíveis unidades de entendimento da personalidade, abrangendo as emoções e a afetividade. Na ligação entre a afetividade e as emoções que dá origem a novas funções psíquicas, podemos chamar a atenção para o papel da arte, a qual, segundo Vygotsky (1999), não serve apenas para alterar o humor imediato dos indivíduos. A esse respeito, Barroco (2014), comentando a referida obra de Vygotsky (1999), menciona que a arte

[...] objetiva sentimentos e outras potencialidades humanas. Ela é capaz de provocar alterações no psiquismo dos sujeitos. Ela propicia-lhes nova organização psíquica, o que possibilita a cada um a elevação à condição de indivíduo particular, organismo até certo ponto simplista e fruto da evolução natural, à de gênero humano universal. Neste caso, a arte encontra-se em condição de síntese entre o biológico e o cultural, contendo em si o conjunto das características humanas mais complexas, construído ao longo da história por meio do trabalho e da atividade. Neste sentido, a arte pode ser entendida como produto cultural, mediador entre o indivíduo e o gênero humano. Ou seja, quem a produz nela cristaliza complexas atividades mentais, as quais podem ser apropriadas pelos demais seres humanos. No entanto, tal apropriação não é mecânica ou passiva. É necessário que se dê a mediação das relações sociais junto ao fruidor, de modo que nele sejam projetados os movimentos que a arte suscita. Tais relações sociais podem ser planejadas e executadas por diferentes mediadores, como o professor, que ensinaria o complexo sistema teórico e histórico dos signos estéticos; pelo psicólogo, o qual poderia usar a arte como ferramenta para promover desenvolvimento de diferentes funções psicológicas e da própria personalidade; bem como, conforme o próprio Vigotski (1999) anuncia, pelo crítico de arte, cuja explicação teórica do que foi produzido pode conduzir à melhor apropriação da obra. (BARROCO, 2014, p. 23).

As aproximações, os distanciamentos e as perspectivas nos processos de alfabetização e da música entendidos como linguagem podem ser observados na Figura 15, a seguir.

e, consequentemente, serem formadas outras unidades significativas de análise. Nas últimas pesquisas de Vygotsky (1987), ele buscava a compreensão dessas unidades, envolvendo a busca do sentido através das relações com a afetividade, as emoções e a arte.

Pode-se afirmar que a música e alfabetização se afinam e desafinam em relação ao ponto sob o qual são observadas. São processos que ocorrem em espiral, porque, uma vez que o indivíduo assimilou determinada compreensão acerca do processo, seja musical ou alfabético, na próxima vez que tiver contato com o mesmo conteúdo, aprofundará suas relações e percepções, se existir sentido a ele.

A alfabetização e a música podem ser ilustradas por um sistema semelhante à representação do ADN pela Biologia, como um sistema de dupla hélice ligado por pontes de hidrogênio: se observadas em duas dimensões, os dois processos se aproximam e se distanciam harmonicamente. Vê-se isso na dinâmica histórica dos processos, que eram valorizados um em relação ao outro na medida proporcional em que eram valorizadas ora a razão ora a emoção, uma em detrimento da outra. Por outro lado, se observadas em três dimensões, percebemos que ambas nunca se tocam, pois são campos de conhecimento distintos ligados, neste caso, pela ponte da linguagem na perspectiva histórico-cultural. Isso possibilita um campo de pesquisa comum, uma vez que proporciona uma compreensão mais sistêmica das nuances envolvidas no processo de ensino-aprendizagem com vistas ao desenvolvimento do humano.

No momento que a arte, a afetividade e as emoções se tornam responsáveis pelo desenvolvimento de novas funções psicológicas superiores, entendemos que o processo de significação da música pode estar ali contido. Isso porque a emoção e a afetividade, equilibradas com a racionalidade, também são os fatores preponderantes de sentido na alfabetização e na musicalização.

É com essas novas configurações que se inauguram novas possibilidades e dimensões para o desenvolvimento e a continuidade desta pesquisa. Este trabalho iniciou elencando os traços que diferenciam cognitivamente os seres humanos dos animais e, agora, aponta uma direção para o entendimento da relação entre

alfabetização e música no horizonte da contribuição individual do ser humano à sociedade.

A arte é o social em nós, e o se o seu efeito se processa em um indivíduo isolado, isto não significa, de maneira nenhuma, que suas raízes e essência sejam individuais. [...] O social existe até onde há apenas um homem e as suas emoções. [...] A refundição das emoções fora de nós realiza-se por força de um sentimento social que foi objetivado, levado para fora de nós, materializado e fixado nos objetos externos da arte, que se tornaram instrumento da sociedade. (VYGOTSKY, 1999, p. 315).

Encerra-se assim o terceiro movimento desta sonata textual. Na música ocidental do classicismo as músicas normalmente acabam na tônica30, resolvendo

todas as tensões conduzidas no decurso da obra. Neste texto deixa-se a sensação de algo inacabado uma vez que na própria estruturação do mesmo se admite interpretações adicionais pela parte do leitor, em especial a partir dos elementos gráficos elaborados. Porém, sob determinada perspectiva também se conclui um período de compreensão das categorias pesquisadas. Fez-se um movimento iniciando pelo aprofundamento das relações que o construto sociocultural infere ao indivíduo influenciando no seu desenvolvimento psíquico. E, se conclui no momento que fornece ao indivíduo uma possibilidade deste, por meio da arte, de influenciar a sociedade. Na sequência as considerações finais farão um retrospecto dos principais pontos nos que se concretizaram nas mudanças de olhares em relação ao objeto e suas relações, pelo próprio movimento de mudança do pesquisador.

30 Tônica em música se relaciona ao primeiro grau de uma escala ,ou sequencia de notas. Tem um caráter de repouso e estabilidade. (KENNEDY, 1994).

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