• Nenhum resultado encontrado

ENCONTROS ENTRE ALFABETIZAÇÃO E MÚSICA

4 III MOVIMENTO (Allegretto) – ENCONTROS, DESENCONTROS E

4.1 ENCONTROS ENTRE ALFABETIZAÇÃO E MÚSICA

Encontramos, nos estudos de Vygotsky (2008), possíveis pontos de convergência entre os processos de alfabetização e a música. Quando o autor aborda o processo interno da formação do conceito na criança, ele identifica uma dinâmica que envolve o processo de significação mediado pela palavra e a forma com que isso se dá quando a criança começa a dominar a fala externa. No domínio da fala externa, Vygotsky (2008) verificou que a criança começa por uma palavra; em seguida, passa a relacionar duas ou mais palavras entre si, progredindo de frases simples a frases mais complexas até chegar ao que ele chama de fala coerente.

Cabe, então, identificar alguns elementos que se farão necessários para compreender o processo de alfabetização. Esse processo subentende que existe uma atividade psicológica interna de origem social externa que imprime no indivíduo características culturais do grupo em que este está inserido. Concomitante a esse movimento, o indivíduo se expressa, regido por esses princípios, através da palavra falada ou escrita, a partir de seu pensamento já formatado nesses padrões de ordem social. A linguagem pode ser entendida aqui como a categoria que contempla as funções psicológicas de ordem interna e externa desse processo, uma vez que, em teoria, dá conta dos processos de diferenciação, abstração e comunicação.

A musicalização, entendida como o processo de alfabetização musical, segue um caminho parecido. Esse processo também subentende um processo psicológico interno de origem social que imprime no indivíduo características culturais do grupo em que está inserido. Concomitante a esse movimento, o indivíduo se expressa, regido por esses princípios, através da música vocal ou escrita, com seu pensamento já organizado nesses padrões de ordem social.

Aqui vale uma ressalva: o modelo de comunicação e expressão através da música é um modelo idealizado; grande parte das pessoas que estudam música desenvolve fragmentos dessa realidade. Nesse ponto, a compreensão dos processos de alfabetização a partir da leitura e da escrita já está mais desenvolvida em relação ao processo de musicalização em nosso país. Levando em consideração o contexto histórico-social, é bem compreensível que haja essa discrepância entre os dois processos, em virtude do afastamento da música dos currículos escolares por tantos anos. Além disso, a própria natureza da linguagem musical engloba elementos diferenciados dos da leitura e da escrita.

Voltando à questão do movimento feito pela criança ao adquirir a fala coerente, cabe esclarecer que a compreensão da palavra e sua própria verbalização subentendem um desenvolvimento físico e cognitivo do aparelho auditivo e fonador e um desenvolvimento metacognitivo das funções psicológicas superiores que motivam essa atividade. Logo, no processo de musicalização, encontramos duas possibilidades: uma delas é a utilização do aparelho auditivo fonador, porém com uma função diferente, a do canto; outra possibilidade é a do domínio de um

instrumento que envolverá, além do aparato auditivo, outro tipo de coordenação físico-cognitiva. No entanto, ao longo do processo de discriminação, abstração e comunicação, tanto a musicalização como a alfabetização parecem percorrer o mesmo caminho, ainda que com objetos sonoros diferentes.

Luria (1979), quando descreveu as funções perceptivas auditivas do ser humano, identificou dois sistemas objetivos para tratar as excitações sonoras de origem histórico-social, além da fornecida pelo meio ambiente. Os dois sistemas objetivos exercem grande influência na codificação das sensações auditivas do homem. Um deles é o sistema fonemático de códigos (sistema sonoro da língua), e o outro é o sistema rítmico-melódico (musical).

O sistema de códigos rítmico-melódicos é constituído por dois componentes básicos. Um deles é formado pelas relações de alturas entre os sons, o que permite organizar os sons em acordes consonantes e fazer séries sucessivas dessas relações sonoras, dando origem às melodias. O segundo é produzido na relação temporal das relações rítmicas (prosódicas), das alternâncias regulares de duração e dos intervalos de sons isolados. Essas relações podem criar complexas imagens rítmicas, inclusive de sons de uma frequência. Um exemplo é o som produzido por um tambor ritmicamente executado.

Ainda segundo o autor, a função básica da audição musical é distinguir as relações de altura e prosódicas, sintetizá-las em estruturas melódicas, criar sons melódicos correspondentes que expressam determinado estado emocional e conservar esses sistemas na memória.

[…] nas etapas iniciais de desenvolvimento da audição musical, esse processo de codificação do sistema sonoro tem caráter desdobrado, na medida em que vai sendo exercitado esse processo se reduz, formando-se no homem unidades maiores de audição musical e tornando-se capaz de distinguir e conservar vastos sistemas integrais de melodias musicais. (LURIA, 1979, v.II, p. 91)

Relacionemos essa citação de Luria (1979) concernente à musicalização com a de Vygotsky (2008, p. 157), referente à alfabetização:

[…] a criança começa por uma palavra, passando em seguida a relacionar duas ou três palavras entre si; um pouco mais tarde, progride das frases simples para as mais complexas, e finalmente chega à fala coerente, constituída por uma série dessas frases; em outras palavras, vai da parte ao todo.

Os dois pesquisadores apontam como de dinâmica similar as etapas iniciais do desenvolvimento de codificação sonora nos dois processos. O desenvolvimento perceptivo da língua falada inicia-se em uma palavra; o da música, na relação de altura de dois sons. À medida que a percepção vai aumentando e a memória também, outras palavras vão se relacionando às primeiras até formar uma frase significativa. Quando essa frase se completa e adquire um significado, ela passa a ser tratada como uma unidade. No âmbito musical, à medida que outras notas (sons musicais) são percebidas e agrupadas às iniciais, começa a se concretizar uma melodia, ou frase musical, com sentido. Quando apreendida, essa melodia se transforma em uma unidade, ou música, para a criança. Luria (1979, v. II, p. 91), ao tratar da linguagem sonora, entende que “[…] o processo de percepção sonora assegura a codificação dos seus elementos isolados e sua conversão em formas complexas de percepção sonora”.

É possível compreender que a aprendizagem da língua, em determinado momento, segue um caminho que vai da parte em direção ao todo. No que se refere à alfabetização, vai da palavra à frase e, no que se refere à musicalização, das notas musicais à melodia. Quando isso ocorre, a compreensão significativa da criança atribui uma nova função a essa estrutura, passando a tratá-las, a frase e a melodia, como unidades. Para começar a perceber uma estrutura como unidade, a criança precisa desenvolver funções psicológicas que serão usadas para trilhar o caminho inverso e atribuir diferenciação e abstração aos elementos constituintes dessa nova unidade (frase ou música).

Nessa abordagem, tratamos a alfabetização e a musicalização pelo seu cunho sonoro e fonético. Agora discutiremos a sua proximidade em relação ao aspecto semântico dentro das funções psicológicas superiores envolvidas nos processos de abstração e discriminação.

Documentos relacionados