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CAPÍTULO II REVISÃO DA LITERATURA

3.1. Desenho de investigação

Para justificar as opções metodológicas tomadas recorreu-se aos contributos de vários autores sobre a complexidade inerente ao conceito de “apego ao lugar” defendida por Gieryn (2000), Moulay et al. (2018) e por Wynveen et al. (2012) e sobre a fase de desenvolvimento em que se encontra este conceito.

Se, por um lado, os lugares estão constantemente a ser produzidos por uma grande diversidade de categorias de indivíduos, desde os mais poderosos, com maior capital económico e político, que podem introduzir grandes modificações no mundo físico; aos profissionais, que desenham e associam funções aos lugares, passando por todos os outros indivíduos que lhes atribuem significados. Deste modo, os lugares estão em constante criação e mutação, apresentam uma notável diversidade devido aos inúmeros objetos que os compõem, às múltiplas formas de interpretação e significados atribuídos e à diversidade de experiências que os indivíduos desenvolvem (Gieryn, 2000). Por outro e segundo Wynveen et al. (2012), apesar do apego ao lugar estar a ser intensamente estudado há varias décadas, ainda se vincula uma escassez de estudos que exploram a relação entre o apego dos indivíduos aos lugares e os significados que estes atribuem aos mesmos.

Recupera-se também o já mencionado entendimento de Lewicka (2011a) e Manzo e Devine-Right (2014) sobre a anarquia conceptual e metodológica da atual fase de desenvolvimento em que se encontra o conceito de “apego ao lugar”, bem como a inexistência de um forte corpo teórico que permita sustentar a forte aplicação que se tem dado ao conceito, ambos referidos no ponto 2.2.1. Destaca-se ainda que, segundo Lewicka (2011a), existem estudos que permitem concluir que os significados atribuídos à natureza selvagem constituem objetos adequados para a abordagem qualitativa.

68 Pelo exposto, pelos objetivos traçados para neste trabalho e pela inexistência de estudos sobre a relação de apego entre os indivíduos e a Ria Formosa, este trabalho possui um cariz exploratório. Por isso, decidiu-se adoptar uma metodologia qualitativa interpretativa (ou compreensiva), utilizando uma estratégia transversal e com recurso à entrevista semi estruturada.

Assim, pretendeu-se compreender o mundo social através da interpretação que os seus participantes fazem desse mundo (Bryman, 2012), o que, segundo Lessard-Hébert, Goyette e Boutin (2005), abrange quer a análise dos comportamentos quer a dos significados atribuídos pelos indivíduos.

Se, por um lado, o desenho de investigação com recurso a metodologias qualitativas deve ter objetivos claramente definidos e coerência entre as questões de investigação e os métodos propostos de modo a produzir dados válidos e confiáveis e ser realista em termos de consumo de recursos, por outro, trata-se de um processo, pois são necessárias revisões e tomadas de decisão constantes (Lewis, 2003). Epistemologicamente, este tipo de investigação implica uma interação face-a-face de modo a que o investigador assuma o papel dos outros ou veja pelos “olhos dos outros”, de modo a adquirir o conhecimento social que pretende (Bryman, 2012).

Segundo Devine-Right (2014), a maioria dos estudos de apego ao lugar adoptaram uma investigação transversal, independentemente da escolha do método. Segundo Bryman (2012), a investigação transversal requer uma recolha de dados, neste caso através de entrevistas semi-estruturadas, de mais do que um caso e num único momento no tempo, de modo a colher informação quantitativa ou qualitativa em relação a duas ou mais variáveis e a obter a maior diversidade ou variação dessas variáveis.

Os dados recolhidos foram posteriormente tratados através da técnica de análise de conteúdo categorial e temática de modo a assegurar um tratamento sistemático, metódico e a minimizar os enviesamentos cognitivos e culturais.

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3.2 Objetivos

Esta investigação teve como objetivo principal compreender a relação que os residentes da Fuzeta estabelecem com a Ria Formosa, quando da prática de atividades e outras experiências nesse lugar, através do conceito de “apego ao lugar”.

A ampla abordagem conceptual realizada e apresentada no ponto seguinte, nomeadamente o modelo de análise e a definição conceptual propostas para o apego ao lugar permitiram definir cinco objectivos secundários, nomeadamente: i) Identificar e perceber quais são os significados e valores atribuídos pelos residentes da Fuzeta à Ria Formosa; ii) Identificar os elementos físicos, sociais e culturais envolvidos no apego dos residentes da Fuzeta com a Ria Formosa; iii) Identificar e perceber as emoções, sentimentos, preferências e a perceção de insubstituibilidade do lugar envolvidas no apego dos residentes da Fuzeta com a Ria Formosa; iv) Identificar e perceber os tipos de apego dos residentes da Fuzeta à Ria Formosa; v) Identificar e perceber os fatores disruptivos do apego dos residentes da Fuzeta com a Ria Formosa.

Os objetivos i, ii, iii e v estão relacionados com várias das definições de apego ao lugar e outras contribuições sobre o processo de apego referidas na revisão de literatura e operacionalizadas no ponto seguinte.

Apesar de não terem sido encontrados trabalhos empíricos sobre os tipos de apego ao lugar, o objetivo iv remete para a possibilidade, abordada da revisão de literatura, de existirem e coexistirem nos indivíduos vários tipos de apego ao lugar, como defendem Low e Altman (1992), Lewicka (2011b), Gustafson (2014) e Manzo e Devine-Right (2014).

3.3 Operacionalização

Para a persecução dos objetivos traçados, foi necessário propor um modelo de análise e uma operacionalização próprias, bem como avançar com uma nova definição do conceito de “apego ao lugar”, uma vez que as definições anteriores deste conceito apresentam algumas limitações.

70 Um modelo de análise que tenha em conta os objetivos delineados deve contemplar os diversos factores que intervêm na relação das pessoas com os lugares, a formação dos apegos com estes, os factores que podem influenciar negativamente esses apegos e, por último, exprimir o caráter processual dessas relações. Com este intuito e de acordo com a revisão de literatura foi construído o modelo que está representado na Figura 3.1. Parte-se do entendimento de que o espaço é uma parte do mundo físico com caraterísticas abstractas e não interpretado culturalmente (Gieryn, 2000) e que se transforma em lugar na medida que começa a ser conhecido, através dos significados atribuídos pelos indivíduos ao lugar nas suas relações com este e nas interações com os outros indivíduos (Gieryn, 2000; Milligan, 1998). Portanto, um lugar é uma localização geográfica com determinadas caraterísticas físicas e repositório de significados e valores (Gieryn, 2000).

Por um lado, a atribuição e manutenção de significados e valores aos lugares é um processo dinâmico. Envolve, não só a relação dos indivíduos com elementos físicos do lugar, mas também a interação dos indivíduos entre si (Degnen, 2016; Milligan, 1998; Williams, 2014; Wynveen et al., 2012), a partilha da história e da cultura (Low e Altman, 1992; Eisenhauer et al., 2000; Gieryn, 2000; Hufford, 1992; Wilkins e Urioste- Stone, 2018) e aspetos que tanto podem fortalecer ou enfraquecer o apego dos indivíduos (Brown e Perkins, 1992, 2014; Devine-Wright, 2014; Low e Altman, 1992; Reineman e Ardoin, 2018; Stedman, 2003). Por outro e segundo Low e Altman (1992), o apego ao lugar pode incluir o apego de um único indivíduo, uma família, o círculo de amigos, a comunidade ou o grupo cultural (Figura 3.1).

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Espaço

com caraterísticas abstractas e não interpretado culturalmente

Lugar

Localização geográfica com determinadas caraterísticas físicas e repositório

de significados e valores Apego ao lugar Processos de atribuição de Significados e valores Interação com os elementos físicos e com os outros Indivíduo Comunidade Cultura Significados importantes Atividades e experiências Emoções e sentimentos Insubstitubilidade e preferência Ligação ao passado Expetativas Disrupções

Figura 3.1 – Esquema do modelo de análise do conceito apego ao lugar. Fonte: elaboração própria.

Segundo uma abundante literatura, a formação do apego a um lugar implica emoções e sentimentos que estão envolvidos nos significados e valores que as pessoas lhes atribuem e na perceção de que esses não podem ou dificilmente podem ser substituidos. Este processo depende das caraterísticas físicas, sociais e culturais dos lugares, bem como das atividades profissionais ou de lazer ou outras experiências importantes para os indivíduos.

Para os que passaram uma ou mais fases da vida em determinado lugar, nomeadamente a fase da infância ou da adolescência, ou que se deslocaram com frequência a um lugar, as suas memórias e experiências podem ser fonte de um forte apego (Lewicka, 2011a; Silva, 2015) e assim, os lugares podem implicar uma ligação com o passado através das memórias das experiências passadas, como comprovam os estudos que apontam para uma correlação positiva entre o nível de apego e o período temporal passado num lugar e os que associam os apegos mais fortes com o(s) lugar(es) de infância (Silva, 2015). A ligação ao passado também pode ocorrer através da observação da paisagem se o individuo a associar à memória de outro lugar onde ocorreram experiências importantes para o próprio (Riley, 1992). Apesar de ligado ao passado, o apego ao lugar está também ligado ao futuro, como na dimensão “interactional potencial” da operacionalização de Milligan (1998), a qual remete para a perceção das experiências

72 que poderão vir a ocorrer no lugar, ou seja, as expetativas acerca das interações futuras com esse lugar e que podem ser também fonte de apego.

No entanto e para além de fatores no passado, presente ou futuro que podem criar ou fortalecer os apegos com os lugares, existem também fatores que os podem enfraquecer ou levar à sua quebra (disrupções). Assim, uma visão lata de apego ao lugar deve incluir ambos os fatores no sentido em que são faces da mesma moeda (Figura 3.1). As disrupções podem estar relacionadas com os elementos físicos, sociais ou culturais do lugar ou com transformações que ocorram nestes elementos, como por exemplo medidas legislativas ou fiscalizadoras e com transformações que ocorrem nos indivíduos, sejam elas naturais, relacionadas com o percurso de vida dos mesmos ou acidentais, mas que contribuem para uma disrupção do apego ao lugar (Devine-Wrigth, 2014).

A Ria Formosa é um parque natural utilizado intensivamente e influenciado pela turistificação das localidades que integra, sendo por isso necessário destacar as transformações operadas nos elementos físicos, sociais e culturais desse espaço. As alterações nos elementos físicos podem ter origem em intervenções do homem, como a construção e manutenção de infra-estruturas na vila da Fuzeta ou na Ria Formosa, no dinamismo do mundo natural, como os assoreamentos ou as variações naturais na quantidade bivalves, marisco, peixe e aves ou nas transformações atribuídas às alterações climáticas, como o aumento da temperatura da água ou do ar. As alterações sociais e culturais poderão estar relacionadas com a forte turistificação da Fuzeta, nomeadamente a grande quantidade de visitantes, a chegada de novos residentes e a diminuição de residentes autóctones.

Por estar fundamentado em contributos de vários autores, o modelo proposto (Figura 3.1) amplia as várias abordagens conceptuais encontradas na bibliografia e, pelo menos parcialmente, é justificado pela inexistência de um forte corpo teórico do conceito de “apego ao lugar”, aspeto assinalado por autores como Lewicka (2011a) ou Manzo e Devine-Right (2014). Para suportar este modelo propõe-se também que o conceito de “apego ao lugar” deva incluir os significados atribuídos ao lugar, os aspetos afetivos, as preferências e a perceção de insubstitubilidade do lugar que decorrem das interações com os elementos físicos, sociais e culturais dos lugares e a dinâmica associada às

73 oscilações desses apegos, incluindo os fatores que os podem diminuir ou quebrar. Neste sentido, sugere-se a seguinte definição de apego ao lugar: Place attachment ou apego ao lugar são os apegos dos indivíduos aos lugares que decorrem de processos de atribuição de significados e valores importantes e da constituição de ligações afetivas quando da prática de atividades e outras experiências que acontecem, já aconteceram ou que os indivíduos esperam que venha a acontecer. O apego ao lugar é dinâmico e, no seu processo, participam aspetos que podem aumentar, enfraquecer ou quebrar o respetivo apego.

O modelo de análise do apego ao lugar foi operacionalizado através de duas grandes dimensões: “Fatores que contribuem para o apego ao lugar” e “Fatores disruptivos do apego ao lugar” (Figura 3.2). Esta operacionalização resulta do modelo da Figura 3.1, mas também de ajustes realizados aquando da análise ao conteúdo das entrevistas. Estas duas dimensões têm categorias comuns, nomeadamente “Meio físico e natural”, “Elementos socioculturais”, “Intervenções legislativas/fiscalização” e “Expetativas” e categorias específicas, nomeadamente “Atividades” e “Ligação ao passado” da dimensão “Fatores que contribuem para o apego ao lugar” e “Transformações individuais” na dimensão “Fatores disruptivos do apego ao lugar”.

Fatores que contribuem para o apego ao lugar Fatores disruptivos do apego ao lugar

Figura 3.2 – Operacionalização do conceito apego ao lugar. Fonte: elaboração própria.

Atividades

Ligação ao passado

Meio físico e natural

Elementos socioculturais

Intervenções legislativas/fiscalização

Expetativas

 Transformações individuais

74 As categorias comuns remetem para aspetos que podem contribuir para o apego de uns indivíduos e para o desapego de outros. Estas estão relacionadas com os elementos físicos, sociais e culturais, com as medidas legislativas relacionadas com os Parques Naturais e com a Ria Formosa em particular e com as expetativas dos indivíduos. As expectativas são as perceções dos indivíduos sobre o que acontecerá no futuro no lugar ao qual mantêm apego, mas incluem tanto as expetativas acerca de interações futuras que podem contribuir para o apego ou as expetativas relacionadas com o aparecimento de fatores disruptivos que podem prejudicar ou anular o apego.

A categoria “Atividades” diz respeito às atividades que os próprios praticam na Ria Formosa e, como se mostrará nos pontos 4.2 e 4.3, nenhuma das atividades praticadas pelos entrevistados, incluindo as profissionais, constitui per se, um fator disruptivo do apego à Ria Formosa. Apesar de existirem atividades que, praticadas por uns, prejudicam as atividades de outros e que poderão ser causadoras de disrupção, estes aspetos foram colocados na categoria “Elementos socioculturais”, pois pelas referências dos entrevistados não são as atividades que os outros praticam que lhes são prejudiciais mas sim o modo como alguns as praticam, como por exemplo, condutas desajustadas na praia ou apanha incorreta de marisco.

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