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MEMÓRIA CONCEPTUAL

2.1 Desenvolvimento conceptual

Entender os efeitos da globalização no mundo atual e, sobretudo, nas minorias étnicas, é um tema inevitável para uma melhor compreensão da contemporaneidade. O desenvolvimento conceptual deste projeto nasce do caso particular do grupo Kuvale, nosso objeto de estudo. Formalmente, este projeto materializa-se numa obra online, com o intuito de facilitar o acesso ao seu visionamento, num tempo em que, mais que nunca, os novos media permitem e convidam à participação.

Ao longo deste capítulo, apresentam-se cinco pontos fundamentais para a compreensão geral desta obra: tradição, globalização, contaminação, comunicação e descoberta do outro. Para o aprofundamento das questões conceptuais suscitadas pela obra Kuvale foram determinantes as seguintes leituras: Aviso à Navegação (1997) e Vou lá visitar pastores (1999), de Ruy Duarte de Carvalho; Cultura y comunicación: entre lo global y lo local (1997), de Néstor García Canclini; e Orientalismo: representações ocidentais do Oriente (2004), de Edward Said.

Depois da contextualização dos hábitos, costumes e tradições dos Kuvale, feita com base nos relatos de Ruy Duarte de Carvalho e de que trata o subcapítulo “Tradição”, centrámo-nos na problemática da globalização. Neste sentido, a obra de Néstor Garcia Cancliniajuda-nos a articular a temática da globalização com o contexto específico no qual se insere a população Kuvale. Canclini defende a preservação da

identidade e da multiculturalidade, equacionando diferentes possibilidades de resposta à problemática da globalização. O autor refere, no seu artigo “De cómo la interculturalidad global debilita al relativismo” (2007), que o desafio do século XXI será a procura de novas respostas para a melhoria da convivência entre os povos e as suas diferentes culturas, numa época que Canclini caracteriza de interconexões globalizadas. “Como viver com as diferenças e desigualdades numa época de interconexões globalizadas que tornam obsoletas as políticas baseadas no simples

respeito relativista a grupos isolados.” (Canclini, 2007: 11)10 É a reflexão da identidade

Kuvale interconectada com a realidade global que propomos na investigação que apresentamos e que, particularmente, estudamos no subcapítulo “Globalização”.

Kuvale, enquanto objeto artístico, gira à volta das entrevistas realizadas

pela autora. É o seu ponto de vista sobre a realidade e as experiências emocionais vividas durante a viagem a Angola que traça, de certa forma, a linha condutora das conversas que estabeleceu com os protagonistas da obra. Saliente-se que esse ponto de vista é o de alguém que, apesar de viajar na descoberta de um outro país e de outra realidade, não parte do zero. Esse alguém que descobre o outro e que o tenta revelar, transporta intrinsecamente a sua identidade, a sua forma de estar, de ver e, consequentemente, de comunicar. Neste ponto, a leitura de Orientalismo e o que dela entendemos tornou-se transversal a todos os conceitos abordados. Mais do que o entendimento do outro, tratado no subcapítulo “Descoberta do outro”, a obra de Said permite-nos interrelacionar esse outro com os eixos temáticos da obra Kuvale: tradição, globalização e contaminação. Nesta medida, este projeto teórico-prático correlaciona os conceitos citados com os depoimentos dados pelas pessoas que entrevistámos (os Kuvale, enquanto o outro).

O utilizador, partindo destes depoimentos, poderá construir a sua própria narrativa. As várias possibilidades de interpretação da obra conduzem a diferentes interrogações: quais os contornos efetivos da integração dos Kuvale, quando é generalizada a ideia de que são cidadãos à parte no seu próprio país? Estarão os Kuvale assim tão longe do efeito da globalização? Poderá a comunicação interferir no levantamento real das necessidades desta comunidade? Ou, ainda, que fatores contribuem para a influência da cultura ocidental nas culturas tradicionais, aquilo que neste projeto, chamamos de contaminação?

Durante a pesquisa e a recolha de testemunhos de alguns indivíduos deste grupo, percebeu-se que a comunicação surgia como determinante no processo, que muitas vezes era e é construído sob equívocos, porque mesmo quando falamos a mesma língua, deparamo-nos com aquilo a que o sociólogo alemão Niklas Luhmann chama a “improbabilidade da comunicação”. (Luhmann, 2006) Ora, sendo a comunicação o nosso principal veículo de contacto com os Kuvale e, consequentemente, com a sociedade em que estes se inserem, a análise dessa improbabilidade comunicativa no contexto das entrevistas é essencial. Assunto que tratamos com maior profundidade no capitulo “Integração e (in)comunicação”.

                                                                                                                          10

  Tradução nossa.   “Cómo vivir con las diferencias y desigualdades en una época de interconexiones globalizadas que vuelve obsoletas las políticas basadas en el simple respeto relativista a grupos aislados.”

Embora ninguém tenha “a possibilidade de conhecer totalmente a extraordinariamente complexa unidade do nosso mundo globalizado” (Said, 2003: 23- 24), como afirma Edward Said no seu livro Orientalismo, faz parte do ser humano conhecer, interpretar e criticar a sua própria atividade. Do legado humanista recebemos as capacidades de interpretação racional através das quais conseguimos ir para além das inúmeras generalizações e standards desse ser que é o outro, criados pelas notícias que nos entram diariamente pela casa dentro. Dos media, sobretudo no que se refere à televisão e, eventualmente, aos jornais e revistas, fica-nos a imagem de um mundo em gavetas organizadas de uma forma (quase) hierárquica, onde a informação, sendo a mesma, nos é apresentada com uma certa ‘preocupação ambiental’ e por isso mesmo, reciclada. As novas modalidades de comunicação, nomeadamente através da Internet, facilitam o acesso à informação e à participação dos cidadãos em diversos contextos sociais. Os meios de comunicação efetivam hoje aquilo a que o teórico Marshall McLuhan chamou de aldeia global, resultante do progresso tecnológico que permite a qualquer pessoa comunicar com outra de forma direta, independentemente do local onde se encontre, ao mesmo tempo que se ambiciona uma consciência cada vez mais tolerante e global.

Talvez esta ideia de ‘aldeia global’ fosse utópica para a década de sessenta do século XX, mas está com certeza cada vez mais perto do concretizável, se levarmos em conta os meios de que dispomos nos dias que correm. Os canais e as formas de comunicação aumentaram significativamente nos últimos anos. Já não é apenas a televisão, canal unidirecional, que domina a nossa conexão com o mundo. Vejamos, por exemplo, a manifestação convocada para o dia quinze de setembro de 2012 por um grupo de trinta cidadãos da sociedade civil portuguesa, pela rede social

facebook, que terá reunido nas ruas cerca de 800 mil pessoas por todo o país. É

incontestável a adesão em massa às redes sociais digitais, num mundo que se diz e aceita como global e globalizado. Agora, é-nos permitido não só viver em mundos díspares, como também e simultaneamente, em muitos mundos e culturas. Mas será que os meios de comunicação de que dispomos para aceder a esses mesmos mundos alteram o nosso processo mental na formação dessa consciência? De acordo com McLuhan, na sua obra Escritos esenciales, a rutura e a alteração acontecem com a introdução do alfabeto fonético, pois é ele que “produz a ruptura entre o olho e o ouvido, entre o significado semântico e o código visual; e, assim, só a escritura fonética tem o poder de mover o homem da esfera tribal à esfera civilizada.”

(McLuhan, 1998: 152)11 Impõe-se, então, a pergunta: vivendo o povo Kuvale segundo

as suas tradições, física e mentalmente afastado da educação e da realidade da escola, viverá ele na esfera tribal? Embora considerados, hoje, como uma minoria a ser “compreendida” e “preservada”, os Kuvale são, nas palavras do antropólogo Ruy Duarte de Carvalho,

Populações “tribais” ou “semi-tribais” não integradas ou mal integradas no modelo ocidental. [...] Minorias que em grande medida correspondem a uma transição da noção de etnia para a de minoria e que não podem ser entendidas, no quadro das configurações modernas, senão em relação aos grupos dominantes que as englobam e que definem as estruturas dominantes do Estado. Populações minoritárias porque de alguma forma marginais ou marginalizáveis dentro dos próprios territórios em que anteriormente se inscreviam, nalguns casos, como “nação" prévia, anterior à instauração do “estado-nação”. (Carvalho, 2003: 181)

Esta transição do conceito de etnia para o de minoria poderá afetar o entendimento que é feito da comunidade Kuvale? Poderá este facto afetar, também, o modo de relação com o mundo, por parte dos Kuvale? O facto é que utilizar o termo minoria ou etnia não fará, por si só, a diferença, no sentido da aceitação dos Kuvale junto da sua sociedade. Na obra O poder da identidade (2007), o sociólogo Manuel Castells defende: “Ao longo da história da humanidade, a etnia sempre foi uma fonte fundamental de significado e reconhecimento, uma das estruturas mais primárias de distinção e reconhecimento social, como também de descriminação, em muitas sociedades contemporâneas.” (Castells, 2007: 65) Acrescenta que, por isso, faz sentido falar-se hoje de uma “fonte de significado e identidade” a ser integrada de acordo com princípios de “autodefinição cultural”, uma vez que “as matérias-primas étnicas estão integradas nas comunidades culturais que são mais fortes” como é o caso da religião, da nacionalidade ou do género. (Castells, 2007: 65, 74)

Esta ideia de descriminação da etnia está, também, presente no discurso de Néstor Garcia Canclini (2007), embora este autor refira que o que diferencia os indígenas da restante sociedade, não é apenas a sua condição étnica. A desigualdade e a exclusão a que muitas vezes estão sujeitos advêm da reestruturação neoliberal que se operou e continua a operar. A necessidade de criar uma maior dinâmica, de forma a expandir os mercados já saturados do Ocidente, conduziu à globalização económica, mas também política, social e cultural. Ora, esta descriminação acaba por tornar os pequenos grupos étnicos vulneráveis.

                                                                                                                         

11 Tradução nossa. “Solamente el alfabeto fonético produce la ruptura entre el ojo y el oído, entre el

significado semántico y el código visual; y, así, sólo la escritura fonética tiene el poder de trasladar al hombre de la esfera tribal a la civilizada.”

Sabemos que, em muitos casos, a sua discriminação étnica adopta formas comuns a outras condições de vulnerabilidade: são desempregados, pobres, emigrantes ilegais, sem-abrigos, desconectados. Para milhões o problema não se esgota em manter a sua autonomia. Querem ser incluídos, chegar a conectar-se, sem que se atropele a sua diferença, nem que os condene à desigualdade. Em suma, serem cidadãos no sentido intercultural. (Canclini, 2007: 6)12

Por outro lado, a sua inclusão numa sociedade que se pretende intercultural é facilitada pelas características particulares da sua identidade. Os povos indígenas têm a vantagem de conhecer pelo menos duas línguas, articulando recursos tradicionais e modernos, combinando trabalho remunerado com comunitário, a reciprocidade com a concorrência de mercado. (Canclini, 2007: 6)13 Estas

características verificam-se nos Kuvale. Eles falam olukuvale, mas também português, são pastores que vivem no campo, mas frequentemente vão à cidade vender os excedentes de gado ou comprar produtos de que necessitam.

A interpretação do local e do global atingiu níveis de complexidade extraordinários nos mais diversos campos (económico, político, cultural, artístico, etc.). De entre todos estes territórios possíveis, utilizamos o objeto artístico Kuvale para nos aproximarmos da complexidade do mundo contemporâneo. A representação do universo global e da globalização é concretizada através de visões locais — os testemunhos de pessoas que habitam numa zona remota do nosso (europeu) universo global. O que pretendemos não é um retorno ao nacional ou à nacionalidade, é antes um retomar dos interesses locais e das suas comunidades. Lembremo-nos do aforismo ‘pensar global, agir local’, que exige a reavaliação dos seus conceitos intrínsecos. Acima de tudo, teremos de ter em conta que o local é tão importante quanto o global. Lembramos a frase de Miguel Torga: “O universal é o local sem paredes. É o autêntico que pode ser visto de todos os lados, e em todos os lados está certo, como a verdade.” (Torga, 1955: 69)

                                                                                                                         

12 Tradução nossa.

 

“Sabemos en cuántos casos su discriminación étnica adopta formas comunes a otras

condiciones de vulnerabilidad: son desempleados, pobres, migrantes indocumentados, homeless, desconectados. Para millones el problema no se agota en mantener su autonomía. Quieren ser incluidos, llegar a conectarse, sin que se atropelle su diferencia ni se los condene a la desigualdad. En suma, ser ciudadanos en sentido intercultural.”

 

13 Tradução nossa. “Los pueblos indígenas tienen la ventaja de conocer al menos dos lenguas, articular

recursos tradicionales y modernos, combinar el trabajo pago con el comunitario, la reciprocidad con la competencia mercantil.”