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MEMÓRIA CONCEPTUAL

2.3 Globalização: contextualização

2.3.1 O papel da imagem no processo de globalização

Falámos anteriormente da globalização inter-relacionada com a informacionalização, conceitos enunciados por Manuel Castells (2007), que nos remetem para um dos pilares fundamentais da globalização económica: a tecnologia.

A teórica e filósofa Susan Buck-Morss, no texto “Estudos Visuales e Imaginación Global” (2009), defende a ideia de que a nossa era de globalização deixou de ser dominada pelas trocas comerciais, passando o domínio para a                                                                                                                          

23 Tradução nossa.

 

“Repensar a identidad en tiempos de globalización es repensarla como una identidad

multicultural que se nutre de varios reportorios, que pode ser multilingüe, nómade, transitar, desplazarse, reproducirse como identidad en lugares lejanos del territorio donde nació esa cultura o esa forma identitaria. De manera que la reflexión sobre la identidad, en términos conservacionistas aparece hoy como un intento de forzar los hechos, detener procesos sociales en constante renovación y transformación, embalsamar en un conjunto de rasgos algo que de hecho está transformándose incesantemente. Pero como estas transformaciones se dan con una variedad de referentes heterogéneos, se sostiene que tal vez haya que desplazar el objeto principal o uno de los principales para las ciencias sociales no sería la identidad, sino la heterogeneidad social e multicultural.”

 

tecnologia que é, simultaneamente, transformadora das relações sociais. Contexto curioso desta nova era de globalização e, inclusivamente, da consciência da sua existência é o que nos foi dito por José Buni, Soba — autoridade tradicional nos países africanos — da cidade do Namibe, quando entrevistado: “O homem é dinâmica, o homem sempre evolui. O que faz evoluir o homem é a tecnologia.” Buni, articula mais algumas destas ideias, embora de uma forma sumária, no seu discurso, presente no vídeo 1a_Globalizacao_01_12_PT e que pode ser visualizado no link Globalização.

Eu vou deslocar do Virei a 100 km, vou andar de burro (e) o outro vai andar de carro... Mas, eu tenho economia para comprar o carro... O que é que eu vou achar?! Também tenho de comprar o carro ou o processo... Um meio para me facilitar!

O que faz evoluir o homem é a tecnologia. O processo mais rápido! Na cidade do Namibe?! Mucubais tem, apenas já estão é ‘desculturados’...

Isso é através da colonização... Pessoas que se aproximaram muito dos portugueses perderam a sua cultura...

Por exemplo, eu vivo desta maneira... Quem vai acreditar, em França ou em Portugal que vivo desta maneira?!

O homem é dinâmica, o homem sempre evolui... (1a_Globalizacao_01_12_PT, José Buni, 2010)

Existe um processo de crescimento, de diversificação e multiplicação das possibilidades humanas de criar linguagem no sentido comunicativo, processo no qual a tecnologia não pode mais ser vista como no século XIX. A tecnologia é cada vez mais subtil, quase invisível. Existem hoje máquinas “inteligentes” que “dialogam”, cada vez mais com o ser humano. Máquinas musculares; sensoriais; máquinas cerebrais. Aliás, como disse o realizador Manoel de Oliveira, em declaração aos jornalistas a propósito da comemoração dos seus 102 anos de idade, a 11 de dezembro de 2011: “O homem não evolui, nem evoluiu. Toda a evolução é técnica!”

A tecnologia exerce poder e fascínio como nunca antes vistos, e a imagem veiculada pelos media é cada vez mais poderosa e dominante. O ser humano já não precisa sair do seu lugar, não precisa de meses ou anos no mar, em condições adversas, para chegar ao outro ponto do mundo. A ideia de mundo está em contínua alteração.

É com a utilização da tecnologia que formalizamos visualmente a obra

Kuvale e é, também, com a tecnologia que efetivamos a sua propagação pelo globo

terrestre através da rede. O formato hipermédia desta obra permite ao utilizador explorar os diferentes conteúdos, conduzido pela curiosidade da descoberta de uma outra forma de estar e de viver — o caso particular do povo Kuvale no contexto do mundo atual e dito globalizado. Verificamos, então, que tudo está interligado e conectado através da rede.

Num mundo em que as imagens, enquanto produtos visuais das diferentes sociedades, circulam em quantidade e velocidade nunca antes vistas, pensamos ser fundamental criar nesta dissertação um espaço reflexivo sobre o contributo das imagens para o processo global, uma vez que falar em globalização é também falar em imagens. Recordemos a secular frase de Giordano Bruno “pensar é especular com imagens” (Gilman, 1986: 45)24 acerca da superioridade da visão ou, mais

recentemente, a afirmação do neurocientista António Damásio: “A maioria das palavras que utilizamos na nossa fala interior, antes de dizermos ou de escrevermos uma frase, existe sob a forma de imagens auditivas ou visuais na nossa consciência.” (Damásio,1995: 122) Estas duas referências fazem-nos pensar que o estímulo, que nos leva à representação, quer seja em pintura, desenho, escultura, fotografia ou vídeo, surge dessas imagens que habitam e vivem connosco a todos os instantes. Quer o mundo que nos rodeia e que é exterior a nós, quer o nosso mundo interno e mais profundo, vivem de imagens sob as mais diversas formas. E é, muitas vezes, com a arte que concretizamos aquilo que o nosso pensamento e o que a nossa imaginação propõem. Dela estão longe regras e princípios que qualquer ciência física possa explicar. Como refere James Gleick, na sua obra Caos. A construção de uma

nova ciência (1989): “Não existe nenhuma biblioteca de formas e ideias com as quais

se possam comparar as imagens da percepção. A informação é guardada de uma forma plástica, permitindo fantásticas justaposições e saltos de imaginação.” (Gleick, 1989: 213)

Somos constantemente abordados por imagens, elas saltam-nos à vista, mesmo quando não as procuramos! Contudo, a nossa relação com elas é complexa. No seminário proferido pela professora de Teoria e História da Arte Contemporânea da Universidade Complutense de Madrid, Aurora Fernandez Polanco, na Universidade de Évora, a 13 e 14 de maio de 2011, a autora referiu três grandes momentos: primeiro, o juízo desinteressado (a crítica de juízo de Kant); segundo, a importância da trajetória de Hegel e a necessidade de uma relação mediada, uma vez que a imagem mente e engana; por último, a proposta da imagem como chave para entrar no conhecimento. Se tudo o que temos são imagens, vamos então aprender a trabalhar com elas, no sentido de nos abrirem as portas, afirma Aurora Polanco.

A manipulação da imagem apenas afeta a sua superfície, não a sua origem. É algo transferível, mas é também algo que pensa. As imagens são, neste contexto, mediadoras de coisas e pensamentos e facilitam a conexão. No filme                                                                                                                          

24

 

Tradução nossa.   “To think is to speculate with images”. Bruno, Giordano. De Umbris Idearum (The Shadow of Ideas), 1582, in Gilman, Ernest. Iconoclasm and poetry in the english reformation: down went dagon. Chicago: Chicago UP, 1986, p. 45.

 

Imagens do mundo e inscrições da guerra (1988), Harun Farocki utiliza imagens que

não estão feitas para serem mostradas ou vistas. É um trabalho político, de razão e conhecimento, onde se discutem os modos de realização e perceção das imagens, assim como as relações entre cultura audiovisual, consumo, guerra e tecnologia. É esta mesma tecnologia que faz circular as imagens por todo o globo de uma forma nunca antes vista.

Os diferentes materiais audiovisuais disponíveis na nossa obra online, nomeadamente fotografias, entrevistas em registo áudio e audiovisual e alguns textos, permitem criar o espaço de reflexão a algumas questões apresentadas nesta dissertação. O utilizador poderá ser conduzido ao questionamento sobre as hipóteses de sobrevivência deste grupo, como hoje o conhecemos, ou de como esta sobrevivência poderá acontecer. Poderá, ainda, construir o seu próprio caminho na descoberta deste povo, através das possibilidades oferecidas pela Internet, estruturando esse mesmo conhecimento de uma forma não linear. Se levarmos em consideração aquilo que Marshall McLuhan afirma, ao dizer que “as mais recentes abordagens ao estudo dos meios levam em conta não apenas o ‘conteúdo’, mas o próprio meio e a matriz cultural em que um meio ou veículo específico atua” (McLuhan, 1979: 25), será possível concretizar aquilo que se pretende com este projeto: uma maior liberdade na interpretação e na visão do outro, através da exploração dos diferentes conteúdos apresentados num meio que não é neutro. Para além disto, a narrativa não linear, sob a qual se constrói a obra, permite ao utilizador o entendimento da mesma segundo um leque de possibilidades múltiplas. Utilizamos as palavras de Umberto Eco para exprimir a multiplicidade de sentidos possíveis na obra

Kuvale:

O leitor excita-se portanto diante da liberdade da obra, da sua proliferabilidade infinita, diante da riqueza dos seus acrescentamentos interiores, das projecções inconscientes que a rodeiam, do convite que a tela faz para não se deixar determinar pelos nexos causais e pelas tentações do unívoco, empenhando-se numa transacção rica de descobertas cada vez mais imprevisíveis. (Eco,1989: 183)