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MEMÓRIA CONCEPTUAL

2.3 Globalização: contextualização

2.3.2 Transumância entre globalização e tradição

A transumância é a estratégia utilizada pelos Kuvale para permanecer numa região árida e de difícil subsistência. A passagem periódica do gado das zonas mais baixas para as de maior altitude e vice-versa, de acordo com a época das chuvas e das pastagens disponíveis, obriga os Kuvale a mudanças constantes. Para além deste vaivém cíclico, este povo combina ainda outro tipo de deslocação: mato-cidade- mato. E vive constantemente entre estes dois mundos — o da cidade e o do ‘mato’. A estes dois centros chamamos ‘global’ e ‘local’, respetivamente. À deslocação que os Kuvale fazem de um ao outro designamos metaforicamente de transumância —

transumância entre globalização e tradição.

Formalmente, este conceito é materializado na obra Kuvale pelo arco de circunferência traçado entre os polos: +Global e +Local. Sobre este arco de circunferência encontramos os quatro protagonistas que se situam mais próximos ou mais distantes destes dois pontos [+Global, (Mebai, Buni, Samuel, Mulheres) +Local], de acordo com a sua proximidade efetiva à globalização ou à tradição. O utilizador efetua, assim, uma espécie de transumância entre os dois conceitos. Para melhor entendimento do que falamos, aconselha-se a leitura do capitulo 5.5. “A interface”, assim como a visualização da fig. 1 (pág. 86) — Interface de Kuvale — ou mais especificamente a fig. 21 — Percurso do local ao global — em “Anexos” (pág. 6).

Em Angola, muitos indivíduos e as suas tradições culturais foram dispersados pelo país ou forçados ao exílio, devido à situação de instabilidade, sobretudo, na capital, Luanda. Nas periferias, foram proliferando e crescendo bairros, chamados de musseques — em Kimbundo, ‘zona de areia’. E foi nesses espaço de periferia que a chamada angolanidade se foi adensando. Este termo transporta consigo um desejo crescente de autonomia cultural e, consequentemente, local, sobretudo em relação à colonização e à identidade portuguesas.

No artigo “Nação, identidade e unidade nacional em Angola” (2006), o professor angolano de direito, Manuel Jorge, explica a angolanidade como “um dos diferentes neologismos que os nacionalistas angolanos criaram durante o processo de luta anti-colonial”. Jorge refere que este termo aparece pela primeira vez num artigo do poeta angolano Fernando Costa Andrade, que o definiu desta forma: “É preciso entender-se por angolanidade não somente a negritude, mas também a perspectiva do homem-novo que Franz Fanon menciona como sendo indispensável para um diálogo efectivo entre os homens de África e os dos outros continentes”. (Jorge, 2006: 8)

Manuel Jorge continua: “A angolanidade deve construir-se a partir dos elementos concretos em que se manifesta, não como um esforço de negação de uma realidade cultural imposta, mas como um esforço de afirmação de uma realidade cultural nova, que nasceu do cruzamento de civilizações.” (Jorge, 2006: 8) A angolanidade é concebida como um fator cultural, resultado da absorção da diversidade civilizacional africana. Mais que na cor da pele, é fundamentada por uma necessária raiz africana.

Analisemos o caso concreto desta obra e a língua falada pelos entrevistados. No artigo online “O Angolês, uma maneira angolana de falar português”, Francisco Kulikolelwa Edmundo (2012) pesquisa o ‘angolês’. Este autor angolano, licenciado em linguística e literatura portuguesa, caracteriza-o como:

Uma língua coerente, clara, um veículo de transmissão da cultura angolana, um instrumento perfeito para a expressão do pensamento angolano. Enfim, será a própria cultura angolana, ao mesmo tempo que será uma contribuição na protecção do LP do perigo da glotofagia ou da morte, extinção ou asfixia por outras mais fortes e ferozes. (Edmundo, 2012)

Francisco Edmundo, neste artigo, explica as diferenças entre a língua portuguesa e o ‘angolês’ a nível fonológico, morfológico e sintático, dando alguns exemplos. Ao nível morfológico:

(1) O Angolês dá função de relativo geral ao que, fazendo desaparecer o cujo, onde, quem… Ex.: o senhor que o filho morreu…;

(2) No sintagma nominal (SN) nem sempre existe concordância entre os elementos do plural: Ex.: os meus irmão; as pessoa daqueles bairro; as nossas mãe…

(3) Queda do (r) final nos verbos no infinitivo: Ex.: mandar (mandâ); correr (currê) [...]

(4) Utilização desviada e limitada de preposições e inexistência do conjuntivo: Ex.: Vou em Luanda; dá esse livro no João; lhe morderam no cão; se eu não vir amanhã na escola; era possível que ele tinha dinheiro; embora você fala inglês; deste o dinheiro no quem?… (Edmundo, 2012)

Ao nível sintático:

(1) Repetição do verbo na primeira pessoa do plural: Ex.: É sou eu que vou falar; neste lugar só sobrou sou eu; o pai dele é sou eu; aquele senhor de ontem era sou eu;

(2) Preferência da utilização do pronome proclítico nas frases afirmativas: Ex.: me dá um beijo; me deste este livro; vou te levar ao cinema amanhã: lhe falei de ti. (Edmundo, 2012)

Esta ‘língua’ própria, que se torna cada vez mais uma característica na forma de comunicar por parte dos angolanos, é notória nos vídeos e áudios da obra

Kuvale. Utilizámos legendas (nos vídeos) para que se efetue (por parte do público

alguns exemplos evidentes nos discursos dos nossos entrevistados. Estas elocuções podem ser consultadas na integra, através da visualização dos vídeos:

6b_Soba_01_39_PT,7a_Casamento_01_52_PT e 8_4a_Mebai_01_55_PT, presentes

nos links Soba, Casamento e Mebai respetivamente. A legendagem completa dos vídeos pode ser lida no Anexo 5 (5.1.1) deste documento (“Anexos”, pág. 53).

O fulano é que me está a fazer o mal. Você vai perguntar: Como é que você viu? [...]  

Não! O acusado. Eles todos vão julgar. Esse ali que vai iniciar que apresentou a queixa e o feiticeiro vai responder. Caso o feiticeiro reconheça aquilo que disse o outro, ele vai cumprir com a tradição conforme o que é, vai curar o outro. (No) caso (de) negar, o soba tem que procurar um adivinhador, que vai adivinhar. Caso for ele, ele vai pagar e cumprir com a cura do outro. Caso não for, quem acusou o outro, ele vai indemnizar, porque é uma acusação falsa. (Vídeo 6b_Soba_01_39_PT, link Soba)

O tio da mulher tem que mobilizar, mobilizar mesmo a tua sobrinha para que

vai casar com a filha do fulano! (Vídeo 7a_Casamento_01_52_PT, link Casamento)

Quando já passa nesta fase de menstruação, é ali que os mais velhos fazem [esta] (essa) festa. Mata-se o boi. Ela já muda de vestir. (Vídeo 7b_Casamento_01_57_PT, link Casamento)

Deixei de [se] (me) vestir mucubal para cortar aqueles hábitos mesmo, porque sempre, sempre quando eu fui criança, eu gostava de brincar e os outros lá brincava... Aquele tipo de brincadeiras do mato, né?! Mas, eu sempre... [Sempre eu] As minhas brincadeiras [era] (eram) já diferentes. Eu sempre brincava com carrinhos de fio... cortava os troncos, fazia dos outros... brincava com aqueles carros... Eu sempre gostei... Eu sempre gostei de viver na cidade... Porque sobrevive homem que estudou. Ele sempre é diferente dos outros. E aquele motivo é que me levou a pensar nisso. (Vídeo 8_4a_Mebai_01_55_PT, link Mebai)

Por outro lado, também a influência de termos angolanos é notória em Portugal, como é o caso da introdução das palavras: cota, bué, bazar, etc., no léxico português.

“A angolanidade constrói-se com tudo aquilo que a História legou ao povo angolano: o substracto negroafricano e os elementos da cultura dominante que, ao longo dos séculos, penetraram até ao fundo do inconsciente popular.” (Jorge, 2006: 8) Sob este ponto de vista, Angola poderá construir a sua identidade. A história do país está indelevelmente ligada à escravatura, à colonização, à guerra de libertação, à guerra civil, mas liga-se também à música, à dança, à literatura, aos rituais ancestrais, às diversidades linguística, étnica e religiosa. Todas estes elementos constituem a angolanidade que os angolanos, hoje em dia, refletem e pretendem construir. Esta angolanidade vincula-se à multiculturalidade de um país que se pensa a si próprio. Um país que vive constantemente entre o local e o global.