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DESENVOLVIMENTO DA CONCEPÇÃO DE SUJEITO NA ANÁLISE DO DISCURSO

5 – FUNDAMENTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS DA ANÁLISE DO DISCURSO

DESENVOLVIMENTO DA CONCEPÇÃO DE SUJEITO NA ANÁLISE DO DISCURSO

1ª. Época 2ª. Época 3ª. Época

O sujeito é assujeitado a um sujeito-estrutura, ou seja, às maquinarias institucionais, o sujeito é concebido como uno,

regido pelas maquinarias discursivas.

Persiste a noção de sujeito uno, mas é proposta a noção de

sujeito-posição: a posição ocupada pelo sujeito na sociedade determina o seu

dizer.

Marcado pela heterogeneidade discursiva, o sujeito é clivado, cindido, dividido, descentrado.

QUADRO 10 – Concepções de sujeito na Análise do Discurso. FONTE: Pêcheux; 2001b, 2001c, 2002, 1997.

ORGANIZAÇÃO: SILVA, Jeane Medeiros; 2005.

55 A datação dessas épocas não é precisa. Aproximadamente, a segunda época está nos anos de

entremeio do decênio de 1970, sendo a primeira época anterior e a terceira época posterior, no início da década de 1980, quando do falecimento de Pêcheux.

se dariam “[...] no interior de semi-sistemas em processo. Nada é estanque, nem totalmente estruturado”. Em um dos últimos trabalhos de Pêcheux (2002), está colocado que o discurso e o sujeito seriam estrutura e acontecimento, e o proceder sobre ele, descrição e análise – em simultâneo. Possenti (2002, p. 99) sugere uma re-organização dessas questões, com base em Pêcheux, nos seguintes termos:

1 - os sujeitos são integralmente sociais e históricos e integralmente individuais – para evitar o subjetivismo desvairado e a identificação do sujeito com uma peça;

2 - cada discurso é integralmente histórico e social e integralmente pessoal e circunstancial – para evitar a idéia de que o sujeito é fonte de seu discurso e a de que é o discurso que se dá;

3 - cada discurso é integralmente interdiscurso e integralmente relativo a um mundo exterior – para evitar a idéia de que o discurso refere-se diretamente às coisas e a de que tudo é discurso ou que a realidade, se houver uma, é criada pelo discurso;

4 - cada discurso é integralmente ideológico e/ou inconsciente e integralmente cooperativo e interpessoal - para evitar a idéia de que o sujeito diz o que diz materializando as suas intenções e a de que o sujeito não tem nenhum poder de manobra e que o interlocutor concreto é irrelevante;

5 - o falante sabe (integralmente?) o que está dizendo e ilude-se (integralmente?) se pensar que sabe o que diz (ou que só diz o que quer) - para evitar que se desconheçam os saberes que os sujeitos acumulam em sua prática histórica e que se conclua disso que nada lhes é estranho ou desconhecido.

A questão pode ser formulada em termos análogos a certos problemas da microfísica. Uma partícula pode ser integralmente onda e integralmente corpúsculo, sendo que a análise em um ou outro dos termos não equivale a uma negação de propriedades do real, mas é sempre uma questão de relevância ou, mesmo, de preferência.

Posto o sujeito discursivo, apreendido socialmente, tem-se que esse sujeito requer uma compreensão de “[...] quais são as vozes que se fazem presentes em sua voz” (FERNANDES, 2005, p. 35); trata-se da polifonia que, referindo-se às muitas vozes do sujeito, o constitui. A polifonia, uma contribuição de Bakhtin, ao colocar em evidência um encontro de vozes no discurso, coloca ainda uma outra perspectiva bakhtiniana, o dialogismo, concernente ao diálogo do enunciador com outras vozes no âmbito do discurso: nessa perspectiva, o sujeito submete-se a um duplo dialogismo – ao dialogar com o interlocutor e ao dialogar com outros discursos.

No ponto das relações entre sujeito e discurso, conseqüentemente, tais considerações levam a outra particularidade condizente a ambos, a heterogeneidade, abordada adiante. Nesse conjunto conceitual, tem-se a referência ao Outro no discurso, o que faz do sujeito discursivo um sujeito heterogêneo, cindido, divido, conforme a terceira época da Análise do Discurso o concebe.

Um outro desdobramento da perspectiva do sujeito constituído no discurso é o processo de identidade, de identificação, a negociação das diferenças, sobre o qual não se entrará em detalhes por ser uma abordagem que apontaria outra direção à pesquisa que não a proposta.

5.2.2 – Formação discursiva e formação ideológica

A noção de formação discursiva é introduzida na Análise do Discurso na formulação da segunda época, por Pêcheux, e reformulada por este a partir do pensamento de Foucault (1995).

Foucault formula sua conceituação de formação discursiva a partir de um caminho que considera algumas rupturas localizadas na História, tais como o afastamento de noções como tradição, influência, mentalidade, equilíbrio, continuidade, causalidade, linearidade etc., em face do surgimento de noções como dispersão, descontinuidade, limite, série, transformação e assim por diante. Propõe uma problematização da noção de documento, que dá lugar ao monumento56. São as vozes da Nova História, que questionam o método, os limites e os temas colocados tradicionalmente pela História. Essa ruptura está colocada em debate na obra Arqueologia do saber (1995), uma discussão teórico-metodológica que retoma as contribuições anteriores de Foucault.

Colocando o enunciado como elemento do método arqueológico (procedimento para compreender as articulações entre discurso e saber), Foucault coloca-o igualmente como unidade molecular do discurso.

Foucault (1995, p. 98-99) faz as seguintes considerações sobre o enunciado:

[...] o enunciado não é uma unidade do mesmo gênero da frase, proposição ou ato de linguagem; não se apóia nos mesmos critérios; mas não é tampouco uma unidade como um objeto material poderia ser, tendo seus limites e sua independência. [...] Não é preciso procurar no enunciado uma unidade longa ou breve, forte ou debilmente estruturada, mas tomada como as outras em um nexo lógico, gramatical ou locutório. Mais que um elemento entre outros, mais que um recorte demarcável em um certo nível de análise, trata-se, antes, de uma função que se exerce verticalmente, [...] a propósito de uma série de signos. [...] O enunciado não é, pois uma estrutura [...]; é uma função de existência que pertence, exclusivamente, aos signos, e a partir da qual se pode decidir, em seguida, pela análise ou pela intuição, se eles “fazem sentido” ou não, [...] e que espécie de ato se encontra realizado por sua formulação (oral ou escrita) [...]; é que ele não é em si mesmo uma unidade, mas sim uma função que cruza um domínio de estruturas e de unidades possíveis e que faz com que apareçam, com conteúdos concretos, no tempo e no espaço.

O conceito de enunciado, para Foucault, articula-se dialeticamente entre a singularidade e a repetição, é disperso e regular. Sobretudo, o enunciado é uma função, diferenciado de uma estrutura lingüística pura, diferenciando-se de frases, proposições e atos de fala. Quanto a isso, Foucault

[...] pretende mostrar que língua e enunciado não estão no mesmo nível de existência, [...] mostra que o que torna uma frase, uma proposição, um ato de fala em um enunciado é justamente “a função enunciativa”: o fato de ele ser produzido por um sujeito, em um lugar institucional, determinado por regras sócio-históricas que definem e possibilitam que ele seja enunciado (GREGOLIN, 2004b, p. 31).

O enunciado, assim, compõe um recorte que articula sujeitos e História na própria materialidade que o constitui.

Embora seja necessária uma instância produtora do enunciado, Foucault problematiza a questão da autoria, trazendo à cena a função-sujeito, removendo, por conseguinte, um desempenho puramente individual atribuído ao autor. Nesses termos, Foucault afirma que a posição do sujeito é neutra, podendo ser habitada por qualquer enunciador (GREGOLIN, 2004b). É a reafirmação do sujeito como posição, e a reafirmação de que o enunciado não é algo isolado, mas vizinho a uma série de outros enunciados e sujeitos, e inscrito e delineado em um campo enunciativo que

lhe afere lugar e status, inserindo-o na História, sublinhando a posição sujeito-autor como uma função.

O próximo passo teórico de Foucault (1995, p. 135-136) refere-se ao discurso, definido como se segue:

Chamaremos de discurso um conjunto de enunciados, na medida em que se apóiem na mesma formação discursiva; ele não forma uma unidade retórica ou formal, indefinidamente repetível e cujo aparecimento ou utilização poderíamos assinalar (e explicar, se for o caso) na história; é constituído de um número limitado de enunciados para os quais podemos definir um conjunto de condições de existência. O discurso, assim entendido, não é uma forma ideal e intemporal que teria, além do mais, uma história; o problema não consiste em saber como e por que ele pôde emergir e tomar corpo num determinado ponto do tempo; é, de parte a parte, histórico – fragmentos da história, unidade e descontinuidade na própria história, que coloca o problema de seus próprios limites, de seus cortes, de suas transformações, dos modos específicos de sua temporalidade, e não de seu surgimento abrupto em meio às cumplicidades do tempo.

De acordo com a acepção foucaultiana, o discurso é definido a partir do funcionamento dos enunciados em uma mesma formação discursiva. Por conseguinte, o filósofo francês coloca a noção de formação discursiva a partir de uma regularidade na dispersão dos enunciados:

No caso em que se puder descrever, entre um certo número de enunciados, [...um] sistema de dispersão, e no caso em que entre os objetos, os tipos de enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas, se puder definir uma regularidade (uma ordem, correlações, posições e funcionamentos, transformações) diremos, por convenção que se trata de uma formação discursiva [...] (FOUCAULT, 1995, p. 43).

Os discursos, em uma formação discursiva, estão submetidos a regras de formação que dizem respeito às “[...] condições de existência [...] de coexistência, de manutenção, de modificação e de desaparecimento [...] em uma dada repartição discursiva” (FOUCAULT, 1995, p. 43-44). Uma formação discursiva nunca é um conjunto estanque, pois suas fronteiras são abertas à ida e à chegada de elementos que transitam de um para outro espaço. Mas é nesse núcleo discursivo, nesse conjunto em formação, em seu interior, que está regulado o que pode e o que não pode ser dito.

A organização das formações discursivas, por sua vez, está no elemento mais amplo, o arquivo, que é a reunião de um determinado conjunto de formações discursivas. No organograma da Figura 7, em um esquema simplificado, pode-se ver

como seriam as relações hierárquicas e de dependência entre esses conceitos. Salienta-se que Foucault via, nesse conjunto, um atravessamento – as práticas discursivas – condizente à dinâmica dos enunciados, ao movimento dos sujeitos determinados historicamente. Nesse aspecto, os discursos estariam regulados por uma “ordem do discurso”, em que os enunciados contextualizam as práticas sociais, de forma que o dizer relaciona-se a esferas de poder e luta política e às suas intermitências, resultando disso seu aparecimento, sua apropriação, sua interdição, uma vez que o discurso “[...] não é o lugar abstrato de encontro entre uma realidade e uma língua, mas um espaço de confrontos materializados em acontecimentos discursivos” (GREGOLIN, 2004b, p. 36).

FIGURA 7 – Arquitetura conceitual da articulação discursiva de Michael Foucault. FONTE: FOUCAULT (1995); GREGOLIN (2004a; 2004b); FERNANDES (2004a; 2005) ORGANIZAÇÃO: SILVA, Jeane Medeiros; 2005.

Na constituição da Análise do Discurso, o empréstimo do conceito formação discursiva processou o começo de uma ruptura com o dispositivo da maquinaria estrutural embasada em discursos fechados, e permitiu, além disso, uma

re-orientação teórico-metodológica nesse campo. Na formulação de Pêcheux, o conceito contribuiu para desfazer a percepção de um sujeito homogêneo, relacionando a linguagem a uma exterioridade de ordem histórico-ideológica.

Em seqüência, pode-se afirmar que uma formação discursiva dada desvela sua integração com uma série de formações ideológicas.

A formação ideológica, nesse caso (já mencionada anteriormente), é um conceito desenvolvido, igualmente, na segunda época da Análise do Discurso. Pêcheux; Fuchs (2001, p.166) afirmam que a formação ideológica caracteriza o

[...] elemento [...] suscetível de intervir como uma força em confronto com outras forças na conjuntura ideológica característica de uma formação social em dado momento; desse modo, cada formação ideológica constitui um conjunto complexo de atitudes e de representações que não são nem “individuais” nem “universais” mas se relacionam mais ou menos diretamente a posições de classes em conflito umas com as outras.

Um determinado discurso, assim, referencia tensões e desvela posições sujeitudinais que divergem entre si. As palavras, ou melhor, os enunciados, não são, em hipótese alguma, radicais livres, desarraigados. Remetem sempre a um discurso dado e, nessa condição, têm anterioridade e sucessão: o dito é um já-dito e poderá outra vez ser dito. Os sentidos, assim, reportam-se a uma determinada formação discursiva, uma região que é, em si, uma rede de discursos ideologicamente interligados ou postos em algum tipo de relação. O interdiscurso, nesse caso, pode ser entendido como a relação de um discurso com outros discursos no plano de uma formação discursiva (ORLANDI, 2002, p. 80).

Considerando-se o interdiscurso como a “[...] presença de diferentes discursos, oriundos de diferentes momentos na história e de diferentes lugares sociais, entrelaçados no interior de uma formação discursiva” (FERNANDES, 2005, p. 61), reitera-se a dispersão constitutiva dos discursos: em uma formação discursiva, há elementos enunciativos que vêm de outras formações discursivas, colocando no plano do discurso a negação e a contradição, sendo neste esteio que o discurso alça sua unidade.

Deve-se assinalar, ainda, que o discurso, como prática social, diverso do sentido de enunciação retórica ou algo semelhante, demonstrado anteriormente, assegura formações sociais na história de um povo:

O aspecto histórico decorre da interação social entre sujeitos e grupos de sujeitos como um movimento ininterrupto e descontínuo na linha do tempo, que conduz para a constituição de novos sujeitos e novos grupos sociais, bem como para a formação de novos discursos (FERNANDES, 2005, p. 50).

Pois, como demonstra Foucault (1995), a produção e a interpretação discursiva imprimem ações sociais na História.

Na delimitação de um espaço discursivo que, constituindo o sujeito, ampara as formações discursivas e ideológicas, o trânsito dos sentidos no interdiscurso e demais condições e procedimentos que resguardam as práticas sociais dos sujeitos, por meio da linguagem, passa-se, em seguida, a designar um vínculo social que permite, ao sujeito, interagir no circuito da discursividade: a memória discursiva.

5.2.3 – Memória discursiva

Pêcheux (1999b) define memória em uma acepção diversa do entendimento psicologista de uma memória individual, compreendida como reminiscências ou lembranças de uma pessoa. Esse sentido anti-psicologista é explicado pela sua exterioridade ao estrato psicofisiológico do organismo, uma vez que a memória refere-se a “[...] um conjunto complexo, pré-existente e exterior ao organismo, constituído por uma série de ‘tecidos de índices legíveis’, que constitui um corpo sócio-histórico de traços” (PÊCHEUX, 1990, f. 1). Pêcheux, portanto, traz a noção de memória para o campo social, sendo que o seu papel, aí, é descrever as condições de um acontecimento, inscrevendo, por isso, o discurso na História; mas não só, pois a memória discursiva, em seu substrato social, condiciona o “[...] funcionamento discursivo na produção e interpretação [...]” dos sentidos (PÊCHEUX, 1990, f. 1).

A memória vincula-se às formações discursivas, ideológicas e imaginárias de uma sociedade, transitando no interdiscurso; com isso, a partir dela, os sentidos significam. Ou seja, em sua acepção social, a memória está inscrita nas práticas

sociais dos sujeitos. Em seu curso histórico, a memória imprime significação à materialidade discursiva, operando por meio da repetição e da regularidade, reafirmando, assim, os implícitos como a arena dos pré-construídos e da imagem como dispositivo da memória. O icônico (referente à imagem), no discurso, é colocado por Pêcheux como um dos operadores da memória, inexistindo, a esse propósito, distinção entre uma materialidade verbal e uma materialidade semiótica, pois o visível, para Pêcheux, é entreposto para uma nomeação; portanto “[...] a imagem seria um operador de memória social, comportando no interior dela mesma um programa de leitura, um percurso inscrito discursivamente em outro lugar” (PÊCHEUX, 1999b, p. 51). Com base nesses apontamentos, e com o esclarecimento sobre o icônico, Pêcheux explica que a memória discursiva é aquilo que re-estabelece os implícitos que significam o dizer ou a leitura de um texto. Com os implícitos, Pêcheux (1999b, p. 52) refere-se aos “[...] pré-construídos, elementos citados e relatados, discursos transversos, etc. [...]”. Pierre Achard (1999, p. 12), a propósito, define implícitos como “[...] sintagmas cujo conteúdo é memorizado e cuja explicitação (inserção) constitui uma paráfrase* controlada por esta memorização”. Assim, o implícito, obviamente, não está evidente, no plano de uma revelação, mas são condições que remetem a um imaginário reconstruído na instância da enunciação: não é necessária, para fazer sentido, sua explicitação prévia. Curiosamente, a esse respeito, e para tornar mais clara a questão, pode-se suscitar a tese defendida por Nasio (1993), nas cercanias da Psicanálise, de que não haveria inconsciente fora das marcas da análise psicanalítica: o inconsciente existe para o psicanalista, não para os sujeitos comuns. Não se trata de uma negação do inconsciente, mas a colocação de que ele está em um plano que não interessa às necessidades imediatas do cotidiano do sujeito. Da mesma forma, Achard (1999, p. 13) situa os implícitos:

[...] a explicitação desses implícitos em geral não é necessária a priori, e não existe em parte alguma um texto de referência explícita que forneceria a chave. Essa ausência não faz falta, a paráfrase de explicitação aparece antes como um trabalho posterior sobre o explícito do que uma pré- condição. [...] Do ponto de vista discursivo, o implícito trabalha sobre a base de um imaginário que o representa como memorizado, enquanto cada discurso, ao pressupô-lo, vai fazer apelo a sua (re)construção, sob a restrição “no vazio” de que eles respeitem as formas que permitam sua inserção por paráfrase.

A existência da memória discursiva e dos seus implícitos, nesses termos, não é um procedimento empírico, mas o indício de operadores no subterrâneo de um contexto,

regulando a enunciação, de modo que o trabalho do analista discursivo transita entre o lingüístico e o histórico: o lingüístico, por si apenas (imanentemente) não significa.

O sentido de memória arrolado por Pêcheux (1999b, p. 56) não coaduna com uma compreensão de memória como algum depositário do passado, o que seria não apenas muito restrito como inútil ao discurso:

[...] uma memória não poderia ser concebida como uma esfera plena, cujas bordas seriam transcendentais históricos e cujo conteúdo seria um sentido homogêneo, acumulado ao modo de um reservatório: é necessariamente um espaço móvel de divisões, de disjunções, de deslocamentos e de retomadas, de conflitos de regularização... Um espaço de desdobramentos, réplicas, polêmicas e contra-discursos.

Predispõe-se, assim, em uma dinâmica que a impede de cristalizar-se no tempo ou significar literalmente os enunciados. Por outro lado, o caráter não totalizante da memória concerne ao fato de que pode haver acontecimentos que escapam, por um motivo ou outro, de nela se inscreverem, ou que inscritos, sejam absorvidos a um ponto de esquecimento.

Em face da memória discursiva, a enunciação passa por um deslocamento: em vez de localizar o enunciado no locutor, o analista a situa como vinda dos discursos em circulação na esfera do social.

5.2.4 – Heterogeneidade constitutiva e mostrada

Por meio da heterogeneidade constituída e da heterogeneidade mostrada, Jacqueline Authier-Revuz, partindo, dentre outras, das posições teóricas de Bakhtin e Lacan, demonstrou como o sujeito é heterogêneo, constituído por formas discursivas heterogêneas, histórico e incompleto. A completude é meta de sua vivência, e ele a persegue pelo desejo, pelo imaginário, pelo simbólico.

A heterogeneidade mostrada subdivide-se em duas: a heterogeneidade mostrada com formas marcadas e a heterogeneidade mostrada com formas não marcadas.

A heterogeneidade mostrada marcada coloca-se na superfície do dizer, explicitando-se de modo que é possível, ao analista, identificar sua presença no discurso, lingüisticamente anotada. Em uma autonímia simples, um fragmento do discurso sofre uma ruptura sintática que põe em evidência o outro. Em uma conotação autonímica, um fragmento do discurso evidencia o outro sem rupturas sintáticas.

Neste tipo de heterogeneidade, “no fio do discurso que, real e materialmente, um locutor único produz um certo número de formas, lingüisticamente detectáveis no nível da frase ou do discurso, inscrevem, em sua linearidade, o outro” (AUTHIER-REVUZ, 2004, p. 12 – itálico da autora). As formas heterogêneas mostradas no discurso podem ser muitas, a começar pelo discurso direto e pelo discurso indireto. No primeiro caso, discurso direto, as palavras do outro ocupam a enunciação do sujeito discursivo, que passa a ser uma espécie de “porta-voz”. Marcas que inscrevem esse outro são aspas, itálico, entonação divergente – na forma das citações como um todo. No livro didático, essa forma é muito comum, complementada com alguma indicação bibliográfica da fonte, embora sua ocorrência se dê às margens da enunciação central do sujeito-autor. No segundo caso, o discurso indireto, o comportamento do sujeito-locutor em relação ao Outro é o do “tradutor”, o sentido é remetido a sua fonte por meio das próprias palavras do enunciador, perfazendo comentários de diversos tipos e recursos. Authier-Revuz (2004, p. 12 – itálico da autora) conclui: “Sob essas duas diferentes