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De acordo com Sousa Santos, durante o período entre os séculos XVI e XVII, ocorre a gestação do projeto sócio-cultural do Estado moderno. Tendo como marcos de sua consolidação no plano político a Revolução Francesa e no plano econômico a Revolução Industrial, tal projeto entra em vigor, tendo como base os pólos da emancipação e da regulação, considerados complementares e fundamentais para sua estruturação (SOUSA SANTOS, 2006, p.319).

O Estado Liberal, organização formal e complexa, é uma construção artificial, que possui, como qualquer outro complexo institucional, relações e processos sociais que são padronizados por certas normas. Sua estruturação ocorreu de forma deliberada, não natural, sendo sua característica estrutural mais importante o monopólio legítimo da violência. (POGGI, 1981, 104-107).

O Estado Liberal tem sua legitimidade fundamentada na domesticação do poder através da despersonalização de seu exercício. Assim, a arbitrariedade do poder estatal estaria minimizada pela regulamentação das leis.

No Estado moderno, a relação entre o Estado e o Direito é particularmente estreita. O direito já não é concebido como uma coletânea de normas jurídicas consuetudinárias, desenvolvidas desde tempos imemoriais, ou de prerrogativas e imunidades tradicionais e corporativamente sustentadas; tampouco é concebida como a noção de princípios de justiça assentes na vontade de Deus ou nos ditames da ―Natureza‖, aos quais se espera que o Estado simplesmente empreste a sanção de seus poderes para fazê-lo simplesmente respeitar. O direito moderno é, outrossim, um corpo de leis promulgadas; o direito é positivo, feito e validado pelo próprio Estado no exercício de sua soberania, sobretudo através de decisões públicas, documentadas e geralmente recentes. (POGGI, 1981, p. 111).

A crise de legitimidade do Estado Liberal8 se dá a partir dos progressos industriais e da crescente complexidade da sociedade, na qual cada vez mais leis são criadas e sancionadas pelo Estado, o que acaba por interferir em todos os âmbitos das relações sociais. As pessoas não conseguem compreender o significado das normas, não sabem quais as condutas que são permitidas pelo Estado e quais não são e, neste sentido, a legitimidade social legal passa a estar seriamente comprometida, uma vez que a não compreensão das leis gera um possível desgaste estatal.

Na tentativa de retomar sua legitimidade, o Estado Liberal passa a apostar no desenvolvimento econômico, através do crescimento industrial. Desta forma, os cidadãos teriam condições de, através de seus esforços pessoais, terem acesso a bens, como saúde e educação (POGGI, 1981, p. 140-141). Porém, com o desenvolvimento do capitalismo e o crescimento dos contrastes entre as classes sociais, as apostas no mercado para a promoção do bem estar social perdem suas chances de consagração.

A idéia de um desenvolvimento harmonioso entre os princípios do Estado, do mercado e da comunidade não foi concretizada durante o Estado Liberal. Em conseqüência deste fato, se assiste a um enorme crescimento do princípio do mercado, à atrofia do princípio da comunidade e a um desenvolvimento ambíguo do princípio do Estado. O substantivo crescimento da industrialização ocorre paralelamente à conversão da filosofia política liberal, sendo defendida, a partir de então, a limitação do poder de intervenção estatal e a maior liberdade individual. Mesmo que o Estado tivesse assumido o monopólio da violência legal, do poder judiciário e do papel de defensor dos direitos individuais, os campos econômico e

8 In: SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela Mão de Alice: o social e o político na pós- modernidade. São Paulo: Cortez Editora, 1995, p. 75-124.

social acabaram por adquirir uma maior autonomia, o que consolidou a distinção moderna entre Estado e sociedade civil, a qual passou a ser concebida como agregação competitiva dos interesses particulares e suporte da esfera pública (AZEVEDO, R., 2000, p. 46-48).

A partir de meados do Século XX, com a criação de mecanismos que viabilizam uma maior intervenção estatal sobre a vida social, tanto pela via social democrata, quanto pela via socialista, o Estado Liberal dá lugar ao Estado de Bem Estar Social. A partir deste modelo, o Estado passa a ser responsável pela saúde, educação, pelas leis trabalhistas, previdência social, além do investimento em melhorias sociais, até então não priorizadas em sistemas estatais anteriores, e a criação de indústrias estatais em áreas estratégicas para o desenvolvimento econômico.

O princípio de mercado continua sua expansão, concebida a partir da concentração do capital industrial, financeiro e comercial. Unido ao crescimento do capitalismo, o alargamento do sufrágio universal entra na lógica da sociedade civil e do cidadão verdadeiramente livre e igual, destruindo, assim, solidariedades tradicionais. O espaço político passa a ser estruturado pela reorganização da comunidade, dada pela emergência de práticas específicas de cada classe social, estando o Estado no papel de agente ativo das transformações ocorridas tanto na comunidade quanto no mercado, através de um crescente poder de regulação, reduzindo a capacidade auto-regulatória da sociedade civil (AZEVEDO, R., 2000, p. 48-49).

Inserida no horizonte histórico das transformações que ocorriam em função do Estado de Bem Estar Social, baseada em novas ideologias políticas de cunho social ou mesmo socialista e considerando a crise do programa da Escola Clássica no combate à criminalidade, nasce a Escola Positiva Italiana9. Inscrita no contexto do Cientificismo, do Positivismo Comtiano e do Evolucionismo Darwinista, suas idéias partem de pressupostos muito característicos e muito distantes daqueles defendidos pela Escola Clássica. A Escola Positiva parte da crítica do positivismo ao

9 Os italianos Cesare Lombroso (1836-1909), Enrico Ferri (1856-1928), e Raffaele Garofalo (1851-

1934) são considerados como os máximos definidores e divulgadores da escola Posittiva. O ―L’Uomo delinqüente‖ (publicado em 1876), de Lombroso, a ―Sociologia Criminale‖(publicada em 1891), de Ferri, e a ―Criminologia – studio sul delitto e sulla teoria della represione‖(publicada em 1885), de Garofalo, são consideradas as obras básicas. In: ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A Ilusão de

Segurança Jurídica do Controle da Violência à Violência do Controle Penal. Porto Alegre:

classicismo, que estaria centrado nas dicotomias individual versus social e racionalismo versus empirismo. A defesa dos direitos do indivíduo frente ao poder punitivo do Estado, que era anteriormente preconizada pelo classicismo, passou a ser denunciada como individualismo exacerbado, uma vez que gerava o esquecimento da defesa da sociedade na qual o indivíduo criminoso estava inserido. A Escola Positiva sustenta a primazia do social e dos direitos da sociedade, de acordo com seus preceitos, dentre os quais estava a idéia de deslocar a problemática penal do plano da racionalidade para o plano da realidade, numa tentativa de resgatar a figura do homem delinqüente, que fora esquecido pela Escola Clássica. (ANDRADE, 1997, p. 60-61). Para Vera Andrade,

[...] enquanto o programa clássico (centrado na lógica da liberdade de vontade, da certeza e segurança jurídicas) é condicionado e expressa, discursivamente, as exigências de uma sociedade e de um Estado de Direitos liberais, é somente quando esta matriz estatal assume o intervencionismo na ordem econômica e social e legitima-se, conseqüentemente, para intervir ativamente no campo penal, que se abre espaço para um direito e um controle intervencionista sobre a criminalidade e o criminoso, como o postulado pelo programa positivista. A emergência da Escola Positiva – e da Criminologia [originada do agrupamento da Antropologia e da Sociologia Criminal] – responde, pois, a uma redefinição interna a estratégia do poder punitivo, somente admissível na ultrapassagem do Estado de Direito liberal para o Estado de Direito social ou intervencionista. (ANDRADE, 1997, p. 71).

Para a Escola Positiva é preciso deixar de lado a idéia de livre arbítrio, que guiava o pensamento clássico, lançando-se mão de uma ciência que deve ser apta a diagnosticar cientificamente as causas que levam indivíduos a cometer delitos. A negação do livre arbítrio acarretaria a negação da responsabilidade moral como fundamento da responsabilidade penal. Desse modo, são propostos mecanismos que devem ser capazes de erradicar a criminalidade, segundo pensadores da Escola Positiva.

Assim, o livre arbítrio, contra o qual polemizou desde sua origem, o positivismo opõe o determinismo. A admissão do livre arbítrio, e embora de um ângulo metodológico, deveria ser considerada acientífica e errônea; como uma ilusão subjetiva. Pois, um ato livre, rompe com a séria causal que necessariamente conduz ao crime. A vontade não é livre e não pode ser tida como causa do crime, porque é, ela própria, um resultado. (ANDRADE, 1997, p.64).

De acordo com os postulados trazidos pela Escola Positiva, impregnados por um determinismo bio-sócio-psicológico do comportamento humano, a punição àqueles que cometeram atos delitivos tem como significado a defesa da sociedade, tendo um caráter indeterminado e terapêutico. O crime seria um fenômeno biológico e não um ente jurídico: o criminoso é considerado um ser atávico, representando, através do desvio praticado, a regressão do homem ao primitivismo. Assim, já nasceriam delinqüentes e representantes da selvageria primitiva humana, sendo socialmente considerados degenerados.

Ainda segundo os pressupostos da Escola Positiva, o criminoso nato apresentaria características físicas e morfológicas específicas, tais como assimetria craniana, zigomas salientes, face ampla e larga, barba escassa e cabelos abundantes, etc.; além disso, seria fisicamente e moralmente insensível, impulsivo, vaidoso e preguiçoso. As idéias da escola contam também com uma noção, de acordo com seus autores empiricamente comprovada, de que a causa do nascimento do ser degenerado seria a epilepsia, a qual ataca os centros nervosos, deturpa o desenvolvimento do organismo e produz regressões atávicas. Daí, nasceria a ―loucura moral‖, que, mesmo suprimindo o senso moral do indivíduo, deixaria sua inteligência ilesa10.

Pelo fato do criminoso ser considerado um ser atávico, semelhante a um louco moral, com fundo epilético, sendo antes um doente, ao invés de culpado, a Escola Positiva acredita que esse deveria ser tratado, ao invés de ser punido. Dessa forma, atuar-se-ia sobre as causas do comportamento criminoso, de modo a prevenir a criminalidade, perdendo a pena seu caráter retributivo, passando ao tratamento dos criminosos. A partir de então, passam a ser aceitos nas prisões e nos manicômios, e também nos tribunais, especialistas de outras áreas que não a jurídica para que fosse identificado o problema e realizado o tratamento.