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1 INTRODUÇÃO

3.2 Desestatização e privatização

Em meados dos anos de 1980, uma “onda” de privatização ocorreu no mundo ocidental, transformando as características da Administração Pública desses países e promovendo uma nova tendência em seus conceitos e institutos. Segundo Odete Medauar, as noções de liberalização, desregulamentação, privatização182 e desestatização, além de

não serem precisas e serem utilizadas indistintamente, estão conectadas à execução e à disciplina legal dessas atividades.183

181 JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. p. 691-692.

182 Gaspar Ariño Ortiz aduz que a palavra “privatização” encerra significado e fenômenos diversos: a) político (processo de mudança da sociedade e do Estado); b) jurídico (transferência de propriedades estatais aos particulares, devolução de serviços geridos pelo Poder Público para a gestão privada e a utilização de formas privadas de gestão); c) econômica e financeira (o alto custo para manutenção das empresas públicas e a necessidade de redução do déficit público). ORTIZ, Gaspar Ariño. Lecciones de administración (y

políticas públicas). Madrid: Iustel, 2011, p. 830-833.

183 MEDAUAR, Odete. O Direito Administrativo em evolução. 2 ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: RT, 2003, p. 248.

Assim, para a autora, a liberalização consiste na “supressão de normas estatais incidentes sobre determinadas atividades dos particulares e por vezes a modificação do conteúdo dessas normas”.184 Amparada em estudos de Marcos Jordão

Teixeira do Amaral Filho, ensina que a desestatização “significa mais autonomia da sociedade para decidir seu destino, com menos presença do Estado”.185 Nesse sentido, a

desestatização pode se dar mediante desregulamentação ou privatização. A

desregulamentação (deregulation) “consiste na eliminação total ou parcial de normas

estatais incidentes sobre o mercado e as atividades econômicas”.186 Por fim, segundo os

referidos estudos, a privatização abrange, em sentido amplo, “vários mecanismos de redistribuição de atividades do setor público para o setor privado; em sentido restrito, diz respeito à transferência de empresas estatais ao setor privado”.187

O primeiro fenômeno implementado no Brasil com o objetivo de redesenhar a participação e o papel do Estado como prestador de serviços públicos foi a desestatização.188 Com a Lei nº 8.031, de 12 de abril de 1990, foi instituído o Programa

Nacional de Desestatização, posteriormente revogado pela Lei nº 9.491, de 9 de setembro de 1997189, que manteve, basicamente, as mesmas premissas e aspectos do programa

inicial. O art. 1º da referida lei dispõe sobre os objetivos fundamentais do Programa: Art. 1º O Programa Nacional de Desestatização – PND tem como objetivos fundamentais:

I - reordenar a posição estratégica do Estado na economia, transferindo à iniciativa privada atividades indevidamente exploradas pelo setor público; II - contribuir para a reestruturação econômica do setor público, especialmente através da melhoria do perfil e da redução da dívida pública líquida;

III - permitir a retomada de investimentos nas empresas e atividades que vierem a ser transferidas à iniciativa privada;

IV - contribuir para a reestruturação econômica do setor privado, especialmente para a modernização da infra-estrutura e do parque industrial do País, ampliando sua competitividade e reforçando a capacidade empresarial nos diversos setores da economia, inclusive através da concessão de crédito;

184 MEDAUAR, Odete. Op. cit., p. 248. 185 MEDAUAR, Odete. Op. cit., p. 248. 186MEDAUAR, Odete. Op. cit., p. 248. 187

MEDAUAR, Odete. Op. cit., p. 249.

188 Ao contrário de um modelo anterior de estatização, no qual o “Estado assume a atividade na área econômica determinada, criando os órgãos e entes para tal fim”. SOUZA, Washington Peluso Albino de.

Direito Econômico. São Paulo: Saraiva, 1980, p. 445.

189 BRASIL. Lei Federal nº 9.491, de 9 de setembro de 1997. Altera procedimentos relativos ao Programa Nacional de Desestatização, revoga a Lei nº 8.031, de 12 de abril de 1990, e dá outras providências. Brasília: Congresso Nacional, 1990. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9491.htm#art35>. Acesso em: 10 set. 2015.

V - permitir que a Administração Pública concentre seus esforços nas atividades em que a presença do Estado seja fundamental para a consecução das prioridades nacionais;

VI - contribuir para o fortalecimento do mercado de capitais, através do acréscimo da oferta de valores mobiliários e da democratização da propriedade do capital das empresas que integrarem o Programa.

Percebe-se claramente, portanto, que as finalidades do Programa levam a uma readequação do papel do Estado na economia, bem como de sua relação com a iniciativa privada, levando em conta o foco do setor público nas áreas mais essenciais para a consecução das prioridades nacionais, e o fortalecimento do setor empresarial, tendo em vista a dinâmica e a competitividade inerentes ao mercado.190

Washington Peluso, numa análise percuciente em termos político- econômicos, critica bastante os resultados obtidos em face dos objetivos anunciados no dispositivo legal ora focalizado. Acentua que o citado art. 1º, por se tratar de norma- objetivo, vincula o legislador às finalidades lá previstas e compromete a confiança depositada pelo detentor do direito ou destinatário da norma – o cidadão, que passaria a ter direito de recorrer ao Poder Judiciário para reclamar do não alcance dos objetivos legais inerentes ao Programa Nacional de Desestatização.191

Vale salientar a diferença entre "desestatização" e "privatização". De modo claro e objetivo, Carvalho Filho anota: "desestatizar significa retirar o Estado de certo setor de atividades, ao passo que privatizar indicar tornar algo privado, converter algo em privado."192 Já Washington Peluso, apontando também a imprecisão terminológica,

refere-se ao fenômeno da desestatização aludindo à extinção das empresas criadas por lei, pelo e para o Estado, enquanto a privatização consiste no retorno ao particular das

190 O processo de privatização também foi realizado em vários outros países, a exemplo da Argentina, cujas finalidades buscadas se assemelham às brasileiras. Neste sentido, Héctor Belisario Villegas reúne as seguintes vantagens das privatizações: a) eliminação do gasto público (na medida em que desaparecem os aportes estatais para cobrir déficit operativo e de financiamentos); b) novos investimentos (as empresas privatizadas e as empresas concessionárias devem realizar investimentos para modernização e expansão); c) aumento de eficiência (a melhoria se alcança através de uma utilização mais racional de pessoal, de compras de insumos por preços menores e por um sistema mais adequado de decisões empresariais); d) redução da dívida externa (ao utilizar-se da capitalização da dívida externa, ela se reduz sem ocasionar efeito inflacionário). VILLEGAS, Hector Belisario. Curso de Finanzas, Derecho Financeiro y

Tributário. 9 ed. Buenos Aires: Astrea, 2009, p. 72.

191 SOUZA, 2005, p. 366-367.

empresas privadas que lhe pertenceram anteriormente, mas que teriam passado à propriedade do Estado por motivos diversos.193

Egon Bockman Moreira, ao trabalhar os conceitos de desestatização e privatização, parte das premissas de serviços públicos e das atividades econômicas. Assim, preconiza que a transferência de empresas, bens e serviços públicos à iniciativa privada pode ser feita de modo formal ou substancial. Caso o Estado persista como titular da empresa, bem ou serviço, transferindo à iniciativa privada apenas a atividade executiva ou de gestão, tem-se a chamada desestatização formal ou de gestão. No caso de o Estado abdicar da titularidade desses bens, empresas ou serviços, há a chamada desestatização

substancial ou absoluta, também chamada de privatização.194

O art. 2º, §1º, alínea b, da Lei nº 9.491/97, revogadora da Lei nº 8.031/90, traz, entretanto, uma definição legal de "desestatização", que aproxima esse vocábulo do sentido de "privatização" definida na lei anterior revogada:

Art. 2º (...)

§ 1º Considera-se desestatização:

a) a alienação, pela União, de direitos que lhe assegurem, diretamente ou através de outras controladas, preponderância nas deliberações sociais e o poder de eleger a maioria dos administradores da sociedade;

b) a transferência, para a iniciativa privada, da execução de serviços públicos explorados pela União, diretamente ou através de entidades controladas, bem como daqueles de sua responsabilidade. (grifamos)

c) a transferência ou outorga de direitos sobre bens móveis e imóveis da União, nos termos desta Lei.

Pode-se depreender, deste novo conceito de desestatização, o fato de que a estratégia governamental está calcada em três pontos principais: (i) alienação de direitos ou poder de participação nas deliberações de empresas públicas ou sociedades de economia mista; (ii) transferência de execução de serviços públicos para a iniciativa privada; (iii) transferência de direitos sobre bens públicos.

Para Fernando Facury Scaff, o processo de privatização somente seguiu adiante em face de modificações ocorridas na constituição econômica formal (conjunto de todas as normas referentes à matéria econômica em uma Constituição). Assim, o Brasil

193 SOUZA, 2005, p. 366.

194 MOREIRA, Egon Bockman. Direito das concessões de serviço público: inteligência da Lei 8.987/1995 (Parte Geral). São Paulo: Malheiros/SBDP, 2010, p. 20-21.

passou de uma economia de mercado nacionalista e com forte planejamento estatal para o oposto, ou seja, intensiva participação de capital estrangeiro, em razão da abertura da economia brasileira pautada no fenômeno da globalização.195

Corolário inexorável desta nova estratégia governamental - transformação dos serviços descentralizados por delegação legal em serviços descentralizados por delegação negocial - foi a criação das agências reguladoras. Assim, no Brasil, principalmente após a Lei nº 9.491/97, surgiram várias agências reguladoras para os mais diversos setores de infraestrutura e serviços, tais como energia elétrica (ANEEL196),

telecomunicações (ANATEL197) e petróleo (ANP198), estas no âmbito federal, bem como

no âmbito estadual (ARSESP199, AGERGS200, ARCE201) e municipal (ARSAL202,

ARSBAN203, ACFOR204).