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2.3 Nara, mãe de Nina - Pensando as redes de solidariedade e desigualdade de

2.3.1 Desigualdade de gênero refletida na epidemia do Zika

Após o nascimento dela e a separação com meu marido, a minha vida mudou. Fiquei muito abalada. Mas, fiquei mais forte. Não fico olhando e pensando que a cabeça dela é pequeninha, ela não é uma coitadinha. Eu penso mais no desenvolvimento dela. E ela, é muito esperta. Me escuta, eu converso com ela, me abro... Ela fica me escutando. Bem, posso dizer que ela sabe tudo de mim, e não vai falar, né? Nem entende, mas escuta. Mas, pelo menos tem alguém para conversar comigo. Posso dizer que sou a mãe mais feliz do mundo com meus filhos. (Nara, em mensagem de áudio recebida no Whatsapp no mês de agosto de 2016).

Houveram outros casos de abandono do pai após o nascimento do bebê, como dessa outra mãe que também compõe a coordenação da UMA: “Depois de um mês que ele nasceu, meu marido se separou. Eu acho que o menino 'aperreava muito', e ele não aguentou” (em entrevista ao G1 Pernambuco no dia 27 de fevereiro).

Pensar nessa relação mãe-filho (a), sendo este com a síndrome, traz uma série de cuidados especiais levados em consideração e embasados pelo discurso médico - que se tornam praticamente uma “obrigação” da mãe para a sua realização. Nesse aspecto, Izquierdo (2004) elucida a divisão sexual dos trabalhos e as noções construídas sobre o cuidado. Quando se pensa na mulher, segundo a autora, atribui a ela identidades como: dona-de-casa, maternidade, passividade. Enquanto ao homem, é caracterizado como profissional agressivo e racionalista. Consequentemente a identidade da mulher acaba sendo construída sobre uma lógica do cuidado, associando as práticas pessoais às ações sociais. Conferindo a mulher valores morais e simbólicos ligados ao cuidar, preservar, tomar conta. Se estas concepções permeiam o imaginário social, é previsível saber quem será destinada a essa tarefa e se não cumpri-la sofrerá julgamentos pela grupo social em que vive.

No caso analisado, Nara apesar das dificuldades, opta por cuidar de sua filha - se é que posso definir como opção. Conforme ela me contou abaixo em uma de nossas

conversas no Whatsapp, confirma a ideia do cuidado diferenciado para crianças especiais e crianças sem a doença. Embora ela reconheça a questão de gênero como marcador para diferenciar a efetivação do cuidado, percebo que ao citar a necessidade de “estímulos”, ela situa uma realidade bem específica, como pode ser visto na fala seguinte:

Tem muita diferença no cuidado dos meninos com o de Nina. Ela tá começando a abrir as mãozinhas agora, graças as estimulações dos exercícios que aprendi na internet e os que a fisioterapeuta passou. Estou ensinando ela colocar a mão na boca, a pegar nos pés, a passar a mão no nariz. Quando ela espirra, eu deixo ela suja, estimulando ela a pegar, passar a mão e sentir, dando a coceira entre a boca e o nariz. Estimulando ela ao toque. Depois eu limpo, faço cócegas no seu pé, deixo ela de cócoras... Sempre estimulando. Como ela tem contato com os irmãos, ajuda muito no desenvolvimento. (Mensagem de áudio recebida no Whatsapp no mês de junho de 2016).

De acordo com a autora Badinter (1985), percebe a maternidade com várias especificidades que variam conforme a cultura da mulher, ambições ou frustações. Não há um sentimento ou instituto maternal inerente às mulheres, isso é mito. Essas mulheres estão aprendendo e construindo sentidos maternais através da experiência de serem mães de crianças portadoras dessa síndrome. Marilyn Strathern (2006) entende por "gênero” aquelas categorizações de pessoas, artefatos, eventos e sequências que, se fundamentam em imagens sexuais, “nas maneiras pelas quais a nitidez das características masculinas e femininas torna concretas as ideias das pessoas sobre a natureza das relações sociais”. (p.20).

Ao ser questionada, Nara narra as dificuldades que vem sofrendo para dar conta da alimentação dos filhos, levando em consideração a dieta sugerida pela nutricionista. A ausência paterna das crianças, implica e força Nara a criar estratégias para cuidar dos filhos e trabalhar. Como já mencionado anteriormente, a importância da rede de solidariedade (vizinhos, amigos, parentes) é fundamental para a mãe de Nina dar conta de suas “obrigações”, bem como proporcionar uma dieta adequada, em especial para sua filha.

Diego, ela come tudo, arroz, feijão, carne, todo tipo de legume, legume amassadinho, fruta amassadinha. Passo a fruta ou o legume no liquidificador e ela come. Agora o problema dela principalmente é com água, só o líquido. Mas com uma textura mais pastosa como o que faço, ela não engasga. A nutricionista passou uma dieta pra ela, mas as condições não me permitem seguir. Tanto pra ela quanto para os meu outros filhos. Infelizmente as minhas condições não permitem uma alimentação adequada para os três. Sou sozinha para sustentar os três, isso dificulta tudo, não consigo arcar com tudo. A nutricionista passou azeite, as frutinhas de manhã, à tarde, à noite, no café da manhã, no

almoço, no jantar. Banana, inhame, batata-doce, macaxeira, tudo isso ela come. (Mensagem de áudio recebida via Whatsapp no mês de agosto de 2016).

Pedi para Nara contar-me como tem sido o processo de divórcio, ela passa a não me responder mais as mensagens. Insisto perguntando se ela gostaria de conversar a respeito. Dias depois, Nara responde minha mensagem dizendo que não quer mais falar sobre a separação com o marido. Eu respeito sua decisão. Por mais que não tenhamos um aprofundamento de dados nessa trajetória, a situação descrita de abandono após o nascimento de Nina já é bastante elucidativa para um análise. Confesso que esse foi um dos momentos mais difíceis para mim nessa pesquisa, uma vez que eu sou um homem visando entender porque um outro deixou a família. Mais difícil deve ter sido para a interlocutora que teve de assumir isso e acreditar que as coisas estavam acontecendo nessas circunstâncias e por motivos inconcebíveis.

A desigualdade de gênero não nasceu com o surgimento da epidemia da microcefalia associada ao Zika. Ela foi mais um estopim, sendo utilizada como justificativa do homem para o abandono da família. A epidemia emergente, de ameaça global como designado por Diniz, além da má formação cognitiva das crianças infectadas, se revelou também um “problema de gênero”, afetando mulheres gestantes. O que fez com que debates entorno da saúde reprodutiva da mulher surgissem. João Nunes e Denise Pimenta (2016) levantam aspectos importantes sobre a epidemia do Zika no sentido abordado nesse item.

Os autores, argumentam que a Zika é principalmente um problema de mulheres, mulheres em período fértil ou grávidas, suscitando outras questões difíceis de serem aceitadas pela sociedade patriarcal, como a “liberdade” de escolha da mulher no que se refere a vida sexual, gerenciamento da gravidez (se quer ou não abortar), ou ainda a participação das mesmas nos debates sobre políticas que dizem respeito ao corpo feminino. De maneira geral, os autores entendem que qualquer epidemia se ancora em tensões políticas e econômicas, muitas vezes atingindo pessoas de vulnerabilidade social e configurando estigmas como a xenofobia, homofobia, misoginia, racismo, sexismo, entre outros. O que na verdade seria uma negligência do Estado com a saúde pública, ou seja, que não desenvolveram políticas de combate ao mosquito vetor das arboviroses (Zika, Dengue, Chikungunya e Febre Amarela).

Os comportamentos sociais sendo traduzidos nessa perspectiva, instiga a sociedade em contexto (não afetada e infectada) à julgamentos de moral e valor

equivocados, instigando a culpabilização às mulheres, o preconceito com classes menos favorecidas economicamente e posteriormente causando outras discriminações às crianças. Nunes e Pimenta caracterizam essas “reações” sociais, a falta de educação sexual, mas também com barreiras culturais e religiosas. Para Izquierdo (2004) a divisão do trabalho também é desigual o que tenciona outras desigualdades na esfera doméstica. Isto é, os empregadores ainda contratam mais homens em comparação às mulheres, tem salários mais altos e mais tempo de trabalho.

Relembro ainda da campanha intitulada “Guerra contra o mosquito”, mobilizada pelo governo federal, estimulando todas a participação e eliminação do aedes. Segundo Rodrigo Farias (2016), o Planalto mantém a aposta na cooperação civil para o combate, porém destaca algumas comentários tendenciosos feitos pelo até então Ministro da Saúde Marcelo Costa; “O ministro disse ‘torcer’ para que mulheres fossem infectadas pelo Zika antes do período fértil, como forma de ganhar imunidade enquanto a vacina não está disponível.” (FARIAS, 2016, p.5). Em outra ocasião contada por Farias, relata que o ministro prescreve que as mulheres deviam usar calças, ao invés de ficarem com as “pernas de fora”.

Na discussão feita por Paterman (1993), sugere que o patriarcado seria o poder de dominação sobre as mulheres, logo as mulheres seriam submissas ao homem tanto na esfera pública quando privada. A própria culpabilzação do Estado quando afirma que as mães são responsáveis pelo adoecimento do filho, estão agindo sob um pensamento machista. Se os próprios representantes do Estado reproduzem o sexismo, como podemos resolver o problema da desigualdade de gênero e libertar as mulheres das concepções morais equivocadas? No que diz respeito à prática do cuidado, sua saúde reprodutiva e desculpabilização? Como indica Pimenta e Neves, seria a falta de reeducação; mas penso que este seja um processo extenso, afinal reeducar aspectos que estão presente socioculturalmente e naturalizado, precisam ser desconstruídos com debates e com plena participação feminina.

Considero bastante adequado o posicionamento de Oliveira et al. (2009), cunham a participação da paternidade no desenvolvimento sócioafetivo dos filhos, permitindo a transformação simbólica na estrutura das relações de gênero. Todavia, precisaríamos pensar numa reestruturação no campo político, jurídico e religioso que estabelecem quem deve praticar o cuidado, alimentando a matriz sexista e por conseguinte desigual. Para uma das mãe de 18 anos de Oricurí (PE) que conheci em um dos encontros da UMA, contou-me que viaja até 11 horas para efetivar o tratamento da filha no Recife, contando

com a ajuda dos vizinhos para cobrir os gastos. O pai da sua filha nem ao menos quis conhecer a criança: “O pai dela não foi ver ela ainda, nem registrou. Costumo dizer que ela não tem pai, porque pai é quem cuida, pai é sinônimo de amor, cuidado e interesse. Nada disso ele tem por ela, então pai ela não tem.” Tendo essa narrativa como pressuposto, constato a anulação do fator biológico como determinante na rede de parentesco deste arranjo familiar; a narrativa ratifica as concepções concebidas anteriormente sobre alguns homens em relação à paternidade.

As desigualdades não são apenas de gênero, a epidemia também trouxe à luz as diferenças de classes econômicas. Conforme acompanhei nas manchetes e revistas, os jornalistas optavam em realizar um recorte de classe para descrever as diferenças sociais entre as pessoas ameaçadas. As mulheres grávidas de classes prestigiosas, podiam optar em sair do país e ter uma gravidez “tranquila”. Acompanhei através da mídia, o caso de uma professora grávida da UFPB que recorreu à justiça e solicitou uma licença imediata, explicando que a universidade tinha inúmeros focos do mosquito vetor.

Ainda seguindo esse raciocínio, se Nara ocupasse um lugar socioeconômico diferente do atual, poderia ter contratado uma babá ou colocado na creche – outras mulheres estariam realizando a prática do cuidado, mas em outro contexto. Chamo atenção para as desigualdades sociais existentes que se diferenciam de acordo com a classe ou gênero. A interlocutora Nara foi abandonada pelo marido, culpabilizada pela doença da filha e tem se mantido através da solidariedade das redes de parentesco e vizinhança.

De tal modo, proponho nesta dissertação dois momento: o primeiro apresentado durante o segundo capítulo, onde notamos as mulheres no âmbito doméstico (privado) e no terceiro capítulo, as interlocutoras nas ruas, juntas enquanto agentes, reivindicando direitos e assumindo um papel político na dimensão pública.