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Mapa 4: Áreas territoriais pertencentes aos indígenas – meados do séc XIX

3.3. Desocupar para ocupar/explorar: a transferência de índios de seus respectivos

Nas primeiras décadas do século XIX, vários foram os conflitos entre índios e não índios pela posse das áreas pertencentes aos primeiros. Se, no ano de 1826, o Governo do Ceará debateu bastante sobre a manutenção ou não dos aldeamentos, não se deve ignorar a pressão feita pelos potentados para consumar seus planos de ocupação, domínio. Afora solicitar ao Governo provincial a transferência de índios de um lugar para outro, em certas ocasiões os privilegiados locais solicitaram isso ao próprio monarca ou a seus ministros, chegando a receber respostas positivas:

Accusando a recepçaõ do Officio de Vossa Excellencia, Numero dez visto, na data de trinta e hum de Maio do corrente anno, que servio de Informaçaõ a Representaçaõ dos Moradores da Villa do Aquiraz, em que se queixaõ dos Índios de Monte Môr Velho, pertendendo a mudança delles daquella pequena Povoaçaõ para as Villas de Soure, Mecejana, e Arronches: cumpre-me responder a Vossa Excellencia que Sua Magestade o Imperador, tomando em consideraçaõ a commodidade que tem as referidas Villas para receberem os mencionados Indios, por se acharem quase disertas, podendo aquelles cohibir-se entaõ dos seos erros, e fazer-se mais uteis, por estarem debaixo das vistas do Governo; Há por bem Deferir á pertensaõ dos supplicantes, para que se verifique a mudança dos sobreditos Indios. Deos Guarde a Vossa Excellencia Palacio do Rio de Janeiro em dezoito de Agosto de mil oitocentos e vinte seis = Jozé Feliciano Fernandes Pinheiro = Senhor Antonio de Sales Nunes Belford76.

76APEC. Fundo: Ministérios. Correspondência do ministro dos Negócios do Império, José Feliciano

Fernandes Pinheiro, emitida para o presidente do Ceará, Antônio de Sales Nunes Belford. 18/08/1826. L. 89 (1822-1826). fl. s/n

O relato acima, de 18 de agosto de 1826, é uma resposta de José Feliciano Fernandes Pinheiro a um ofício que havia recebido do presidente do Ceará, em 31 de maio daquele ano. Pela fala do ministro sabe-se que, naquele mês, moradores de Aquiraz fizeram uma “representação” relativa aos índios da povoação de Monte Mor o Velho. Queixando-se a D. Pedro sobre os “erros” que vinham cometendo, pediam sua transferência “para as Villas de Soure, Mecejana, e Arronches”. Logo, indaga-se: quais “erros” deviam ser reparados? O que justificava a transferência? Ademais, se se dizia que os índios eram poucos em Monte Mor o Velho, qual a necessidade de ficarem divididos nas três vilas citadas, segundo o que é apontado no documento?

Analisando as fontes, muitas são as perguntas que vem à tona. O argumento de que os índios seriam transferidos para reparar “erros” não se configura motivo suficientemente forte para que isso ocorresse. Ora, nada impedia que fossem “civilizados” lá mesmo onde estavam, pois já vivam sob a gestão de representantes do Governo provincial e imperial, mormente os diretores. Ademais, a afirmação de que Soure, Messejana e Arronches gozavam de “comodidade” para receber “os mencionados índios” não significa que fosse impossível ter uma vida “cômoda” no aldeamento de Monte Mor o Velho, onde residiam de longas datas. Não quer dizer, também, que esse lugar fosse visto como escasso, onde a sobrevivência indígena estaria comprometida. Não era essa a realidade e, naturalmente, o Governo do Ceará, e principalmente os moradores locais que queriam a retirada dos índios daquele local, tinham plena consciência disso.

Em suma, essas áreas nas quais viviam não eram limitadas e inférteis ao ponto de não conseguirem sobreviver nelas, terras indígenas que vagariam quando fossem retirados de lá. Por tudo isso, não se deve perder de vista que a fala de José Feliciano Fernandes Pinheiro, e, mais que isso, o aval dado pelo imperador para a transferência dos índios de Monte Mor o Velho, surgem a partir de uma solicitação dos moradores de Aquiraz.

Ainda sobre a afirmação de que Soure, Messejana e Arronches tinham “comodidade” para receber os ditos nativos, tal justificativa encontra outra que não lhe complementa e, aliás, até lhe contrapõe: a versão de que estariam despovoadas. Isso não deixa de ser paradoxal: aos índios de Monte Mor o Velho prometia-se boa vida noutros redutos nativos que eram retratados, igualmente, como quase desertos. Naturalmente, com esse comentário não se objetiva fortificar a ideia de que tais vilas

estavam “quase desertas”, muito menos contrariar a versão de que gozavam de “comodidade”. A intenção é só alertar que a utilização desses dois termos, da forma como estão postos, implica numa antítese, em mais uma das muitas contradições do discurso oficial.

Mas, enfim, D. Pedro I “deferiu” o pedido dos moradores de Aquiraz, dando aval para a retirada dos índios de Monte Mor o Velho sem que esses desejassem sair. Não queriam isso. Depois, muito se esforçaram para voltar a habitar essas áreas que lhes pertenciam. Dois documentos hoje localizados na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro – BNRJ, datados de 1831, são bem elucidativos quanto a essa questão. Num deles, de início, o vice-presidente do Ceará comunica ao ministro Manuel José de Souza França: “Passo as mãos de V. Ex.ª o requerimento de Joze Francisco do Monte, e outros Indios antigamente moradores na Povoaçaõ de Montemór Velho, em que me pediraõ que os mandasse regressar para a dita Povoação”. Em seguida, José de Castro Silva lembrou que os “suplicantes” haviam sido transferidos para Messejana “por ordem do Governo” cearense, “em cumprimento do Aviso dessa Secretaria de Estado de 18 d’ Agosto de 1826 expedido em consequencia de hûa representação dos moradores da Villa do Aquiraz”. Por fim, justificava ao referido ministro que, “por esse motivo naõ me julgar authorisado para diffirir o requerimento”, o remetia “a V. Ex.ª para o submetter ao conhecimento do Governo Supremo”77.

O outro documento é justamente o requerimento sobre o qual fala o vice- presidente José de Castro, feito pelos índios ou por algum intermediário próximo a eles. Inicialmente, nessa petição, é dito:

Disem José Francisco do Monte, Manoel Baptista dos Santos, Policarpio Pereira de Freitas, Manoel Bap.ta de Oliver.ª, Anselmo Pereira Lopes, Estevaõ Pinheiro da Rocha, Joaõ Fran.co Pereira, e mais Índios naturaes de Monte-Mor-Velho, que elles foraõ

arrancados pelo despotismo das suas casas, e terras e

mandados morar em Mecejana, com manifesta infraçaõ da Constituiçaõ do Imperio, que no titulo 2.º art.6 os declara Cidadaõs, sem a menor sombra de duvida, por q. saõ nascidos no Brasil; e saõ ingenuos: logo assim devem gosar de todos os Direitos, que a Constituiçaõ garante aos Cidadaõs78. (grifos meus)

77BNRJ. Correspondência emitida pelo vice-presidente do Ceará, José de Castro Silva, para Manuel

José de Sousa França, ministro dos Negócios do Império. 28/07/1831. C – 0750, 029.

78BNRJ. Requerimento enviado pelo Governo do Ceará ao Ministério dos Negócios do Império,

O requerimento denuncia que os indígenas de Monte Mor o Velho haviam sido “arrancados” violentamente de suas habitações e “terras e mandados morar em Mecejana”, e que essa medida, aprovada pelo próprio Governo Imperial em 1826, representava um grave desrespeito à Constituição do Império brasileiro, datada de 25 de março de 1824.

Sobre isso, algumas palavras são necessárias. No seu Título 2.º, Art. 6, a referida Constituição trata “Dos Cidadãos Brasileiros”79, algo que, no anterior, havia sido muito debatido na Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Império do Brasil. Como visto anteriormente, um dos grandes dilemas dos deputados foi para decidir se índios e negros deveriam ou não ser considerados cidadãos brasileiros no texto constitucional abortado com o fechamento da instituição, no fim de 1823. Pela Constituição posta em vigor no ano seguinte por D. Pedro I, para a obtenção da cidadania brasileira era preciso nascer no Brasil e ter enraizamento nesse lugar. Esse era o ponto determinante, e isso os índios tinham – o que era alegado naquele requerimento.

No parágrafo I do artigo e título citados, é dito que “São Cidadãos Brasileiros” todos “que no Brasil tiverem nascido, quer sejam ingênuos80, ou libertos, ainda que o pai seja estrangeiro, uma vez que este não resida por serviço de sua Nação”81. Ora,

assim, índios e negros não escravos nascidos no Brasil automaticamente deveriam ser considerados cidadãos desse Império. Ou não? Ao menos é isso que fica subentendido quando se lê essa passagem da Constituição de 1824. Logo, se na prática isso nem sempre ou quase nunca era reconhecido pelos privilegiados, no requerimento indígena o status de cidadão é reivindicado com o intuito de alcançar o objetivo maior daqueles: retornar para suas terras em Monte Mor o Velho.

79Constituição Política do Império do Brasil, 25/03/1824. Título 2.º, Art. 6. In: ALVES FILHO, Ivan.

Brasil, 500 anos em documentos. Rio de Janeiro: Mauad. 1999. p.165.

80Na Constituição de 1824, o termo “Ingênuo” foi empregado para distinguir os que nasciam “livres”

dos que nasciam escravos. Fica claro, portanto, que foi pensado para diferenciar principalmente os sujeitos de “cor”. Índios, negros e seus descendentes nascidos “livres” eram, assim, considerados “Ingênuos”. Por conseguinte, a referida expressão está diretamente relacionada, também, à questão da diferenciação entre aqueles que seriam os cidadãos passivos, os ativos com direito ao voto e os ativos eleitores e elegíveis. Ou seja, não bastava ser “Ingênuo (nascer livre) para votar e/ou concorrer a cargo público. Para isso, a própria Constituição exigia que o cidadão do Império tivesse e comprovasse certa renda econômica, naturalmente acessível apenas às elites. Sobre o assunto, verificar: MATTOS, Hebe Maria. Escravidão e cidadania no Brasil monárquico. Rio de Janeiro: Zahar, 2000. p.20-21

O requerimento feito pelos indígenas ou em nome deles é incisivo: o episódio em que foram “arrancados” de suas casas e levados para Messejana representava uma grave “infraçaõ da Constituiçaõ do Imperio”. Dizia-se que esta, “no titulo 2.º art.6”, “os declara Cidadaõs”. Embora os índios não sejam citados nominalmente na Constituição, alegava-se que, “sem a menor sombra de duvida”, eram cidadãos, posto “q. saõ nascidos no Brasil”. Claro, o longo convívio com as autoridades laicas e clericais e a consequente apropriação de valores europeus permitia a defesa do status de cidadão aos índios de Monte Mor o Velho. Afinal, não se defendia isso aos índios tidos como “bravios”, errantes, mesmo sendo originários do Brasil.

Em 1823, certos deputados da Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Império do Brasil haviam deixado isso bastante claro em seus discursos. Como visto antes, Manuel José de Sousa França foi um dos que defendeu veementemente: “Nós, é verdade, que temos lei que lhes outorgue os direitos de cidadãos, logo que elles abração os nossos costumes, e civilisação, antes disso porém estão fóra da nossa sociedade”82. Logo, reforça-se aqui: a longa vivência com representantes estatais e eclesiásticos era o que de fato possibilitava o discurso de que os índios de Monte Mor o Velho eram cidadãos do Império, ponto muito enfatizado naquele requerimento enviado ao Ministério dos Negócios do Império, em 1831.

Ora, dessa forma, pela lógica, se era defendido que os índios de Monte Mor o Velho tinham que “gosar de todos os Direitos, que a Constituiçaõ garante aos Cidadaõs”, naturalmente os outros inseridos no âmago da sociedade tida por civilizada, que conviviam cotidianamente com brancos e outros segmentos, não deveriam ser tratados de modo diferente, e sim como cidadãos do Império. Nesse período em que o discurso oficial geralmente dividia em “bravos” e “mansos”, era nessa última categoria que se enquadravam os nativos que habitavam nas demais povoações e vilas da província.

Na continuidade do requerimento atribuído aos indígenas, reforçava-se:

He garantido pelo §6 do art. 179 do tit 8º a conservaçaõ, ou sahida do Brasil, guardados os regulam.tos policiaes, e salvo o prejuiso de terceiro: está claro q’ nenhum Cidadaõ Brasileiro pode ser obrigado a morar em certos, e determinados lugares. No § 22 do citado art e tit he garantido o Direito de Propriedade em toda a sua plenitude.

82Discurso do deputado Manuel José de Sousa França. In: Anais da Assembleia Geral Constituinte e

Jamais podiaõ os supp.es serem forçados a largarem as suas casas, os seus sitios, e as suas terras...83

Logo, como teoricamente os índios de Monte Mor o Velho estavam sendo definidos ou se definindo como cidadãos, e o § 6 do Art. 179 da Constituição de 1824, acima referido, abria espaço para dizer “que nenhum Cidadão Brasileiro pode ser obrigado a morar em certos, e determinados lugares”, não deveriam ter sido levados a contragosto para a vila de Messejana, em 1826. Entretanto, o fato é que, paradoxalmente, desrespeitando a lei, era o próprio Governo Imperial que tinha ordenado que aqueles fossem retirados dali em atenção e para satisfação dos moradores não indígenas de Aquiraz, que haviam solicitado isso.

Ainda sobre o excerto supra, como se vê, denunciava-se fortemente que os índios jamais deveriam ter sido transferidos de Monte Mor o Velho, retirados de habitações, “seus sítios, e as suas terras”. Assim, embora os indígenas não sendo citados nominalmente na Constituição de 1824, tendo por base o §22 do Art. 179 daquele documento, atribuía-se para eles o “Direito de Propriedade em toda a sua plenitude”.

Por fim, descontentes com a saída forçada de Monte Mor o Velho, os indígenas pediam as autoridades “que lhes conceda licença para se retirarem aos seus lares, levando consigo a Imagem de N. S. da Conceição daquela Matriz, que tão bem se acha exilada na Matriz de Messejana”84. Com essa atitude, longe de querer somente evidenciar uma cristandade, na verdade os nativos queriam fazer valer seus direitos.

A iniciativa desses índios denota, portanto, forte esforço para não perder suas terras e/ou até mesmo tentar recuperar áreas ocupadas por outros quando foram retirados dali. Historicamente, no “processo de territorialização” em que muitas vezes eram transferidos e retransferidos dum local para outro pelas autoridades, na região que hoje forma o Nordeste do Brasil “uma população descendente dos índios” dos antigos aldeamentos buscou a duras penas manter “sob controle” as áreas que aqueles “mantinham como de posse comum”, se identificando “coletivamente

83BNRJ. Requerimento enviado pelo Governo do Ceará ao Ministério dos Negócios do Império,

atribuído aos índios de Monte Mor o Velho. 28/07/1831. C – 0750, 029.

mediante referências às missões originais”, “a acidentes geográficos” ou a “santos padroeiros”85, como faziam os de Monte Mor o Velho, em 1831. Nas décadas de

1820 e 1830, a disputa com os moradores brancos da vila de Aquiraz pela posse da terra foi intensa, violenta e bastante desgastante para as ambas as partes, mas, sobretudo para os primeiros.

Essa indesejada transferência dos índios de Monte Mor o Velho para a vila de Messejana, em 1826, é apenas um dos vários casos que ocorreram no Ceará com inúmeros grupos indígenas, seja no período colonial ou no contexto do Império brasileiro. A título de exemplo, pode-se citar, outrossim, o caso dos que viviam em Monte Mor o Novo (hoje cidade de Baturité). Transferidos de lá por ordem do Governo do Ceará, foram alocados, também, em Messejana.

Alguns relatos coevos trazem boas informações sobre o assunto, como uma representação, com “abaixo-assinado”, da câmara e moradores da vila de Monte Mor o Novo. Enviada ao Governo provincial no início de 1828, depois foi emitida pelo presidente Antônio de Sales Nunes Belford para as autoridades na Corte Rio de Janeiro:

A Camara, e Povos da Villa de Monte Mor Novo, Prov.ca do Ceará, abaixo assignados86, em sessaõ extraordinaria de sete de Janr.º de 1828, com a mais profunda reverencia representaõ a V.M.I, que creando se a ditta V.ª no dia 31 de M.co de 1764, ja a annos se achavaõ Aldeados duas Naçoens de numerosos Indios, denominados = Caninde = e Ginipapo = mas este pais foi sempre taõ contrario a sua propagaçaõ, que desde taõ remota antiguidade até o anno de 1824 compunhaõ hua pequena Aldea, e esta mesma ja estaria extinta, se naõ desertace para Ella de tempos em tempos infinidade de Índios de varias v.as da Prov.ca, acabando contudo os seus dias sem propagaçaõ. Appareceo nesta Prov.ca a sempre lamentavel, e nunca vista, e experimentada secca do anno de 1825 que devorou, naõ só o Cabedal dos Habitantes da Prov.ca, como que deminuio pela fome, e males, que ella costuma arrastar, quase metade de seos mesmos Habitantes, e entre elles a gente, que mais pereceraõ, foraõ os Indios, e outras pessoas de igual condiçaõ, sempre, dominados em todas as epucas da ociosidade87.

85OLIVEIRA, João Pacheco de. Uma etnologia dos “índios misturados”? situação colonial,

territorialização e fluxos culturais. In: OLIVEIRA, João Pacheco de. (Org.) A viagem da volta: etnicidade, política e reelaboração cultural no Nordeste indígena. 2.ª ed. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria/LACED, 2004. p.25

86Ver o “abaixo-assinado” no anexo 2, fotos 3, 4 e 5.

87BNRJ. Representação, com abaixo-assinado, da Câmara e habitantes da Vila de Monte Mor Novo,

pedindo a transferência dos índios dali para a aldeia indígena da Vila de Messejana – 1828. II – 32, 24, 015.

Foi numa sessão extraordinária que os edis da câmara de Monte Mor o Novo organizaram a representação acompanhada do “abaixo assinado” dos moradores, em 7 de janeiro de 1828. Sob a presidência de Francisco Pereira da Silva, requereram que os indígenas fossem retirados daquela vila. Diante dessa situação, é impossível não pensar na proximidade e jogo de conivência existente entre autoridades locais e particulares que, naquele momento, pretendiam transferir (para não dizer expulsar) os índios para Messejana.

Assim, buscavam desocupar e fazer uso das férteis áreas territoriais onde aqueles viviam. Ao fim e ao cabo, era esse o interesse maior. A presença indígena nesses espaços era, então, um grande obstáculo para os planos de exploração dos não indígenas. Nunca é demais lembrar que, em 1826, o presidente Antônio de Sales Nunes Belford já havia revelado todo o seu descontentamento com os índios, reprovando a conduta de não deixarem os brancos explorar as terras dos aldeamentos “sem precedencia de choques e contestaçoens”88. No início de 1828, em Monte Mor o Novo, era esse clima turbulento que prevalecia entre ambas as partes.

No relato ora citado, um detalhe que merece destaque é a identificação de etnias que habitavam aquele lugar. Segundo informam as autoridades, no momento da criação da vila, em 31 de março de 1764, “se achavaõ Aldeados duas Naçoens de numerosos Indios, denominados = Caninde = e Ginipapo”. Esse é, portanto, um caso raro, pois, quanto ao Ceará, a maioria absoluta das fontes oitocentistas não traz a discriminação étnica destes povos. No geral, concordando aqui com Maria Leônia Chaves Resende, “os colonizadores não estavam preocupados em reconhecer as diferenças que personalizam as diversas nações indígenas”, homogeneizando-as por meio da “designação, bastante genérica, de índios”89.

Dessa forma, embora os índios de Monte Mor o Novo tenham sido identificados, em 1828, como descendentes dos Canindé e Genipapo, a notícia de que o Aldeamento da vila recebia “infinidade de Índios de varias v.as da Prov.ca” abre possibilidade para se pensar que outras etnias foram reunidos àqueles ao longo da

88Parecer apresentado e discutido pelos membros do Conselho do Governo provincial do Ceará, de

1826: In: “Documentos Sobre os Nossos Indígenas”. Fortaleza: RIC. t.LXXVII, 1963[1826].

89RESENDE, Maria Leônia Chaves de. Brasis coloniales: o gentio da terra nas Minas Gerais

setecentistas (1730-1800). Texto apresentado para o encontro da Associação de Estudos Latino-

colonização. Isso significa, então, uma mistura que levava a eliminação de etnicidades específicas, já que os índios passavam a ser identificados não mais por sua etnia, mas como aldeados. Historicamente, “uma das características básicas” dos aldeamentos formados por padres e/ou autoridades laicas “era seu constante reabastecimento com novos contingentes humanos”, por meio “do ingresso” de índios “transferidos de outras aldeias ou regiões por razões variadas”90.

Porém, para legitimar a retirada dos índios de Monte Mor o Novo, autoridades locais e moradores justificavam que em momento algum eles haviam prosperado. Por essa lógica de interpretação dominante estavam acabando “seus dias sem propagação”. Argumentando que apenas “compunham uma pequena Aldeia”, os vereadores e moradores não indígenas buscavam tornar desnecessária, inútil, a presença daqueles ali. E assim, ao apontá-los como aldeados, novamente reforçam que os aldeamentos existiram ainda por muitos anos no interior das vilas indígenas no século XIX.