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Mapa 4: Áreas territoriais pertencentes aos indígenas – meados do séc XIX

2.2 José Bonifácio de Andrada e Silva e seu “Apontamentos para a civilização dos

dos índios bravos do Império do Brasil”.

Nascido em Santos, em 1763, e vindo a falecer no ano de 1838, em Niterói, José Bonifácio de Andrada e Silva tem sua ascendência em aristocrática família portuguesa. Tendo como objetivo a realização de seus estudos, ainda jovem afastou-se da sociedade colonial e foi para Portugal. Formado em Filosofia Natural e em Leis pela Universidade de Coimbra, onde também chegou a lecionar, retornou ao Brasil somente no ano de 1819, aos 56 anos de idade. Não demorou muito para se destacar no cenário político brasílico. Em junho de 1821, foi indicado para ser vice- presidente da Junta Provisória do Governo de São Paulo, projetando-se em âmbito nacional a partir desse acontecimento. No início de 1822, chamado por D. Pedro I para o Ministério do Reino e dos Negócios Estrangeiros, tornou-se o mais importante dos ministros do país e foi essencial ao movimento que culminou com a emancipação do Brasil em relação à Coroa lusa. Em julho de 1823, por pressão e perseguição política dos rivais e por razões de interesse político do imperador, foi destituído do cargo, ocupando então sua vaga de deputado imperial na Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Império do Brasil.

No período que sucedeu a independência, José Bonifácio de Andrada e Silva defendia vigorosamente que, “para a prosperidade futura deste império”, além da elaboração de uma Constituição, fazia-se necessário a implantação de “um novo regulamento para promover a civilização geral dos índios do Brasil”, bem como a aprovação de “uma nova lei sobre o comércio da escravatura, e tratamento dos miseráveis cativos”54. Convém salientar que, para essa questão da escravidão,

53“Apontamentos para a civilização dos índios bravos do Império do Brasil”, de autoridade de José

Bonifácio de Andrada e Silva, de 1823. In: DOLHNIKOFF, Miriam (Org.) José Bonifácio de Andrada e

Silva: Projetos para o Brasil. Op., cit.

54“Representação à Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Império do Brasil sobre a

escravatura”, de autoria de José Bonifácio de Andrada e Silva, 1823. In: DOLHNIKOFF, Miriam (Org.)

apresentava medidas que pouco ou nada agradava os senhores de escravos, o que fazia dele um sujeito ousado e que de certo modo configurava-se em ameaça aos interesses de inúmeros potentados distribuídos nas províncias que compunham o império brasileiro naquele momento.

De acordo com Miriam Dolhnikoff, ao longo dos últimos dois séculos vários foram os intelectuais que “atuaram na cena política brasileira, munidos de um projeto nacional, empenhados em apresentar soluções para superar os obstáculos à modernização do país”. Dentre eles, sem sombra de dúvidas José Bonifácio ocupa lugar de destaque. Erudito, “influenciado pela ilustração, observador atento da realidade nacional, formulou um projeto civilizador que pretendia concretizar no Brasil o sonho de um país europeu na América”55.

Desse modo, para José Bonifácio, a “civilização” dos indígenas e mudanças no sistema escravista eram dois dos requisitos básicos para se alcançar a modernização e prosperidade do Brasil. Em seu pensamento, essas questões não eram analisadas separadamente ou distanciadas. Ao contrário, apareciam intimamente correlacionadas, já que, no seu entendimento, “civilizar” os índios implicava concomitantemente numa possibilidade real de tornar desnecessária a escravidão. Em sua visão, uma vez “civilizados” os indígenas “farão com o andar do tempo inúteis os escravos”56.

Assim sendo, como “cidadão livre e deputado da nação”57, apresentou à

Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Império do Brasil, em 1823, uma proposta tida por ele como a mais viável para que o país caminhasse rumo ao tão sonhado florescimento, alcançasse um estágio ideal de desenvolvimento e se tornasse um referencial às nações estrangeiras. Para atingir esse fim, além de defender a necessidade de reformulação do sistema educacional e de mudanças no sistema escravista, ratificava a importância e a urgência de se (re)pensar com cautela a temática indígena, ponto crucial nesse complicado processo. Aos olhos das autoridades da época, o índio se enquadrava entre as questões problemáticas

55DOLHNIKOFF, Miriam. Introdução. In: DOLHNIKOFF, Miriam (Org.) José Bonifácio de Andrada e

Silva: Projetos para o Brasil. Op., cit. p.13-14.

56“Representação à Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Império do Brasil sobre a

escravatura”, de autoridade de José Bonifácio, 1823. Doc., cit. p.46.

herdadas do período colonial, sendo visto, repita-se, como um grande atraso a ser superado.

Seguindo uma lógica comum ao pensamento dominante da época, José Bonifácio defendia veementemente uma firme intervenção do recém emancipado Estado brasileiro na vida dos inúmeros povos indígenas que habitavam nas terras brasílicas, sobretudo dos que ainda estavam vivendo de maneira autônoma, totalmente isolados dos brancos ou com esses mantendo mínimos contatos. Como se daria essa intervenção? Foi o que ele esclareceu em seu emblemático “Apontamentos para a civilização dos índios bravos do Império do Brasil”58.

Concordando com o ponto de vista de Vânia Maria Losada Moreira, antes de tudo convém afirmar aqui que o “Apontamentos” “é, resumidamente, um programa de assimilação da população indígena “brava” por meio dos métodos “brandos”, que deve ser lido e interpretado de acordo com as preocupações mais candentes de Bonifácio”59. No referido projeto, portanto, José Bonifácio apresenta todas as diretrizes que em sua visão eram as mais eficazes para trazer os índios ao âmago da sociedade nacional e dessa maneira provocar em suas vidas bruscas mudanças no sentido de alcançar aquilo que na lógica político-administrativa e eclesiástica era tido por “civilização”.

Na verdade, antes de apresentar esse projeto na Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Império do Brasil, aquele deputado já havia defendido suas ideias a respeito da polêmica temática indígena nas Cortes de Lisboa, em 1821. Naquele contexto delicado para o Império português, em que a elaboração da Constituição do país era um dos grandes objetivos das autoridades ali reunidas, representantes de diferentes províncias do então Reino do Brasil não deixaram de, inevitavelmente, falar sobre os povos indígenas que habitavam as terras brasílicas, relatando sua situação e opinando sobre como agir em relação aos mesmos. Quanto

58Já citado neste texto, o “Apontamentos para a civilização dos índios bravos do Império do Brasil”, de

autoridade de José Bonifácio, de 1823, pode ser localizado In: DOLHNIKOFF, Miriam (Org.) José

Bonifácio de Andrada e Silva: Projetos para o Brasil. Op., cit.

59MOREIRA, Vânia Maria Losada. Os índios e o império: história, direitos sociais e agenciamento

indígena. XXV Simpósio Nacional de História. Simpósio Temático 36: Os índios na História.

a José Bonifácio, portanto, “se tornou famoso em se tratando do tema, posteriormente, dentro do Império brasileiro”60.

Tendo sua formação acadêmica através da Universidade de Coimbra, centro de saber científico e de produção de conhecimento que recebia inúmeros jovens de famílias aristocráticas portuguesas que habitavam o Brasil no período colonial, José Bonifácio teve a oportunidade de dialogar, aprender e trocar experiências com renomados intelectuais de Portugal e de outros países, sendo assim bastante influenciado pela “ilustração”. Dessa maneira, pela sua descendência de nobreza, por suas vivências no reino português e a trajetória de homem erudito que inevitavelmente sofreu grandes influências dos valores da cultura europeia, naturalmente o olhar que direcionava para os indígenas não era totalmente desvencilhado de um imaginário negativo construído sobre eles desde o processo incipiente de colonização, algo fortemente presente entre os homens letrados de seu tempo.

Para José Bonifácio, em seu “Apontamentos para a civilização dos índios bravos do Brasil”, o primeiro grande problema a ser enfrentado para inserir os índios no universo tido por civilizado era eles próprios, por serem, segundo o mesmo, “povos vagabundos, e dados a contínuas guerras, e roubos”. Em sua opinião, os indígenas não tinham “freio algum religioso, e civil, que coíba, e dirija suas paixões”, achando “insuportável sujeitarem-se a leis, e costumes regulares”61.

Veja que, mais de três séculos após a chegada dos portugueses no Brasil, na mentalidade dos homens da nobreza do então Estado brasileiro imperava a forte representação formulada aos nativos pelos primeiros brancos que chegaram nessas terras, no período quinhentista, quando os padres foram os principais responsáveis pela construção duma imagem denegridora desses povos. Atento a fala de José Bonifácio, de que os índios não tinham nenhum freio civil e religiosamente, não há como não lembrar que, no século XVI, se dizia que eles “não têm Fé, Lei ou Rei” e por isso viviam num mundo de erros e pecados, boa e necessária justificativa para legitimar a intervenção direta da Coroa portuguesa e da Igreja Católica em suas

60Sobre isso, verifique: SPOSITO, Fernanda. Nem cidadãos, nem brasileiros: Indígenas na formação

do Estado Nacional brasileiro e conflitos na província de São Paulo (1822-1845). Op., cit. Ver,

também: MOREIRA, Vânia Maria Losada. Os índios e o Império: história, direitos sociais e

agenciamento indígena. Op., cit.

vidas. Para Laura de Mello e Souza, diante das dificuldades enfrentadas para catequização dos indígenas, “repetidas vezes os jesuítas” iraram-se contra os índios e chegaram mesmo a afirmar que “são o povo do diabo”62.

Enxergando os indígenas não como criaturas diabólicas e nem como desumanos, mas, segundo Manuela Carneiro da Cunha, como homens “que dispõe de tão poucos instintos” e que “necessita de educação”: José Bonifácio propugnava a ideia de que cabia “ao Estado fornecer-lhe a possibilidade de saírem de sua natureza bruta e formarem uma sociedade civil” – ou, dito de outro modo, cabia ao Estado brasileiro desenvolver políticas no sentido de destitui-los dos seus atributos étnico-culturais, para que, só assim, passassem a compor a população nacional – como não índios. “São condições para tanto que se sedentarizem em aldeias, se sujeitem a lei, à religião e ao trabalho”. Logo, com esse posicionamento o deputado defendia seu próprio “programa”, que, obviamente, de acordo com a referida autora, “ajustava-se assim com perfeição”63 aos interesses de dominação.

Por mais de três séculos de colonização muito esforço tinha sido dedicado para educar e controlar “este gentio sem fé, sem lei e sem rei”64 e, mesmo assim, em 1823, não era possível dizer que as autoridades haviam alcançado plenamente esse objetivo. Dessa forma, haja vista que (independente de temporalidade e área geográfica) os nativos não “eram invariavelmente vítimas inocentes” que ficavam inertes diante dos planos de dominação das autoridades; e considerando “aí sua prolongada e extraordinária resistência à conquista”65: naturalmente José Bonifácio

tinha plena convicção de que não seria nada fácil chamar “ao grêmio da civilização” os índios por ele enquadrados na categoria dos “bravos”.

Historicamente, os portugueses e seus descendentes diretos encontraram demasiados entraves para fazer penetrar e consolidar entre as culturas indígenas o modo de ser e viver dos homens europeus, cuja educação e os ensinamentos eram pautados, convém reforçar, nos valores cristãos. Por isso, como a atmosfera com a

62Para uma reflexão sobre essa questão, ver: SOUZA, Laura de Mello e. O diabo e a Terra de Santa

Cruz: feitiçarias e religiosidade popular no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.

Mormente o capítulo 1, “O Novo Mundo entre Deus e o Diabo”. pp.21-85

63CUNHA, Manuela Carneiro da. Antropologia do Brasil: mito, história, etnicidade. São Paulo:

Brasiliense: Editora da Universidade de São Paulo, 1986. pp.165-172

64CASTRO, Eduardo Viveiros de. O mármore e a murta: sobre a inconstância da alma selvagem.

Revista de Antropologia, São Paulo, USP, v.35, 1992. p.22

65RESENDE, Maria Leônia Chaves; e LANGFUR, Hal. Minas Gerais indígena: a resistência dos índios

qual se depararam não foi tão boa para impor facilmente seus próprios costumes, ou, noutras palavras, como em inúmeros momentos a conduta dos nativos voltava- se mais para as ações de resistência do que propriamente para a aceitação passiva das regras jurídico-teológicas ocidentais, aqueles recorreram constantemente à violência.

Como se verá adiante, até mesmo José Bonifácio, embora falando em justiça e injustiça, reconhecendo os maus tratos sofridos pelos índios e defendendo que deveriam ser tratados com brandura: destacou bem a importância militar e não descartou totalmente o uso da força bélica a serviço do Governo para “conversão” e “civilização” daqueles. Enxergando nos costumes dos povos indígenas vários aspectos negativos e difíceis de serem modificados, apontava que um dos grandes defeitos destes dizia respeito ao fato de viverem “entregues naturalmente à preguiça”66.

Em seu “Apontamentos”, afirma que “o homem no estado selvático, e mormente o índio bravo do Brasil”, era preguiçoso por não ter “idéia de prosperidade”. Logo, na óptica bonifaciana, como era comum no pensamento dos intelectuais e autoridades oitocentistas, o modo de vida primitivo dos índios estabelece uma relação direta com aquilo que era definido como “ócio”, “preguiça”. Para aquele deputado, nessa condição nunca teriam eles “desejos de distinções, e vaidades sociais”, “molas poderosas que põem em atividade o homem civilizado”67.

Destarte, civilizar os índios significava despertar neles interesses e anseios do próprio universo dos dominantes. O problema é que se a “idéia de prosperidade”, as “distinções” e “vaidades sociais” eram o motor que impulsionava o sujeito civilizado, em contrapartida isso automaticamente originava e alimentava: a cobiça, ambição, vontade de enriquecimento, de ter poder, gozar status,... Enfim, os termos utilizados por José Bonifácio podem ser indiscutivelmente associados ou até substituídos por outros com carga semântica bem mais forte, e que inclusive ecoavam negativamente do ponto de vista do catolicismo, cujos dogmas eram igualmente defendidos pelo deputado.

66“Apontamentos para a civilização dos índios bravos do Império do Brasil”. Doc., cit. p.90 67“Apontamentos para a civilização dos índios bravos do Império do Brasil”. Doc., cit. p.92.

Pelos frequentes sermões que saíam dos púlpitos eclesiásticos oitocentistas, naturalmente o desejo imoderado de atrair atenção através da posse de bens materiais e o grande esforço que se fazia para obtê-los não correspondiam aos valores de igualdade, humildade e simplicidade, pontos teoricamente defendidos pela Igreja Católica. Na lógica clerical, aquilo que foi chamado por José Bonifácio de “vaidades sociais” gerava então vários e graves pecados, implicando, assim, na perdição do homem e de sua alma. Portanto, grande paradoxo: por essa lógica, os fins esperados com o alcance da “civilidade” não correspondiam literalmente aos mesmos interesses da catequização e, por assim dizer, aos planos de salvação.

Por fim, essa fala do deputado expressa um entendimento e ao mesmo tempo uma contradição não somente sua, mas que prevalecia na maioria das autoridades laicas. Entretanto, não objetivando alongar tal discussão, importa reforçar que, em sua visão, os indígenas enxergados como não “domesticados” representavam um sério entrave às pretensões de desenvolvimento do país. Da forma como viviam, à margem da sociedade tida por civilizada, não poderiam contribuir com sua força de trabalho, vista por aquele como uma alternativa para a eliminação gradual do sistema escravista.

Por estas e outras inúmeras razões, o modo de vida dos índios apontados como “bravos” era intolerável na lógica oficial. Noutras palavras: a forma de organização social que prezava pelo coletivo em detrimento do individualismo; a ausência de ambições materiais, do desejo de acúmulo de riquezas; o desconhecimento daquilo que na óptica dos brancos se definia como “prosperidade”/“progresso”; o repúdio ao disciplinamento do trabalho; a maneira íntima de se relacionar com a natureza e de lidar com as terras nas quais habitavam de longas datas, sem causar grandes impactos; eram algumas das tantas questões peculiares aos povos nativos que incomodavam bastante os homens que se deixavam levar por suas fortíssimas “vaidades sociais” – expressão utilizada pelo próprio José Bonifácio.

Contudo, apesar de defender a ideia de superioridade branca e ver tantas dificuldades que deveriam ser enfrentadas no processo “civilizatório”, o deputado enxergava o índio como um ser suscetível de aperfeiçoamento, uma espécie de “bom selvagem”. E dessa forma, segundo Manuela Carneiro da Cunha, ao “mencionar a perfectibilidade, usa o critério que se firmou na segunda metade do

século XVIII. É Rousseau, é Blumenbach, mas também Kant e Herder que fazem da perfectibilidade a pedra de toque da humanidade”68.

Todavia, até mesmo quando demonstra essa crença nos índios José Bonifácio faz isso petrificando estigmas constituídos sobre eles ao longo dos séculos. Ao falar da possibilidade de educar o indígena nos moldes ocidentalizados, defende que ele “é como o animal silvestre seu companheiro; tudo que vê pode talvez atrair-lhe a atenção, do que não vê nada lhe importa”. Por isso, “não se deve concluir que seja impossível converter estes bárbaros em homens civilizados”, pois, dizia aquele: “mudados as circunstâncias, mudam-se os seus costumes”69. Obviamente, reflexões desse tipo fortificavam mais ainda os estereótipos em relação aos povos nativos.

Retirá-los dos seus ambientes naturais e fazer com que se sedentarizassem e passassem a conviver com os não indígenas em locais previamente escolhidos pelos representantes do Estado, ou clérigos, implicaria então na dita mudança de circunstância e, desse modo, na modificação e/ou eliminação de seus antigos costumes. Pois, naturalmente, diante das novas situações com as quais se deparavam, os índios eram obrigados a todo instante a (re)pensar e (re)elaborar suas práticas socioculturais.

Porém, ao mesmo tempo em que era otimista quanto à ideia de “civilizar” os índios, José Bonifácio tornava a reconhecer que alcançar esse tão cobiçado objetivo era complicadíssimo, não poderia ser materializado de outra forma senão através dum processo moroso e gradual. Por conseguinte, atribuía também aos próprios brancos uma parcela de culpa pelas dificuldades enfrentadas nesse sentido. Para o parlamentar, se “eles nos odeiam, nos temem, e podendo nos matam, e devoram”, tinham seus motivos para agir dessa forma: “havemos desculpá-los; porque com

o pretexto de os fazermos cristãos, lhes temos feito e fazemos muitas injustiças, e crueldades”70. Sendo assim, por esse pensamento, o obstáculo para o alcance daquilo que era tido como “civilização” deixava de ser exclusivamente os próprios índios, haja vista que era “difícil adquirir a sua confiança, e amor”, dando aos mesmos um mau tratamento.

68CUNHA, Manuela Carneiro da. Antropologia do Brasil: mito, história, etnicidade. Op., cit. p.168-169 69“Apontamentos para a civilização dos índios bravos do Império do Brasil”. Doc., cit. p.92-95. 70“Apontamentos para a civilização dos índios bravos do Império do Brasil”. Doc., cit. p.97.

Essa passagem do discurso do deputado é polêmica, pois admite que, por trás dos interesses de evangelização e da capa da benevolência, muitas injustiças e crueldades foram e eram cometidas contra os nativos. Na dinâmica da colonização, em que o rótulo “de ser preguiçoso, indolente e ocioso” era atribuído ao índio por representantes da Igreja, elidir aquilo “que podia comprometer a salvação daquelas almas”71 implicou, muitas vezes, paradoxalmente: em atos de violência.

Naquele início da década de 1820, portanto, o autor do “Apontamentos para a civilização dos índios bravos do Império do Brasil” trazia para reflexão e dava relevo a uma questão minimamente reconhecida e/ou admitida entre os homens letrados e políticos de seu tempo: os erros cometidos pelos próprios brancos, o mal tratamento dado aos povos nativos, dificultavam o processo de integração desses à sociedade nacional. Como ganhar a confiança deles tratando-os com rispidez?

Rejeitando e, de certa forma, denunciando a prática da violência deflagrada contra os indígenas, José Bonifácio era defensor assíduo de que, naquele momento, nas “atuais circunstâncias do Brasil e da política européia, a civilização dos índios bravos é objeto de sumo interesse e importância para nós”72. Para isso, via no projeto de formação de aldeamentos o caminho mais viável. Estratégia recorrente no período colonial, configurando-se em fixação de grupos indígenas “sob um conjunto