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Para os desenvolvimentistas do séc. XX, o desenvolvimento cognitivo é um processo que nos transporta: de noções indiferenciadas, a conhecimentos razoavelmente integrados (Werner, 1957, citado por Lourenço, 2002); de pensamentos baseados na perceção a outros que vão além da informação sensorial que nos é dada (Bruner, 1973, citado por Lourenço, 2002); de formas de resolver problemas centradas nos aspetos mais observáveis à construção de inferências não dadas percetivamente (Piaget, 1983, citado por Lourenço, 2002) e por fim, da memória direta de algo que nos foi dito momentos antes, memória natural e imediata, à utilização de símbolos feitos com a intenção de nos ajudar a recordar o que já nos tinha sido dito, memória simbólica e mediada (Vygotsky, 1978, citado por Lourenço, 2002).

O desenvolvimento da consciência linguística e a aquisição da língua materna são, normalmente, processos que decorrem em simultâneo durante o desenvolvimento cognitivo infantil. O essencial destes processos está concluído por volta dos 6 anos, permitindo que as crianças, desde muito cedo, tenham

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desempenhos bem-sucedidos nas interações orais com pares e adultos e na compreensão e produção de curtos relatos e narrativas.

No entanto, o sistema mental que suporta o conhecimento da língua (a gramática interna) é um sistema extremamente complexo de associação entre som e significado, sendo necessário reconhecer as unidades e os subsistemas fonológico, morfológico, lexical, sintático, semântico e pragmático (Freitas, Gonçalves, & Duarte, 2010).

Contudo, no uso natural da língua, não existe, em geral, consciência da complexidade acima descrita e a atenção é focada no que se pretende comunicar e não nos aspetos formais de organização do nosso discurso – ou seja, recorre-se implícita mas não conscientemente, a esse sistema de conhecimento (Freitas et al., 2010).

Segundo Duarte (Freitas et al., 2010), os estudos realizados com crianças de língua materna têm mostrado que, ao lado deste conhecimento implícito, estas conseguem, relativamente cedo, olhar para a sua língua, abstraindo-se das outras dimensões para se concentrarem em aspetos específicos, por ex., no som quando inventam rimas, na estrutura sintática, quando repetem lengalengas ou nas propriedades semânticas das palavras, quando brincam com antónimos. Ao terem comportamentos linguísticos deste tipo, as crianças evidenciam capacidades metalinguísticas, uma vez que já assumem uma perspetiva distanciada e não holística do conhecimento da língua existindo aqui já uma consciência linguística.

Para este conhecimento linguístico (Freitas et al., 2010), o sujeito necessita de ter controlo cognitivo sobre a forma dos seus enunciados e concretiza-se na capacidade: de selecionar os itens lexicais, as formas e as estruturas mais apropriadas ao que pretende exprimir; de avaliar alternativas; e de adequar o estilo ao contexto e ao objetivo. A consciência linguística desenvolve-se a par com o desenvolvimento infantil, no sentido de um reconhecimento cada vez mais explícito. Esse crescimento provoca uma reorganização interna do conhecimento anterior, tornando-o cada vez mais

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coerente e acessível ao falante (Karmiloff-Smith, 1992, citado por Freitas et al., 2010).

Clarck (1978, citado por Viana, 2002) considera que as diferentes competências relativas à consciência metalinguística se podem classificar por níveis, tendo em conta a sua ordem de aparecimento e o nível de consciência envolvido. Assim, num primeiro nível, teríamos os comportamentos metalinguísticos sobre os enunciados verbais, estariam neste nível comportamentos como a autocorreção dos enunciados ou o ajustamento de cariz pragmático, como o de adequar a fala ao ouvinte. O nível mais evoluído de consciência metalinguística envolveria já capacidades para interpretar enunciados, dar definições e fazer trocadilhos.

As crianças, quando chegam ao 1º ano de escolaridade, utilizando a língua de escolaridade igual à materna, são capazes de compreender e produzir enunciados orais nessa língua, ou seja, já conhecem intuitivamente, o essencial da sua estrutura gramatical, o que lhes permite usá-la oralmente em contextos informais (Duarte, 2008). No entanto, com o início da abordagem sistemática da linguagem escrita a criança terá necessidade de mobilizar competências fonológicas, sintáticas e de análise textual que só raramente são mobilizadas na linguagem oral. Na sua comunicação oral não era exigida à criança uma atenção voluntária, na medida em que grande parte das situações de comunicação ocorre de modo espontâneo, contextualizado e com o interlocutor presente (Viana, 2002). Na comunicação oral, é provável a ocorrência de situações em que são evidentes alguns comportamentos de caracter metalinguístico quando, por exemplo, a criança corrige um erro que acaba por cometer.

A consciência deste facto levantou, segundo Viana (2002), a nível educacional, a questão da integração nos objetivos curriculares do desenvolvimento da consciência linguística, devido às várias investigações que apontaram para a importância do conhecimento explícito da língua, mostrando, por um lado, que para se atingir um nível elevado de desempenho na competência da escrita e da compreensão de leitura, é necessário um extenso e profundo conhecimento da língua que, em grande medida, tem que ser

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explícito. Para aprender a ler e a escrever, a criança precisa compreender que a linguagem é constituída por palavras e que estas, por sua vez, se decompõem em unidades menores.

A capacidade das crianças, no início da aprendizagem da leitura, para segmentar as frases em palavras, aparece altamente correlacionada com o desempenho em leitura posterior (Viana, 2002).

Importa também o fato de que parte substancial das aprendizagens escolares se fazerem através da leitura e uma parte muito significativa da avaliação exige textos escritos em que o conhecimento explícito é um fator de sucesso na aprendizagem das mesmas e por isso o conhecimento explícito da língua favorece, indiretamente, o sucesso escolar. Temos aqui a escola com um papel decisivo no alargamento do conhecimento intuitivo da língua de cada criança e no desenvolvimento da sua consciência linguística até estádios superiores de conhecimento explícito (Duarte, 2008), pois a consciência linguística tem grande importância em dois domínios distintos: no contexto educacional, em particular no que respeita à literacia e na intervenção terapêutica em perturbações do neurodesenvolvimento e perturbações da linguagem (Freitas et al., 2010).