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DEVER FUNDAMENTAL DE QUALIFICAR TRABALHADORES

3 A VINCULAÇÃO DOS ÓRGÃOS ESTATAIS E DOS PARTICULARES AO DEVER FUNDAMENTAL DE QUALIFICAR TRABALHADORES

3.2 DEVER FUNDAMENTAL DE QUALIFICAR TRABALHADORES

A qualificação de trabalhadores – tema do tópico anterior (3.1) –, tendo em vista sua repercussão prática e sua relevância socioeconômica, pode ser entendida como um dever fundamental a ser cumprido.

Para compreender melhor essa ideia, inicialmente serão abordadas as linhas mestras acerca da noção de deveres fundamentais e, na sequência, em que consiste o dever fundamental de qualificar trabalhadores.

3.2.1 Dever fundamental: lições iniciais

No capítulo anterior, os direitos fundamentais foram objeto de estudo, especialmente por serem, educação e trabalho, a base do direito à qualificação profissional, tema central da tese.

Tratar de dever fundamental é pensar exatamente nos direitos fundamentais vivenciados em outra perspectiva, a partir do olhar daqueles que têm a obrigação de efetivá- los.

Na explicação de Pedro Gallo Vieira e Adriano Sant’Ana Pedra235, é possível afirmar

que existe autonomia científica entre direitos fundamentais e deveres fundamentais, porém são inegáveis a reciprocidade e a participação no estudo entre os mesmos.

Os referidos autores apresentam como elemento de união entre direitos e deveres fundamentais o princípio da solidariedade, mecanismo indispensável para a efetivação da dignidade da pessoa humana – origem da fundamentalidade dos direitos e, também, dos deveres dessa natureza. Para eles, “deveres fundamentais não são fundamentais meramente por estarem contidos na Constituição, senão por garantirem os direitos fundamentais alheios ou do próprio sujeito do dever”236.

Francisco Rubio Llorente237 explica que os deveres fundamentais fazem parte de uma categoria maior, que é a de deveres constitucionais.

Cumpre salientar que a Constituição do Brasil faz menção aos deveres fundamentais no Capítulo I do Título II (“Dos direitos e garantias fundamentais”), cuja nomeação é “Dos direitos e deveres individuais e coletivos”.

O foco dos estudos constitucionais, contudo, volta-se de maneira preponderante à teoria dos direitos fundamentais, não sendo tão profícua a produção científica – nem o registro linguístico da expressão – acerca dos deveres que também dispõem da natureza de fundamentalidade. Há quem entenda238 esse fato atrelado a uma postura egoísta do cidadão, na medida em que seu compromisso com o outro é, muitas vezes, ínfimo, havendo uma preferência natural pelo tratamento do tema a partir do entendimento daquilo que é benéfico para si – ou seja, a partir da noção de direitos, e não de deveres. Vale registrar, contudo, que o pouco tratamento do assunto não está adstrito à realidade brasileira.

Para Adriano Sant’Ana Pedra239 os deveres fundamentais têm atuação relevante na

promoção e proteção dos direitos fundamentais. Na medida em que correspondem à sua verificação por outro ângulo, podem ser interpretados como elementos de concretização dos respectivos direitos.

235 VIEIRA, Pedro Gallo; PEDRA, Adriano Sant’Ana. O rol de deveres fundamentais na Constituição como

numerus apertus. Derecho y Cambio Social. A. X. Vol. XXXI, jan./mar. 2013, p. 4. Disponível em:

<http://www.derechoycambiosocial.com/revista031/O_ROL_DE_DEVERES_FUNDAMENTAIS.pdf>. Acesso em: 17 ago. 2015.

236 Ibid., p. 5.

237 RUBIO LLORENTE, Francisco. Los deberes constitucionales. Revista Española de Derecho Constitucional.

A. 21. nº 62, mai./ago. 2001, p. 23. Disponível em:

<http://www.cepc.gob.es/publicaciones/revistas/revistaselectronicas?IDR=6&IDN=364&IDA=25564>. Acesso em 17 ago. 2015.

238 A exemplo de Ingo Wolfgang Sarlet e Arion Sayão Romita.

239 PEDRA, Adriano Sant’Ana. Los deberes de las personas y la realización de los derechos fundamentales.

Estudios Constitucionales, n. 12, v. 2, 2014, p. 16. Disponível em:

Como lembra Ingo Wolfgang Sarlet240, os deveres fundamentais estão diretamente ligados à dimensão objetiva dos direitos fundamentais, por meio da qual estes são vislumbrados como valores a serem respeitados por todos (Estado e sociedade). Nesse diapasão, os deveres fundamentais materializam justamente a necessidade de observação dessa ordem objetiva de valores.

A partir desse entendimento, o estudo de deveres fundamentais justifica até mesmo a limitação de direitos fundamentais e alicerça a aplicação desses direitos não só em face do Estado, mas também entre particulares (como será observado no próximo item – 3.3).

Os deveres fundamentais podem ser categorizados, de acordo com Ingo Wolfgang Sarlet241 como: deveres conexos ou correlatos (quando ligados a direitos fundamentais) e deveres autônomos (quando independem de direito fundamental específico); deveres defensivos ou negativos e deveres prestacionais ou positivos (tomando como parâmetro as mesmas discussões que envolvem os direitos fundamentais nesse sentido, tratadas no item 2.4.4.2); bem como deveres expressos e deveres implícitos, tomando como base a existência ou não de previsão constitucional.

A principal lição, a partir das leituras sobre o tema, é de que os deveres fundamentais ainda são pouco explorados, apesar da sua grande relevância, especialmente quando observados na condição de elementos capazes de promover a maior concretude dos direitos fundamentais – uma vez que trazem consigo as noções de proteção e respeito destes –, em virtude da relação estabelecida entre os dois institutos jurídicos, deixando claro, inclusive, a quem é direcionada a obrigação de efetivar esses direitos com status diferenciado.

Tendo em vista o cerne do estudo, um dever fundamental específico começará a ser delineado a seguir, iniciando com as questões mais gerais e, até o final do texto, seguindo com aspectos relevantes acerca da sua existência, exigibilidade e seus contornos.

240 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria dos direitos fundamentais na

perspectiva constitucional. 12. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015, p. 234.

3.2.2 Aspectos gerais da qualificação de trabalhadores enquanto dever fundamental

Avançando a partir das noções gerais de deveres fundamentais do subtópico anterior, faz-se indispensável entender esse instituto jurídico em uma composição prática relevante e que consiste na grande defesa da pesquisa, qual seja, o dever fundamental de qualificar trabalhadores.

Trata-se de um dever fundamental com destinatários nos âmbitos público e privado (conforme será desenvolvido oportunamente), diretamente relacionado ao direito à qualificação profissional.

Levando em consideração a tipologia dos deveres fundamentais apresentada por Ingo Wolfgang Sarlet242, o dever fundamental de qualificar trabalhadores pode ser compreendido como um dever conexo ou correlato, uma vez que tem inegável correspondência com o direito à qualificação profissional – faceta prática do direito à educação.

Seguindo o mesmo entendimento, é também um dever fundamental prestacional, haja vista sua imposição de um comportamento positivo ao destinatário da norma – quer seja o Estado, como será tratado na letra b do item 3.3.1.2, quer seja o empregador, abordagem do próximo capítulo. Em que pese a construção de seu estudo bastante voltado para a perspectiva estatal – maior foco geralmente atribuído para o tema, em conjunto com a análise de obrigatoriedade de concreção por parte da sociedade, em uma perspectiva difusa, a exemplo do dever de cuidar do meio ambiente –, Peces-Barba Martínez243 reconhece a possibilidade de deveres fundamentais positivos de particulares, citando exemplos que envolvem justamente a área juslaboralista.

Finalizando essa análise tipológica, o dever fundamental de qualificar trabalhadores pode ser considerado um dever fundamental expresso, em virtude dos registros constitucionais direcionados à questão (como tratado no item 3.1.2). Quanto a ser expresso, seria com base no entendimento de que, existindo direito fundamental explícito na Constituição Federal, há o correspondente dever fundamental, ainda que não seja assim previsto – na condição de registro linguístico de dever fundamental – no dispositivo da Carta Maior.

242 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria dos direitos fundamentais na

perspectiva constitucional. 12. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015, p. 236-237.

243 PECES-BARBA MARTÍNEZ, Gregorio. Los deberes fundamentales. Doxa. nº 4. 1987. p. 341. Disponível

em:

<http://www.cervantesvirtual.com/servlet/SirveObras/public/12837218659036051876657/cuaderno4/Doxa4_19. pdf?portal=4>. Acesso em: 17 ago. 2015.

Vale pontuar que, no dever fundamental em estudo, como menciona Peces-Barba Martínez244, os benefícios não se destinam exclusivamente ao titular do direito, mas sim à coletividade, ganhando uma dimensão de utilidade geral. Essa percepção é extremamente presente em se tratando de dever fundamental de qualificar trabalhadores, na medida em que sua concretização, para além de satisfazer um direito individual, promove uma repercussão socioeconômica significativa, de maneira a destinar reflexos relevantes para a comunidade como um todo.

No próximo tópico – e até o final da tese –, dar-se-á continuidade ao exame do dever fundamental de qualificar trabalhadores, sendo, agora, observados aqueles que precisam fazer valer esse dever fundamental – tomando como parâmetro a teoria da eficácia dos direitos fundamentais – e, no capítulo seguinte, a proposta é aprofundar o entendimento do tema quando se tratar de obrigação do empregador.

3.3 A VINCULAÇÃO DOS ÓRGÃOS ESTATAIS E DOS PARTICULARES AO DEVER