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CAPÍTULO VI: A crise política bate no fundo

VI.2 DGS faz prova de vida

Ao meio-dia de 08 de março, os capitães Vasco Lourenço, Carlos Clemente, Antero Ribeiro da Silva e David Martelo, tomam conhecimento oficial do despacho ministerial que lhes ordena a transferência de unidade. Os dois primeiros devem seguir para o Comando Territorial Independente dos Açores, o terceiro para o Comando Territorial Independente da Madeira e o último da Escola Central de Sargentos (ECS) de Águeda, onde leciona, para o Batalhão de Caçadores 3, em Bragança.

Duas horas depois, Otelo Saraiva de Carvalho foi chamado a casa de Pinto Soares e é informado do acontecimento. Na sua leitura, o poder, tendo tido conhecimento da reunião de Cascais e movia-se no sentido de tentar destruir o movimento.

Desconhecendo as razões da decisão governamental, o movimento entendia que verdadeiramente importante na organização era Vasco Lourenço, membro da direção e elemento motor da ligação. Carlos Clemente e David Martelo eram delegados e ativistas, sem funções de direção. Antero Silva era um agente de ligação. Os três facilmente substituíveis. Vasco Lourenço estava há muito detetado juntamente com Dinis de Almeida (transferido para o RAL 5 de Penafiel) e Hugo dos Santos – imobilizado, sob observação, no Regimento de Infantaria 15 de Tomar, aguardando embarque para a Guiné. Quanto aos outros três, o MFA defende que foram mencionados numa troca de correspondência violada entre dois oficiais do MFA.93

Do lado do Governo, o subsecretário de Estado do Exército, Viana de Lemos, justificará que dos oficiais transferidos, o capitão Vasco Lourenço tinha sido

92Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), Fundo: Ministério do Ultramar (MU), Gabinete do ministro

(GM), Gabinete dos negócios políticos (GNP), Série (SR) 115 - Relatórios da imprensa estrangeira 1974, Pt. 12

incriminado num auto levantado no Estado-Maior do Exército (EME) visto ter sido portador de um elevado número de panfletos anónimos, relativos a uma manifestação de solidariedade dos oficiais da metrópole com os seus camaradas de Moçambique envolvidos nos incidentes que se haviam passado na Beira. Viana de Lemos adianta que seria conveniente o seu afastamento do continente até se serenarem os ânimos.94

Quase em simultâneo, relata o subsecretário de Estado, tomou conhecimento de cópias de documentos do movimento. Numa delas, que disse ter tido conhecimento no início de março, dava-se conta de que o movimento se estava a organizar por Armas e Regiões Militares e estabelecia as células de ligação. O documento em causa era referido à Arma de Infantaria e à Região Militar de Coimbra e indicava como responsável pela rede o capitão Carlos Clemente e na sua ausência o capitão Ribeiro da Silva e eram mencionados os nomes dos oficiais delegados nas diferentes unidades de Infantaria na Região Militar de Coimbra e terminava com a indicação de que devia ser destruído após a sua leitura. Num outro, que era totalmente manuscrito, falava-se num jantar de homenagem ao major Hugo dos Santos, em contribuições financeiras para o movimento e na necessidade de contactar tenentes-coronéis e coronéis. Foi decidido optar, também neste caso pela transferência para as ilhas adjacentes.

Na véspera da data prevista para o embarque dos três oficiais deu-se, na opinião do subsecretário de Estado, a primeira rebelião aberta com o incidente do «rapto e sequestro» de dois desses oficiais que no dia seguinte foram entregues pelo capitão Pinto Soares ao Quartel General da Região Militar de Lisboa.

“Por mim”, relata Viana, tudo começou na madrugada de 08 de março quando foi alertado pelo ministro da Marinha e depois pelo secretário de Estado da Aeronáutica, que lhe disseram terem sido avisados de que se preparava um movimento ou uma reunião de oficiais para evitar as transferências. Reuniram-se então, nessa madrugada, pela primeira vez, todos os ministros das pastas militares no gabinete do ministro do Exército, tomaram-se precauções para assegurar os

94LEMOS, Viana de, 1977, Duas Crises, 1961-1974- um olhar de um oficial do exército português, Lisboa,

embarques, mas verificou-se que só o capitão Clemente compareceu.95Já na versão de Otelo Saraiva de Carvalho, o que aconteceu não foi o aparecimento voluntário do capitão Carlos Clemente. O que terá acontecido é que pelas 06:30 da manhã o tenente-coronel Ferrand d’Almeida bateu à porta de Carlos Clemente dizendo que tinha ordem para o levar para a sua unidade, o RC 7, e guardá-lo ali até o acompanhar ao avião que o levará para os Açores.

De regresso à reunião ministerial, Viana de Lemos nota que durante a sessão o ministro da Defesa tentou, durante 40 minutos, alertar o general Costa Gomes, o qual só compareceu na manhã de dia 09, alegando que não tinha ouvido o telefone por ter tomado um comprimido para dormir. Segundo Viana, Costa Gomes começou por considerar as transferências injustificadas, mas depois ficou em silêncio quando lhe mostrou os panfletos. De referir que nos arquivos dos ministros militares nada consta sobre esta reunião.

Para discutir a questão das transferências compulsivas, reúne-se a Comissão Coordenadora Executiva do movimento em Alvalade (Lisboa). Presentes, entre outros, estiveram o capitão Silva Pinto (paraquedista), o capitão Balacó e Geada (Força Aérea Portuguesa), capitão-tenente Contreiras (Armada) e Melo Antunes, Rosário Simões, Morais da Silva, Gastão Silva, Luz e outros, do Exército, não pertencentes à Comissão Coordenadora Executiva.

Os homens aprovaram uma proposta no sentido de concentrar pelas 16:00 do dia seguinte, no Terreiro do Paço, junto ao Ministério do Exército, uma manifestação de protesto de oficiais que exigiriam ser recebidos pelo ministro. Iriam todos os que estivessem disponíveis.

Face a algumas hesitações, Otelo apresenta uma nova proposta. Considerando que a manifestação não ia impedir o embarque dos militares, propôs que não se permitisse o cumprimento das ordens ministeriais e ordenava que não seguissem para as ilhas, sequestrando-os se desobedecessem ao MFA. Esta proposta acabou por ser aprovada por maioria. Esta não invalidaria a anterior, ambas as ações se realizariam.

Vasco e Antero obrigavam-se a faltar ao embarque. David Martelo seguiria o seu destino sem entraves. Carlos Clemente, não estando presente foi avisado por telefone.

Entretanto, Almada Contreiras, levando em conta a amizade existente entre o ministro da Marinha, almirante Pereira Crespo, e António Spínola propõe-se ir a casa do ministro e avisá-lo de que algo incontrolável poderá acontecer no Exército se a ordem de transferência dos oficiais não for anulada, pedindo-lhe que interfira junto do ministro do Exército. A proposta foi aprovada e Pereira Crespo acabou por receber Contreiras. O ministro responde que a ordem não será cancelada. A conversa termina pelas três da manhã.96

No seguimento desta tomada de conhecimento, os ministros militares reúnem- se e é ordenada a entrada em regime de prevenção rigorosa da Unidade de Lisboa e a da província em regime de prevenção simples. Foi determinada medida idêntica para as forças de segurança.

Vasco Lourenço e Antero Ribeiro da Silva recebem ordem para sair de casa, são 05:30 da manhã. Carlos Clemente não acredita e deixa-se ficar. Pelas 06:30 o tenente- coronel Ferrand d’almeida bate-lhe à porta e leva-o ao avião para embarcar para os Açores.

Na manhã do dia 09, Pinto Soares entrega ao diretor da Arma de Engenharia um requerimento exigindo a sua demissão de Oficial do Exército, apresentando como motivo a transferência arbitrária de quatro camaradas.

Otelo é solicitado na noite de dia 09 para uma reunião em que Pinto Soares se encarrega de, em nome do movimento, ir entregar os sequestrados ao quartel- general. Pinto Soares acompanhará cerca da meia-noite os dois oficiais sequestrados – Vasco Lourenço e Ribeiro da Silva ao Quartel-General da Região Militar de Lisboa tentando obter com a sua entrega a anulação dos despachos de transferência. Em resultado desta ação ficam os três presos no Forte da Trafaria.

Dado o estado de prevenção em que entraram as unidades, a manifestação não chegou a concretizar-se.

A 09 de março, depois da longa noite de trabalho, o ministro da Defesa envia uma carta manuscrita a Marcello Caetano. De acordo com a missiva, naquela noite, às 04:00 da madrugada, o ministro da Marinha tinha-lhe telefonado dizendo ter notícias seguras de que se prepararia qualquer ação, que ignorava qual fosse, mas de um carater violento, para impedir o embarque dos oficiais que o Ministério do Exército transferiu para os Açores e para a Madeira. Igual comunicação dizia ter recebido do secretário de Estado da Aeronáutica. Informava que se tinham tomado, em consequência, as providências aconselháveis estando a Unidade de Lisboa em regime de prevenção rigorosa e a da província em regime de prevenção simples. O ministro do Interior determinou medida idêntica para as forças de segurança.97

Otelo acrescenta que a CCE difundiu dentro dos contactos telefónicos que conseguiu uma nova atitude a tomar: apresentação dos camaradas nas unidades e estabelecimentos, pelas 16:00, ao comandante, assumindo a sua quota-parte de responsabilidade no «sequestro» e solidarizando-se com os «sequestrados». Otelo diz que a ação provocou nos comandos das unidades e desconfortável sensação de que o movimento se movia.98

Sobre a transferência compulsiva dos oficiais, Costa Gomes dirá mais tarde numa entrevista que eram simples medidas administrativas, que já não escondiam a gravidade da situação.99