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CAPÍTULO VI: A crise política bate no fundo

VI.1 Um acordo que nunca existiu

Ainda com a discussão a decorrer na Assembleia Nacional, mas já sabendo que o movimento o apoia, Spínola pede para ser recebido por Marcello Caetano, o que acontecerá a 07 de março.

Uma conversa cujo relato se encontra manuscrito em sete pequenas folhas que constam dos arquivos de Marcello Caetano e mais tarde reproduzidas ( Anexo I).

Segundo esse relato, Spínola manifestou ao presidente do conselho o seu desgosto pelos incómodos e preocupações que tinha causado com a publicação do livro, dizendo que “a intenção era boa, só a de ajudar”. O autor do livro disse que ouvira o discurso na Assembleia Nacional (proferido dois dias antes) e que no essencial estava de acordo com ele.

Marcello respondeu que a publicação do livro lhe “criara e criara ao país, que é pior, dificuldades graves, quer no plano interno quer no plano internacional”.

Spínola atalhou que a longo prazo seria útil, que recebeu numerosas mensagens de aplauso – até de deputados. E no estrangeiro o acolhimento fora favorável até para ele (presidente do conselho) pois se louvava o facto de ter permitido a publicação e de se admitir a existência de um acordo.

O presidente do conselho respondeu: “isso poderia ser-me agradável se o acordo tivesse existido, mas como nunca existiu, é um equívoco”.

O problema, explicou Caetano, é que, ao publicar o livro não deixava de ser militar e até já estava em funções no segundo posto da hierarquia das Forças Armadas.

88CRUZEIRO, Maria Manuela, 2004, Melo Antunes, O sonhador pragmático, Lisboa, Editorial de Notícias,

O resultado da experiência deveria ter sido posta num relatório destinado ao presidente do conselho e ao ministro do Ultramar, mas publicar o livro, ocultando o texto ao presidente do conselho de quem passara a ser colaborador direto, eis o que não compreendia.89

Marcello referiu-se então à crise que se vivia: “Não é a minha posição pessoal que está em causa: mas a nossa situação funcional. Que pensaria ele, se fosse comandante-chefe, de um seu chefe de Estado-Maior que, sem dar cavaco, publicasse um livro onde pusesse em causa toda a sua ação de comando?”

O general calou-se, mas logo a seguir reafirmou a sua fidelidade. Queria dizer- me que nunca seria um homem de esquerda; houvesse o que houvesse, nunca o veriam do lado da oposição. Disse que era “um militar disciplinado. Não colaborava em revoluções. Não é homem de golpes de Estado”.

Apesar disso, porém, entende ser seu dever chamar a atenção do chefe do Governo para a situação nas FA.

Os oficiais jovens do quadro permanente continuam organizados e descontentes, informava Spínola, acrescentando que o têm procurado e ele entende ser seu dever recebê-los porque considera ser um erro perder o contacto com eles. Recebe-os no seu gabinete, em frente de toda a gente, para excluir qualquer suspeita de conspiração. E tem-lhes falado a clara linguagem da disciplina. Sem disciplina não há exército (…). Efetivamente tinha conhecimento que se mantém e continua ativa a chamada “organização dos capitães”. E suspeito que por detrás de tudo está a vontade de se não baterem mais [na guerra]. Isso é muito grave, conclui.

Os efeitos do livro parecem não mais dar tréguas ao Governo. A delegação em Moçambique da Direção-Geral de Segurança envia para o chefe de gabinete do ministro do Ultramar (dia 9 de março) uma carta com vários considerandos. Desde logo que o livro que chegou pelo semanário “Expresso” da edição de 23 fevereiro constituía um “golpe de Estado em papel, de consequências em si mais desastrosas que o próprio terrorismo no ultramar”. Segundo a mesma fonte, o livro deixa antever

89

AMC, Presidente do conselho – Ultramar/ Relatórios, notas e correspondência - 1968-1974, Cx 12, n.º 10, datado de 07 de março de 1974

perspetivas de um futuro duvidoso, sobretudo devido à presente situação em que é deficiente a atuação das FA e os militares se imiscuem na política e chega a referir que Spínola aspira ao Governo do país e por isso aceitou o cargo de vice-chefe de Estado- Maior General das Forças Armadas. Para a DGS moçambicana, o autor do livro aceitou o cargo para poder continuar ligado às FA, das quais espera uma tomada de poder em seu favor.90

A 12 de março uma outra carta de Luis C. Lupi em papel timbrado da “Lusitânia”, a agência noticiosa da imprensa portuguesa, trazia em anexo dois artigos publicados na imprensa inglesa: um do “Daily Telegraph” (sem data), um outro da revista Newsweek de 11 de março com o título “How to stay in África” e outro do L’Express Afrique.

O artigo da “Newsweek” fala da saída do livro e da opinião que Spínola transmite na obra ao defender uma solução política para a dispendiosa guerra em África. Defensor de uma independência parcial, Spínola advoga que é a única forma de manter influência em África. Entende que a campanha de subversão e terror das guerrilhas negras não podia ser esmagada pelas armas. Dizia que 12 horas após a publicação, o livro tinha esgotado nos quiosques da baixa de Lisboa. Enquanto os jovens membros da situação saudavam o documento como o mais importante em décadas, a ala direita do regime começou a fazer lóbi para a demissão de Spínola. Mas o regime do conservador Marcello Caetano remeteu-se ao silêncio – parecendo ter sido possível que Caetano, tenho lido anteriormente o livro, tenha decidido que teria um certo mérito.91

O mesmo artigo da “Newsweek” aparece também nos relatórios da imprensa estrangeira recebidos pelo ministro do Ultramar e elaborados pela secretaria de Estado da Informação e Turismo e pela direção-geral de informação. Na visão de quem elaborou o relatório sobre o artigo, o general Spínola aparece como um herói nacional . Até ao fim da semana, o regime conservador do primeiro-ministro Caetano não tinha aventado qualquer reação para além de um discreto silêncio – e isso supunha, porque

90AMC, Presidente do conselho, Ultramar/Relatórios notas e correspondência 1968-1974/Cx 12,n.º 13,

anexo 1

91AMC/Presidente do conselho – Ultramar/Relatórios notas e correspondência - 1968-1974, Cx 12,n.º

talvez Caetano tivesse já lido o livro e pensasse que o plano de Spínola tivesse um certo mérito, contando que Lisboa mantivesse, de facto, o controle das finanças, defesa e assuntos externos.92