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Diálogo entre o passado e o presente em Eça de Queiroz

2.3 FRADIQUE MENDES: CRIAÇÃO E CONTEXTUALIZAÇÃO

2.3.5 Diálogo entre o passado e o presente em Eça de Queiroz

Ao expor o pensamento atual sobre a personagem Carlos Fradique Mendes, convém retomar o pensamento de Antônio José Saraiva que, em 1954, em seu livro As ideias de Eça de Queirós, buscou elucidar algumas questões sobre a sistematização das ideias contidas nas obras de Eça, bem como caracterizá-lo como um pai de personagens vivas e rebeldes que aos poucos se soltam e alçam voos maiores do que aqueles propostos na vez primeira.

Ao estabelecer estas reflexões, Saraiva (1954) apresentou, inicialmente, uma carta da obra A Correspondência de Fradique Mendes, exatamente para exemplificar todo o estilo

de Eça, voltado para a caricatura da forma de vida política, social e moral portuguesa da época. Para ele, essa obra oferece, portanto, “em primeiro lugar certo número de ideias bem definidas e distintas, em segundo lugar variações, glosas e ilustrações repetidas das mesmas ideias” (SARAIVA, 1954, p. 6).

Para o autor, foi possível afirmar que o escritor de Prosas Bárbaras construiu seus contos e romances a partir de determinadas ideias, que são os ensaios postos em diálogos, as correspondências, a filosofia do amor e do adultério, os pensamentos de Proudhon, a proteção da igreja etc. Enfim, tais ideias dominam inteiramente suas personagens e as fazem ter até mesmo vida própria. Nos contos, Eça também pôde expandir à vontade as suas ideias, conforme afirma Saraiva (1954, p. 11): “[...] para certos escritores o conto é um pedaço de vida: um apontamento, um episódio, um personagem. Para Eça é geralmente uma tese e uma fantasia; ou melhor, uma tese revestida de fantasia – melhor ainda uma fantasia armada sobre uma tese”.

Saraiva (1954, p. 19) aponta ainda que Eça foi um estilista que acabou por dar fórmulas novas a ideias correntes. Desse modo, ele não é um filósofo nem um poeta, mas “a sua preocupação é a fórmula mais exacta ou o símbolo mais adequado a uma dada ideia. É esse o dom que Eça atribui a Fradique. <A percepção extraordinária da Realidade>”. Nos seus romances, há temas que se repetem: são eles “a educação da mulher e o adultério; a vacuidade da literatura ultra-romântica; a nulidade e o verbalismo dos políticos constitucionais; a vida escassa e vazia do funcionalismo das secretarias, o anti-clericalismo – e pouco mais” (SARAIVA, 1954, p. 19). Saraiva (1954) apregoa também que em Fradique houve o desejo de exercer sobre as almas a expressão do belo e que Eça é representante de ideias coletivas que determinam o grupo social e o momento histórico.

Ao tratar do fradiquismo, Saraiva (1954) explicita que a personagem Carlos Fradique Mendes voltou a Portugal em busca de algo muito especial: a cozinha portuguesa. Ele lamentou significativamente o desaparecimento da cozinha tradicional. No entanto, não há que se supor que somente isso interessava a Fradique. Vale ressaltar que ele buscava no seu país de origem as belas quintas do Moinho que lhe proporcionaram uma regalada “vida tão bela e tão farta” (SARAIVA, 1954, p.119). A simplicidade e a bondade do povo também encantavam Fradique. Para Saraiva (1954), ao amar o povo e desejar que ele não mudasse, Fradique demonstra que o povo é como a paisagem, que não muda e, caso mudasse, perderia seus encantos. Assim, “em todo o caso, a não ser como curioso e atraente fenômeno de decomposição e para o seu próprio uso, nada em Portugal lhe parecia tolerável a não ser a cozinha (antiga), a paisagem, e o <povo>, com a condição de se manter quieto e estacionário

como os bois” (SARAIVA, 1954, p. 121). É nisso que constitui o nacionalismo de Fradique, em desejar que seu povo ficasse estacionado e que seu país continuasse se mantendo longe da civilização, para, quando de suas visitas, ele o tivesse como a um lugar exótico para permanecer.

O autor supracitado considera também que, embora Eça afirme ser o homem um produto do meio ou ainda que o homem seja função do grupo social, em nenhum momento Saraiva (1954) encontrou Fradique nessas condições, pois ele nada tem a ver com o meio português; ao contrário, a personagem é definida como um desfrutador de Portugal. As coisas valem para Fradique na medida em que afetam a sua personalidade solitária, procedendo como se estivesse só nesse mundo. Para Saraiva (1954, p. 132), a filosofia social de Fradique e também de Carlos da Maia e João da Ega, resume-se na “[...] valorização do indivíduo deslocado do grupo e a satisfação do eu são o único critério da crítica do Fradiquismo à vida social de seu tempo”.

Para Saraiva (1954, p. 137), Fradique via na ciência a possibilidade de deleite de prazeres finos e raros, já Eça de Queiroz via a ciência e a técnica como “instrumentos ao serviço da concorrência comercial e industrial. É ela que permite o enriquecimento gigantesco das classes possuidoras, a formação do capitalismo e da grande massa proletária”. O Fradiquismo, para o autor, é a passividade, o desânimo de enfrentamento no meio que o cerca e também das condições sociais.

Para Matos (2000), A Correspondência de Fradique Mendes constitui a última metamorfose queirosiana e ainda uma espécie de testamento literário de seu autor. Ele afirma que:

Por meio de Fradique Mendes, seu alter ego, como a crítica já observou, Eça constrói o novo edifício doutrinário. O tom é memorialístico, a tentativa é de recuperar, à Proust, o passado desde 1867, quando pela primeira vez o herói entra na vida do narrador/autor (MATOS, 2000, p. 331).

Eça, através dessa personagem, faz sua autobiografia e, quem sabe, segundo Matos (2000), transfere para ele as dúvidas e as incertezas em relação até à sua própria obra. Em 1888, Fradique morreu, ano-chave da carreira de Eça de Queiroz, e ainda deixou um espólio que suscita as projeções de suas inquietudes. Fica patente também o amor desse autor à Forma que, segundo Matos (2000, p. 332), “[...] Não sem paradoxo, o amor da forma – que jamais abandonou Eça – faz parelhas com a recuperação do fantástico, relevante fase inicial

da sua carreira [...]”, pois o paradoxo é o que fundamenta as ideias de Eça, ao longo de sua vida de escritor e produtor de textos.

Ao estabelecer um diálogo entre o pensamento de Saraiva, na sua obra As ideias de Eça de Queiroz (1954), e o pensamento dos estudiosos contemporâneos, é possível perceber que há uma comunhão entre eles, visto tratarem de um mesmo eixo temático. De fato, tanto para Saraiva quanto para os pesquisadores atuais, Eça de Queiroz foi revolucionário e pacificador nas suas ideias e na sua carreira. Em algumas obras, ele se mostrou como um crítico voraz e revolucionário e, em outras, surgiu de forma mais cômoda e em paz com os ideais sociais de seu país.