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2.3 FRADIQUE MENDES: CRIAÇÃO E CONTEXTUALIZAÇÃO

2.3.2 Fradique Mendes queirosiano

Embora tenha sido criado pelo grupo formado por Eça, Antero e Batalha Reis, foi com Eça de Queiroz, no Mistério da Estrada de Sintra, que Fradique aparece como personagem e, mais tarde, em 1888, teve a sua biografia escrita por Eça de Queiroz. Na composição de Fradique Mendes, Eça esboça suas ideias em três de suas cartas a Oliveira Martins. Nelas, a forma de construção da personagem é mostrada, bem como alguns detalhes sobre suas inspirações para a possível obra. Adiante, fragmentos das cartas que demonstram as primeiras ideias de Eça para a criação da obra A Correspondência de Fradique Mendes, bem como a sua personagem:

Bristol 10 junho 1885 Querido Joaquim Pedro

Tenho andado com um tal período de estupidez que não só não te pude mandar um bocado de prosa bem confeccionada – mas nem tive a coragem de te anunciar um plano de trabalho que me lembrara para a Província. Não se podem fazer promessas literárias quando se está tão singularmente estúpido. O que eu pensei foi – uma série de cartas sobre toda sorte de assuntos, desde a imortalidade da alma até ao preço do carvão, escrita por um certo grande homem que viveu aqui há tempos depois do cerco de Tróia, e antes do de Paris, e que se chamava Fradique Mendes! Não te lembras dele? Pergunta ao Antero. Ele conheceu-o. Homem distinto, poeta, viajante, filósofo nas horas vagas, diletante e voluptuoso, este gentleman, nosso amigo, morreu. E eu, que o apreciei e tratei em vida, pude julgar da pitoresca originalidade daquele espírito, tive a idéia de recolher a sua correspondência, – como se fez para Balzac, M.me de Sévigné, Proudhon, Abélard, Voltaire e outros imortais – e publico-a ou desejo publicá-la na Província. Fradique Mendes correspondia-se com toda a sorte de gentes várias, all sorts of men como se diz na Bíblia oficial desta terra. Escreve a poetas como Baudelaire, a homens de estado como Beaconsfield, a filósofos como Santo Antero, e a elegantes como (não me lembra agora nenhum elegante a não ser o Barata Loura) e a personagens que não são nada disto, como o Fontes. Além disso tem amantes, e discute com elas a metafísica da voluptuosidade. E nas cartas ao seu alfaiate encontram-se as regras mais profundas da arte de fascinar. Quando está viajando, no Japão ou na Ásia Central, faz paisagens e quadros de costumes. E quando vem a Portugal, pinta aos seus amigos de Londres e de Berlim, as coisas e as ideias do Chiado, de S. Bento, das tabacarias e dos salões.

Grande foi o trabalho de colecionar estas cartas, mas a Província não se poupa a esforços etc etc.

Hem! que assunto! e com este título modesto – A Correspondência de Fradique Mendes. Precedida está claro, por um estudo sobre a vida e opiniões desse lamentado gentleman. Estas cartas devem ser publicadas em ordem, a não ser de datas, – e portanto uma aqui outra além. Aí está o que me lembra para a Província. Não prometo para já, – mas hei-de fazer o possível para dar aos teus leitores, o mais depressa que mo permita uma infinidade de

provas que tenho entre mãos, uma ou outra das primeiras cartas deste nosso interessante amigo. [...]

Teu do C.3 Queiroz4

O processo de criação da personagem ocorre de maneira explícita nesse trecho, assim como são mostradas as inquietações e a empolgação do escritor diante da produção de uma obra. Normalmente, há entre autor e leitor uma aura pré-estabelecida de que aquele habita o olimpo e esse, a terra; desse modo, essa carta, ao mostrar as agruras e a motivação que o escritor sofre no processo de produção textual, aproxima-o dos seres humanos normais, humanizando o produtor do texto.

A seguir, em outro trecho da Correspondência de Eça de Queiroz, é possível observar que o escritor, ao criar Fradique, não o quer uma personagem qualquer, mas alguém que seja marcante.

Bristol 23 de maio 1888 Querido Joaquim Pedro

Tenho estado para te escrever há muito, por motivos vários, – mas surge invariavelmente um desses obstáculos, que etc. ...Nada de mais desculpas. [...]

E agora, entro no assunto – que é literatura. Tenho aqui para ti, isto é para o Repórter, dadas certas condições, uma imensa quantidade de prosa. De fato todo um livro. Livro porém que se pode publicar aos bocados, todas as semanas, sem lhe prejudicar a unidade e o interesse. Compreenderás quanto eu te disser que se chama – Correspondência de Fradique Mendes. Trata-se, como desde logo deduzes, de fazer para Fradique (não sei se te lembras deste velho amigo) o que está na moda fazer a todos grandes homens que morrem – publicar-lhe as cartas particulares. Fradique foi um grande homem – inédito. Eu revelo-o aos seus concidadãos, publicando-lhe a correspondência. Se bem te recordas dele Fradique, no nosso tempo, era um pouco cômico. Este novo Fradique que eu revelo é diferente – verdadeiro grande homem, pensador original, temperamento inclinado às ações fortes, alma requintada e sensível... Enfim o diabo!

Tudo isto até aqui vai muito bem em relação ao Jornal porque nada mais conveniente do que publicar todas as semanas, ou pouco mais ou menos, algumas destas cartas. Somente eu não podia editar a correspondência de Fradique sem a preceder dum estudo sobre esta singular personalidade. Ora esse estudo não pode ser fragmentado – quero dizer tem que aparecer seguido e a seguir. E ele compreende ao menos dez artigos. Que queres tu? Eu conheci tanto este homem tenho tantas coisas a contar dele, tão curiosas!...

3 Teu do Coração – era uma forma de despedir-se na sociedade da época. 4

Como publicar porém dez artigos a seguir? No folhetim, não pode ser, porque se não pode interromper um romance, nem eu quero que o estudo crítico sobre um tão grande homem apareça nesses baixos do jornal destinados à imaginação e à novela. No primeiro artigo também não pode ser – porque isso altera a feição mesma do jornal que para cada dia, tem o seu tenor. [...]

Escreve, e recebe um bom abraço do teu do C.

José Maria5

Nesse fragmento é importante ressaltar que Eça se refere a Fradique como alguém que já teve vida própria, alguém que tenha realmente existido, fato esse que levou os seus leitores a acreditarem na existência real e concreta de Fradique Mendes. A seguir está reproduzido um trecho de outra carta a Oliveira Martins, datada de 12 de junho de 1888, na qual continua a tratar da produção da obra A Correspondência de Fradique Mendes.

Bristol 12 de junho de 1888 Meu querido Joaquim Pedro

Recebi a tua boa carta. Não é possível, como propões, cortar os pedaços melhores do estudo Fradique, e alinhavá-los todos juntos num só artigo. Decerto me expliquei mal. A introdução a “Cartas que nunca foram escritas por um homem que nunca existiu”, - não podia deixar de ser uma composição em que se tentasse dar a esse homem primeiramente realidade, corpo, movimento, vida. Não se pode decentemente publicar a Correspondência de uma abstração. De sorte que o tal estudo crítico é de fato uma novela – novela de feitio especial, didática e não dramática, mas enfim novela com uma narração, uma ação, episódios, uns curtos bocadinhos de diálogo e até – paisagens! Desde logo vês que isto se não pode condensar, nem disto se podem fazer extratos. Tem de ser publicado tudo! Por outro lado sem prévia história do homem, é impossível encetar abruptamente as cartas. O público perguntaria naturalmente – “mas quem é Fradique?” Inventa pois outra coisa, e responde logo, pois que eu tenho pressa de resolver isto, por causa do Brasil. Os artigos não são dez por fim; são oito, mas graúdos. [...]

Os meus respeitos à senhora D. Vitória, e um bom e grande abraço do

Teu do C. Queiroz6 Dize-me se achar que Fradique escreva a nomes próprios e deles fale (como Oliveira Martins) ou que escreva só por ex. ao seu grande amigo Vaz Mont‟Arroio, autor do Portugal Moderno.

5 BERRINI, Beatriz. Eça de Queiroz – Obra Completa. Vol. IV. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2000. p 245. 6 BERRINI, Beatriz. Eça de Queiroz – Obra Completa. Vol. IV. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2000. p 248-249.

É possível observar a intimidade dos dois amigos através das cartas. Também nota-se que, mesmo depois da criação ou da escritura de partes da obra, sempre há que se fazer ajustes ou ainda aprimorar o que se foi escrito.

Após a retomada do personagem Fradique Mendes, Eça de Queiroz, segundo Matos (1993), estabeleceu uma distinção entre o primeiro Fradique e o último. O primeiro tinha traços cômicos e o segundo possuía um diferencial, que era ser grande homem e pensador original. Assim:

Este Fradique (1834-1888) será agora um aristocrata rico, descendente de antigos navegadores, „de uma velha e rica família dos Açores‟. Estudara em Coimbra e em Paris, acompanhara Garibaldi na conquista das Duas Sicílias, fizera parte, com 34 anos, do estado-maior de Napier na campanha da Abissínia (MATOS, 1993, p. 438).

E ainda, ao citar Oliveira Martins, Matos (1993, p. 438) apontou que “Fradique Mendes era o português mais interessante do século XIX”. Também são demonstrados conceitos negativos a respeito de Fradique, no entanto eles surgem em número menor àqueles considerados positivos.