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Capítulo II: Os achados do Campo

Apêndice 2 Diário de Campo

As notícias se espalham com facilidade no mundo dos estudantes, e mal iniciam as aulas, junto ao esforço da equipe do BNBD em propagar a ideia do projeto, os alunos chegam curiosos e fascinados com a imagem que lhes capturaram – levar alegria às pessoas internadas no HUAP.

Nos reunimos nas 4ªs feiras, por volta das 17:00. Assim vamos chegando devagar, de uma rotina pesada de aulas e trabalho. A sala do departamento é pequena, mas aconchegante. Entendemos que acolher e cuidar do outro é necessário uma série de ingredientes, e um deles é a ambiência tão valorizada como ponto importante na proposta do Humaniza SUS, “humanização” da saúde. É cuidando da chegada dos alunos que iniciamos nossa jornada. Conversamos, alguns despejam suas mochilas e procuram o violão ou algum outro instrumento. Começa a afinação. Abrem os armários e vão saindo cifras de músicas, chapéus, nariz de palhaço, bolinhas de sabão, papéis coloridos. Os rostos vão mudando, mais descontraídos. Os sorrisos vão surgindo seguidos de brincadeiras. Mesmos as conversas mais sérias, ainda sobre a última prova, ou a quantidade de matéria vão sendo diluídas e amenizadas pelas solidárias sugestões dos colegas e muitas vezes minhas também , afinal sou mais um componente do grupo. A troca é inevitável. Nomes, cursos, e-mails, telefones e principalmente experiências circulam nesses 30 a 60 minutos de convívio. Dia 11/05/2011.

Em alguns momentos realizamos essa troca, fazendo alguma atividade, como nesse último dia das mães. Tínhamos papel crepom e criamos vários tipos de flores. Éramos nesse dia muitas meninas e um menino, com certeza muito envergonhado de estar só pensando em como iria criar flores de papel? Num primeiro momento ele reluta verbalizando não ter “jeito” para fazer tal coisa. Com incentivo do grupo, os papéis em suas mãos foram tomando forma e quando nos demos conta havia surgido uma flor rara e totalmente diferente das outras. Inventamos maneiras diversas de fazer flor e oferecemos as mães e mulheres das enfermarias assim como organizamos um tempo com as mães da pediatria, para elas fazerem as flores junto com seus filhos, que obviamente estavam em condições para tal. O aluno, criador daquela flor rara, foi convocado a ensinar sua habilidade às mães que curiosas desejaram aprender a diversidade de formas em flor. Foi uma atividade muito prazerosa e gratificante por criarmos, abrirmos espaço de criação para os alunos que nunca ou pouco tiveram contato com tal material e à essas mães incansáveis, ao lado de seus filhos 24 horas por dia numa enfermaria.

Outro momento importante, também com as mães da pediatria foi o trabalho com “fuxico”, retalhos de tecido que transformam-se em objetos utilitários ou lindos adornos. O trabalho com tecido é muito procurado pelas mulheres e sendo a técnica do fuxico bem simples e rápida, teve um efeito muito gratificante na enfermaria pediátrica. Nos revezamos ora trabalhando com as mães, ou brincando com as crianças para que elas pudessem participar da atividade. As etapas do trabalho foram passadas e experimentadas pelos alunos antes de irmos para as enfermarias. Cortamos, costuramos, criamos formas para as pequenas rodelas de tecido, uns com mais facilidade, outros menos, mas todos manusearam o material. Sentiram as dificuldades e facilidades que o material nos impõe. Um tecido tem vida própria, ele desliza, mexe de jeito que a agulha entra esquisita e dobra

mais ou menos que o necessário, ou como desejamos. É preciso paciência e vontade de se unir a trama do tecido. Os fios do nosso desejo se entrelaçam ou não aos do tecido e assim vamos nessa relação amarrando e costurando histórias. A costura demanda muitas histórias. De amor e de paixão. Do cotidiano sendo tecido e pensado ao mesmo tempo. É inevitável enquanto fazemos fuxico, não “fuxicarmos”, não travarmos conversas e fofocas. Esse momento é muito salutar para o grupo. Não são mais meninos e meninas se juntando à mesa para fazer algo, e sim compartilhando dificuldades, facilidades, histórias, desejos...

Esse preparo com os alunos de experimentarem o material e despertarem as sementes criativas inerentes a todo ser humano é fundamental a nosso ver, na estimulação dos diferentes sentidos que nos constituem como um corpo. Um corpo que não é só razão mas emoção, sentimento, que pensa, sente, intui, imagina, e cria utilizando : a visão, o ouvir, o tato, o movimento, olfato, gosto e tudo que vibra nos compassos e descompassos dos ritmos da vida. Como bem nos agraciou Bachelard: “...quando uma matéria sempre nova em sua resistência impede-o de tornar-se maquinal,

o trabalho de nossas mãos restitui a nosso corpo, a nossas energias, a nossas expressões, às próprias palavras de nossa linguagem, forças originais. Através do trabalho da matéria, nosso caráter adere de novo a nosso temperamento.”(p. 24) Junho de 2011.

Propomos ao longo do ano algumas oficinas e atividades para todo o grupo do BNBD, juntando alunos dos 3 dias do projeto. É um momento importante onde há a possibilidade desse encontro maior, e optamos um dia pela modelagem com barro. Foram chegando aos poucos e vendo uma mesa grande forrada com um plástico, algumas bacias com água e uma massa “estranha”, uma terra molhada. Poucos alunos mostraram alguma intimidade com o material, e como o esperado, outros sentiram alguma repulsa em experimentar algo que suja e deixa as mãos enlameadas. Mas surpreendentemente todos tocaram de alguma forma o material. Preocupados com o que esperávamos deles, perguntavam o que fariam com a massa nas mãos. Pedi que manuseassem sem pensar em projetos e planos, apenas sentissem o material, amassando deslizando os dedos em toda sua maciez e umidade. Podiam aproveitar e bater, jogar, empurrar, socar se quisessem até que seus corpos se unissem ao que o barro lhes propunha. Trabalhamos por cerca de 1 hora e meia. Surgiram objetos inusitados, animais, cabeça humana, vaso com flores ou também marcas no barro que por si só traduzem o encontro das pequenas e tímidas carícias. O barro é uma material carregado de imagens simbólicas, imagens em 3 dimensões e sua maleabilidade fazem-no um material ímpar, misturando o mole e o duro, a água e a terra, e nesse mistura vamos nos constituindo. Alguns com mais água outros, mais terra e através desses dois elementos juntos vão sendo moldados, afetos, sentimentos, idéias, desejos, corpos. O grupo se manteve concentrado e pouco falante. O barro solicita intimidade e delicadeza na sua tentativa de formar algo. “Toda forma nasce da terra”, escreve Mircea Eliade em

seu Trate d’histoire dês religions (1970). Terra dos mortos e dos grãos, é o lugar da vida e da regeneração. Inúmeros rituais de passagem, em grupos culturais diversos, incluem o recolhimento em alguma cova. Além de constituir óbvia experiência de morte simbólica, esse rito promove o contato direto com o íntimo do barro, evidenciando-lhe a função de criação e recriação, pois, diz ainda Eliade, “a terra produz formas vivas”. E o oleiro, o escultor, cúmplices das forças telúricas, deixam

que seus dedos despertem as formas vivas adormecidas no âmago da terra. ( Gouvêa, 1989) Setembro

2011.

A imaginação cria as próprias realidades, sem as limitações de espaço e nem de tempo, sem delimitações nem condicionamentos externos. A criança é quem mais utiliza a fantasia em suas relações com o mundo. Perde-se essa facilidade ao se impor uma forma “dura” de educar e um currículo distante do seu mundo. As sensações e percepções constituem uma fonte de conhecimento a respeito do mundo exterior ao nosso corpo, inimagináveis.

Acreditamos ser esse um caminho possível para a aproximação do conhecimento acadêmico ao desenvolvimento emocional de cada aluno.

Um aluno que chega no BNBD às 17 h, nitidamente cansado, sem dormir para estudar para prova, preocupado com um pedido:.”Preciso imprimir a cifra e treinar para levar hoje durante nossa

visita a música Jesus Cristo”! Foi a solicitação de um paciente da enfermaria masculina ao aluno na

visita passada, é um norte valioso na conquista do compromisso afetivo estabelecido em alguns minutos de atenção e cuidado estabelecido no encontro: paciente, aluno, violão e a música. Matérias distintas compartilhadas cuidadosamente.

Outros correm para chegar mais cedo no intuito de preparar papéis coloridos cortados milimetricamente na grande aventura de transformá-los em belas borboletas, tulipas e demais seres com a técnica de dobradura do Origami. Já no caminho das enfermarias, as mãos vão habilidosas, vincando e dobrando até encontrar alguém a espera do seu destino. O olhar é cuidadoso e sagaz, nem todos os pacientes recebem uma tulipa. “Vou oferecer esta flor aquela paciente (e fala o nome), ela

parece um tanto zangada e mal humorada”. Diz o aluno antes de ir até o leito e presentear a paciente,

“precisa de flor e não de borboleta”.

Ainda com as dobraduras, a aluna oferece papéis às pacientes em seus leitos. Ao iniciarmos, percebo que uma delas não estava conseguindo acompanhar as etapas da dobradura. Chego mais perto e ela fala baixinho: “não estou conseguindo enxergar bem”!

Observo a ficha com seu nome e a origem do problema: NEUROLOGIA. É uma moça jovem. Vi que não era seu desejo desistir. Ela não abandonara o papel. As alunas ficaram paralisadas. Foi então, em segundos que me veio a saída – vamos todas fazer a dobradura de olhos fechados, seguindo apenas com a percepção tátil. A aluna instrutora ia falando os passos e nós íamos tateando assim como a paciente seguindo o comando da voz. Demoramos um pouco mais entre erros e acertos, porém o sorriso e felicidade da paciente ao conseguir concluir a sua borboleta foi fantástico. Outubro 2011.

O cuidado, de acordo com Boff (2001), é mais que um ato, “é uma atitude. Portanto,

abrange mais que um momento de atenção, de zelo e de desvelo. Representa uma atitude de ocupação, preocupação, de responsabilização e de desenvolvimento afetivo com o outro”. (p. 33)

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