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3 SOBRE A SABEDORIA CORPORAL: DA VISÃO DE CORPO EM MERLEAU-

4.1 Coleta de dados:

4.1.3 Diário de campo

Nossa terceira coleta de dados provém de minha participação como cliente regular em um grupo de dança terapêutica. O trabalho escolhido foi um grupo de dança

contemporânea aliada aos princípios da Educação Somática, por se tratar da proposta, disponível em Fortaleza, com a qual pessoalmente mais me identifico. Esta fase da pesquisa aproxima-se de uma observação participante, na qual o pesquisador se insere no campo estudado, juntamente com os demais participantes habituais, fazendo, assim, parte do cenário pesquisado, enquanto, ao mesmo tempo, colhe dados acerca de sua experiência pessoal e do que observa no entorno. O pesquisador está, assim, imerso no fenômeno estudado, conhecendo-o não mais a partir da descrição de um informante, mas a partir de sua própria vivência. Assim, a observação participante “produz uma forma de teorização que surge a partir da experiência” (MONTERO, 2006, p. 205, tradução nossa).

Segundo Montero (2006), a observação participante é uma técnica de intervenção e investigação que é parte do método participativo. Tal método surgiu nos anos 60 do século passado, na América Latina, em um contexto em que estes países reconfiguravam as formas de produção do saber e a atuação da Psicologia, que não fosse uma cópia dos modelos europeus, mas que servisse ao propósito de transformação social da realidade social peculiar dessas culturas. Esta nova forma de fazer pesquisa deveria facilitar a liberdade, igualdade e inclusão social, a partir do diálogo com o grupo social a ser investigado, do respeito e da incorporação do saber popular à pesquisa científica (MONTERO, 2006). Critica-se, assim, o modelo positivista de ciência, com sua suposta neutralidade, e propõe-se uma relação dialética entre teoria e prática, com o objetivo de “investigar para transformar” (SILVA, 1986, p. 76).

A observação participante, como técnica de intervenção inspirada nesse contexto, oferece uma visão mais ampla de um fenômeno, preservando a integridade dos eventos estudados, visto que se dá “no transcurso da vida cotidiana de pessoas ou de grupos específicos, a fim de conhecer desde essa posição interna, eventos, fenômenos ou circunstâncias os quais não se poderia acessar de uma posição externa não participante” (MONTERO, 2006, p. 205, tradução nossa).

Como o fenômeno de nosso interesse se refere a processos terapêuticos vividos, nesta fase da pesquisa, o objetivo foi explorar minha experiência pessoal, e não minhas observações em relação aos comportamentos dos outros integrantes ou ao funcionamento do grupo, na busca de compreender a que se devem as mudanças. Reconhecemos a grande importância destes dois últimos pontos, porém, entendemos que estes já haviam sido contemplados na fase anterior da pesquisa. A observação externa acerca do modo de operação de um grupo terapêutico, por exemplo, nos foi dada a partir do olhar dos profissionais entrevistados. No círculo hermenêutico-dialético com os clientes, por sua vez, os participantes relatam comportamentos e mudanças observadas nos demais integrantes dos grupos. Já tendo

explorado tais observações, interessava-nos, agora, conhecer a potencialidade terapêutica da dança a partir de dentro do fenômeno. Para isso, vivenciei, eu mesma, os possíveis processos transformadores.

Tal experiência foi registrada, a cada encontro, em um diário de campo. O diário de campo, por sua vez, é um instrumento de coleta de dados que permite ao pesquisador registrar “aquilo que ouvimos, vimos, sentimos e experienciamos no trabalho de campo” (OLIVEIRA, 2014, p. 75), dando origem a observações descritivas e reflexivas sobre suas experiências no contexto estudado. Segundo Montero (2006), o diário de campo diferencia-se de outras breves anotações de campo por sua extensão e rigorosidade. Enquanto as anotações de campo servem ao propósito de auxiliar o pesquisador no registro de informações soltas sobre o fenômeno, o diário de campo é um documento processual, produto da investigação em campo, sendo uma fonte de produção de conhecimento.

Em algumas pesquisas que se utilizam da observação participante com diário de campo, o pesquisador anota suas observações sobre o funcionamento, estrutura, detalhes e relações a respeito do fenômeno estudado, assim como observa, por exemplo, Minayo (2010):

Nele devem ser escritas impressões pessoais que vão se modificando com o tempo, resultados de conversas informais, observações de comportamentos contraditórios com as falas, manifestações dos interlocutores quanto aos vários pontos investigados, dentre outros aspectos (p. 295).

Assim, o diário de campo pode servir ao propósito de registrar o que o pesquisador percebeu de contraditório entre as entrevistas e as observações em campo, notando o que os informantes não falaram nas entrevistas, mas fizeram no dia-a-dia, ou ainda, citaram nas entrevistas, mas não faziam na realidade. Desta perspectiva, o diário de campo pode parecer um instrumento de aferição para testar a realidade, verificando se o grupo acontece assim como as pessoas descreveram, ou ainda, captando os processos invisíveis e naturalizados que não foram comentados nas entrevistas e que só um observador participante poderia pontuar.

No entanto, nesta pesquisa, como já mencionado, o diário de campo teve uma função diferenciada, visto que a observação foi de mim, e não do grupo. Assim, o diário de campo serviu ao propósito de registrar não o que eu vi, mas senti; não o que eu testemunhei nos outros, mas em mim mesma. Aqui, fui sujeito e objeto de investigação. Nesse sentido, Montero (2006) aponta a relação do diário de campo com os métodos biográficos:

com relação aos métodos biográficos em geral, as anotações de campo coincidem com eles enquanto podem conter impressões afetivas, juízos de valor, pensamentos que refletem sentimentos e reações, e o valor da vivência para o pesquisador que os registra. Neste sentido revelam aspectos que definem essa pessoa como pesquisadora e também como ser humano, mostrando facetas de seu caráter (tradução nossa, p. 304 e 305).

Todavia, a auto-observação de um pesquisador só se faz possível devido à sua participação em uma coletividade. Assim, integrei-me como mais uma participante do grupo, realizando todas as atividades propostas, e não demonstrando um papel diferente na coletividade. No duplo papel de pesquisadora e participante, porém, sabe-se que os registros estão, por certo, envolvidos por uma compreensão, reflexão e análise teóricas específicas de alguém que tem uma agenda acadêmica, trazendo, assim, um olhar possivelmente diferente de um participante comum do grupo. No entanto, ressalto que me comprometi a relatar minhas experiências vivas, sem interpretações, sem julgamentos e sem supressões.

A partir desta compreensão, o diário de campo foi escrito em ordem cronológica, imediatamente após o término de cada sessão semanal. Nele, expressei, da forma mais transparente, natural e fluida possível, as experiências vividas, as mudanças pessoais percebidas, bem como emoções, pensamentos, sensações e memórias deflagrados durante cada sessão. Como já exposto, busquei escrever sobre meu próprio processo e não sobre as demais pessoas envolvidas. Porém, quando relatos ou experiências de outros integrantes do grupo mobilizaram minhas próprias questões, estes eventos foram também registrados no diário.

O grupo escolhido apresenta um trabalho maduro e consistente, que acontece há quase vinte anos, uma vez por semana, de 19:30 às 21:40. Participei regularmente do grupo de março a setembro de 2018, integralizando 21 sessões. O diário de campo, assim, obedeceu ao mesmo recorte dos clientes entrevistados, que deveriam ter no mínimo seis meses de experiência nos grupos.

Minha inserção no grupo iniciou-se a partir de uma primeira conversa com o facilitador. Trata-se de um grupo semiaberto em que a entrada de novos participantes está restrita a uma entrevista preliminar com o facilitador, que permite a inclusão de pessoas que já tenham uma caminhada prévia em trabalhos terapêuticos com dança e outras artes, visto que o facilitador possui a responsabilidade e compromisso de zelar pela manutenção da harmonia do grupo, que já se encontrava bastante coeso e fortalecido.

Ciente de minha experiência prévia com Arte-terapia, bem como com modalidades de dança formal, o facilitador julgou que minha entrada no grupo não causaria

danos ao fluxo natural do trabalho desenvolvido. A concordância em relação à minha participação no grupo deu-se, também, devido à importância e reconhecimento, dados pelo facilitador, à pesquisa acadêmica na temática da potencialidade terapêutica da dança.

Após concordância do facilitador, na primeira sessão, em 05/03/18, apresentei-me ao grupo, expondo que minha participação trazia, também, um objetivo acadêmico. Expus a proposta de meu estudo doutoral e expliquei a função de minha imersão no grupo, explicando também que esta seria registrada por meio de um diário de campo. Diante do exposto, pedi permissão para integrar-me ao trabalho já desenvolvido pelo grupo, questionando se tal fato lhes incomodava ou constrangia de alguma forma. Os participantes, por sua vez, demonstraram receptividade e acolhimento desde o primeiro momento.

Neste sentido, Paulo Freire, pioneiro do método de pesquisa participante no Brasil, nos relembra que pesquisar é necessariamente influir no campo, é ser educado e contribuir para a educação dos demais participantes, é construir conhecimento coletivamente (SILVA, 1986). A inclusão do pesquisador em campo invariavelmente modifica o contexto, ao mesmo tempo em que o pesquisador também é modificado por este. Desta forma, os processos terapêuticos e as transformações vividas por mim foram diretamente influenciados pelas pessoas do grupo, assim como compreendo que minha presença, invariavelmente, influenciou, em alguma medida, as experiências daquelas pessoas. O que foi experimentado e observado foi possível naquele contexto e configuração únicos, não sendo um produto individual e isolado. Assim, caso estivera participando de outro grupo, seriam possivelmente outros os processos vividos. Por fim, salientamos que o registro sequencial das sessões do diário de campo teve o mesmo tratamento analítico que as sínteses das entrevistas com profissionais e clientes. Vejamos, a seguir, como se deu tal análise.