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O dia e m que o sol explodiu

É uma manhã clara com pouquíssimas nuvens manchando um perfeito céu azul. Uma brisa morna e suave movia preguiçosamente as folhas das árvores da cidade, enquanto o sol espalhava seu calor pelo centro urbano que acordava vagaro samente. Tudo está como deveria estar. Nada parece fora do comum nesta manhã de agosto.

Mas algo está.

Seis horas antes a morte começou a percorrer seu caminho sobre as águas cor-de- esmeralda do Pacífico.

Agora são oito da manhã. A morte se aproxima.

Mulheres fazem compras em pequenos mercados da vizinhança, homens estão no trabalho e crianças brincando ou na escola.

Muitos não voltarão para casa. Estarão mortos ou suas casas não mais existirão. A morte está por perto, em uma manhã clara e comum de segunda-feira.

Os dois espíritos a aguardam no alto de uma grande cúpula. Eles olham para a pequena cidade, que cresceu em um vale cercado por montanhas verdes, cortada por seis rios tranquilos.

Eles observam o ir e vir dos bondes nos trilhos reluzentes, enquanto barcos aportam ou partem das docas da cidade ou pelos rios. É uma segunda- feira normal em Hiroshima, durante a guerra.

Andy explicou que eles estavam no alvo, quase exatamente onde a explosão iria ocorrer.

Esse tipo de bomba não é ativada quando atinge o solo. Ela explode ainda no ar. Eva instintivamente olhou para o céu enquanto ouvia o choro de uma sirene de aler ta antiaéreo.

Por toda a cidade, milhares de rostos também se voltaram para o alto. Eles viram a silhueta de um avião solitário e prateado se destacando no céu sem nuvens.

Momentos depois, a sirene soava um toque tranq uilizador. Era um alarme falso. “Este não era um bombardeio, pois as bombas nunca vêm em um único avião”, dizia o senso comum.

“Provavelmente é um avião meteorológico”, muitos pensaram e rapidamente voltaram à rotina de suas vidas em tempos de guerra.

Uma professora faz a chamada em uma classe do colégio. O trocador do bonde dá o troco a um executivo. Uma dona de casa vigia atentamente um balconista enquanto ele embrulha seu peixe em um jornal.

Andy e Eva observam cuidadosamente o céu e vêem o avião solitário deixar cair uma única bomba. Eles vêem o avião rapidamente mudar sua direção para a direita, para cima e para longe da cidade.

Os segundos passam.

A bomba rasga o céu azul deixando um rastro de finas chamas vermelhas.

Os alunos respondem à medida que seus nomes são chamados na classe do colégio. O executivo encontra um assento vazio nos fundos do bonde.

A dona de casa coloca o peixe embrulhado no jornal dentro de seu cesto de compras. Tique-taque. Os segundos de vida se acabam.

A morte chegou. O sol explode.

Flash: o mundo ficou branco.

Flash: os alunos do colégio evaporam quando o ar ao redor deles atinge 300 mil

graus centígrados.

Flash: o bonde, com o executivo e mais dezessete outros passageiros, desaparece,

vaporizado no espaço.

Flash: a dona de casa, o balconista e os fregueses do pequeno armazém são

esmagados quando o mercado desmorona.

Flash: o mundo mudou. Para sempre.

É 6 de agosto, 1945, 8h15 da manhã.

A cidade era Hiroshima e a primeira bomba atômica havia sido lançada.

Os dois espíritos observam enquanto o concreto do que fora a grande cúpula se desfaz e sua estrutura de aço se torce e ronca em agonia. De onde estão, no centro da explosão, eles testemunham uma cidade inteira desaparecer.

Eles vêem quando mulheres com vestidos floridos são queimadas com o desenho de flores se fundindo em suas peles. Andy e Eva assistem a quando casas e edifícios literalmente saem do chão, e depois caem e se espatifam.

Em questão de segundos, a cidade inteira é demolida. Alguns poucos esqueletos de concreto permanecem em pé para lembrar às pessoas onde um lar ou um prédio estava.

Os sobreviventes vagam pelas ruas, pele e retalhos rasgados caem de seus corpos, globos oculares derretidos e cabelos queimados. Antes de a bomba cair, trezentas mil pessoas viviam ali. Metade morreria.

A luz branca da explosão, mais intensa que o sol, marcava em fogo as sombras no chão. Um homem que passeava com seu cachorro, foram ambos vaporizados, mas suas sombras estão para sempre gravadas no concreto destruído de uma ponte. Acima da cidade, uma nuvem em forma de cogumelo de dez mil metros de altura paira, sugando para dentro dela o que havia sido Hiroshima. A nuvem logo devolverá à cidade tudo que antes era a cidade em uma chuva negra de noventa minutos, gotejan o pó e escombros radioativos.

Andy e Eva passeavam pelas ruínas. Milhares de pássaros mortos, golpeados no ar, se acumulavam nas ruas. Os vivos e os mortos boiavam nos rios pró ximos; os vivos clamando por socorro, os mortos dando seu testemunho silencioso da devastação. Crianças, algumas com sangue escorrendo das órbitas vazias de seus olhos, tropeçam cegamente em meio aos escombros gritando por suas mães. Sobreviventes, com suas peles cozidas se desfazendo, arrastavam os pés entre as ruínas em chamas, procurando por lares que são agora pó se acumulando na terra.

Eva viu, assim como viu em Auschwitz, os espíritos ajudantes, auxiliando os mortos a fazer sua passagem da Terra para o espírito. Em Hiroshima, porém, seu trabalho era dificultado pela forma repentina e surpreendente como a morte aconteceu. Eva sabia que haveria inúmeros espíritos vagueando pela cratera radioativa durante dias e até mesmo meses antes de se darem conta de que já não eram mais parte daquele mundo.

A voz de Andy tirou sua atenção da devastação, sofrimento e gritaria ao redor deles. — Nós podemos ficar aqui por uns dias — refletiu gravemente — e penetrar no sofrimento. Nós podemos ver pessoas cegas pela luz vagar como zumbis pelas ruas. Ou

podemos ir para uma outra cidade — sugeriu amargamente —, onde uma outra dessas bombas será jogada.

Como Eva não respondeu, Andy ficou certo de que havia vencido. Ele tinha certeza de que provara que o homem não evoluiu desde os dias da Idade da Pedra, quando selvagemente uns batiam nos outros com clavas de madeira. Mas ele não sentia nenhuma alegria por sua aparente vitória. Ele se sentia vazio porque sabia que seu êxito era oco. O que ele mais queria era que Eva provasse que estava errado.

No entanto, como poderia ela dizer algo que negasse o tenebroso pesadelo de Auschwitz? O que poderia dizer para explicar o terrível inferno de Hiroshima?

— Existem muitos outros exemplos para expor. Alguns são grandes e dramáticos como Auschwitz e Hiroshima. Outros são momentos comuns e cotidianos da nossa vida diária na Terra.

Eva ainda não dizia nem uma palavra. A hora, ela pensava, ainda não era aquela. Ela queria que Andrew terminasse tudo que tinha para dizer antes de começar a responder.

— Eu não lhe mostrei como — continuou Andy — em algumas cidades do mundo as pessoas têm medo de sair de suas casas e andam pelas ruas ater rorizadas, temendo ser roubadas ou sequestradas. Eu não lhe mostrei como as pessoas conspiram no trabalho, mentindo, enganando e roubando, apenas para galgar um degrau na escada da posição social e do dinheiro.

O rosto de Andy ganhou um olhar distante enquanto ele visualizava as cenas que descreveu se materializando em frente a ele.

— Você poderia ver pais estuprando as próprias filhas, mães assassinando seus filhos, irmãos e irmãs lutando por herança. Nós poderíamos sair daqui e ir visitar a Auschwitz dos dias atuais, um lugar chamado Bósnia, ou podemos ir a um pequeno vilarejo vietnamita chamado My Lai, onde toda a população foi massacrada pelo exército americano. O que acha de dar um pulo no Oriente Médio, onde as vítimas de ontem são os agressores de hoje? Nós podemos ver garotos adolescentes explodirem a si mesmos em ônibus, restaurantes e shoppings em nome de Deus e da salvação. Nós podemos visitar qualquer lugar da esfera terrestre e eu lhe mostrarei onde o ódio, a revolta e o medo vivem.

Eva prestava toda a atenção a tudo que Andrew dizia.

Ela admirava sua determinação, mas disse a ele que não precisavam continuar naquela sua viagem através da história mundial.

— Acredite... — admitiu. — Concordo com você, Andy: não parece que eles progrediram muito desde a Idade da Pedra, e suas clavas certamente estão maiores e mais letais. Mas há muito, muito mais do que os olhos podem ver.

Mas os olhos de Andy só conseguiam ver a triste tragédia da cidade destruída. Ele olhou para Eva e, com a voz trêmula, perguntou timidamente:

— É assim que vai acabar? Esta é a Nova Era? Eva respondeu do mesmo modo:

— Isso não tem importância.

Andy pensou que não tinha ouvido direito e pediu a ela que repetisse. Em um tom calmo e confiante, ela explicou servilmente:

— Eu disse que não tem importância como vai acabar, por que não existe um fim. Andy não respondeu, e, antes que tivesse a chance de fazê lo, Eva disse abruptamente que era hora de prosseguir.

— Você me mostrou o que quis mostrar. Você construiu sua argumentação e agora é minha vez. O que você disse e fez me convenceu de que é a pessoa certa para a missão.

Você tem compaixão e empatia, e, mais importante que isso, você se revolta contra o sofrimento desnecessário neste plano.

Andrew ia dizer alguma coisa, mas ela o impediu.

— Mas você não tem visão e não tem fé. Eu vou lhe dar visão, assim você pode ter fé. Está pronto?

Os olhos dele passearam pela carcaça do que já havia sido uma cidade viva e movimentada. Seus olhos estavam cheios de lágrimas quando ele olhou para Eva.

— Eu tenho de saber: a Terra vai se fritar em um holocausto nuclear, onde “não ficará pedra sobre pedra”?

Pela primeira vez desde que saíram da biblioteca, Eva sorriu.

— Você me mostrou o passado. Agora, eu vou lhe mostrar o que ele significa. Depois, eu vou lhe mostrar os raios brilhantes do futuro.

Andy sacudiu lentamente a cabeça.

— Certamente não existe nenhum desses raios por aqui — comentou. “Ele sabe tão pouco...”, pensou Eva.

Mas ela decidiu manter seus pensamentos para si mesma. Andy ainda tinha um longo caminho pela frente em sua jornada de dúvida e descobrimento.

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