A estrutura perversa
VI. Diagnóstico diferencial entre as perversões, a histeria e a neurose obsessiva
desafio e a transgressão podem perfeitamente ser observados em outras estruturas que não a estrutura perversa, particularmente na neurose obsessiva e na histeria. No entanto, a transgressão não se articula ao desafio da mesma maneira.
1. Na neurose obsessiva
desafio está manifestamente presente em certos comportamen- tos sintomáticos dos obsessivos. Lembremos desde logo, a este respeito, a propícia compulsão dos obsessivos ao engajamento em todas as formas de competição ou de ordem de domínio. conjunto destas situações permanece subtendido pela problemá- tica de uma adversidade (real ou imaginária) a desafiar.
No entanto, mesmo esta dimensão do desafio estando ativa-
mente presente no obsessivo, que por isso mesmo
qualquer possibilidade de transgressão é quase impossível. Nesta mobilização geral em que o obsessivo desafia a adversidade, ele não parece poder fazê-lo senão na perspectiva de um combate regular. De fato, um obsessivo bastante preocupado com as regras do combate e com a menor desobediência à regra. Isto nos leva a observar que o obsessivo faz esforços desesperados para tentar (à sua revelia) ser perverso sem jamais consegui-lo.
Quanto mais o obsessivo se faz o defensor da legalidade, mais ele luta, sem o saber, contra seu desejo de transgressão. que o obsessivo ignora, ou não quer saber, em torno da questão do desafio, é que ele é o único protagonista concernido. Ele tem necessidade de criar para si uma situação imaginária de adversi- dade para se engajar no desafio. Uma tal adversidade lhe permite
desconhecer que é quase ele que lança a si próprio desa- Igualmente, ele os propõe na medida em que pode, para este efeito, desenvolver um grande dispêndio de energia.
A transgressão posta em ação pelos o equivalente de sua "fuga adiante" concernindo à questão de seu próprio desejo. Não é raro que neste processo de fuga adiante o desejo corra mais rápido que o obsessivo, que nada quer saber disso. sujeito é então ultrapassado pela entrada em ação deste desejo, que ele sofre, na maior parte do tempo, de um modo passivo. Nestes momentos em que o sujeito é, de alguma forma, raptado por seu próprio desejo, não é raro que a atualização deste desejo encontre sua expressão em um agir de transgressão. A maior parte do tempo, trata-se de uma transgressão insignificante, mas é pelo fato de ser dramatizada pelo sujeito que seu aspecto espetacular pode então evocar a transgressão perversa. Freqüen- temente, um elemento motor alimenta esta dramatização: o ac- que é a própria dimensão onde o obsessivo se autoriza a ser agido por seu desejo, com todo o gozo que daí deriva. 2. Na histeria
Sobre a vertente estrutural da histeria, podemos igualmente colo- car em evidência esta dimensão do desafio.
Na histeria, a transgressão é sustentada por um questionamento agudo concernindo à dimensão da identificação, ela mesmo atraí- da pelo risco da lógica fálica e seu corolário concernindo à
identidade sexual.
sempre em torno da ambigüidade mantida pelo histérico sobre o terreno de sua identidade sexual que algumas expressões do desejo histérico assumem com facilidade o perfil perverso.
Evoquemos rapidamente, a respeito desta ambigüidade perver- sa, a freqüente realização de encenações homossexuais nos histé- ricos. Lembremos igualmente a satisfação perversa dos histéricos em "fazer advir a verdade". Nisto, encontramos a posição clássica dos histéricos da qual Lacan fala através desta percuciente expres- são tirada de Hegel: "A bela alma". De fato, não há histeria, sem que advenha, a um dado momento ou outro, esta disposição que consiste em fazer advir idealmente a verdade, mesmo ao preço de desvelar, ante um terceiro, o jogo do desejo do outro. Sobretudo,
í
em toda situação terceira em que o de uma verdade
sobre um, pode, pelo contrário, desmobilizar ou interrogar o desejo do outro.
Mas ainda aí, na histeria, a dimensão da transgressão está contaminada pelo que faz dela a mola nas perversões. Além disso, mesmo existindo, incontestavelmente, um desafio histérico, per- manece ele sempre um desafio à toa, já que nunca é sustentado
pela colocação em causa, da lei paterna que relacio-
na a lógica fálica ao da castração.
Na histeria, o significante da castração é simbolizado. preço a se pagar por esta simbolização manifesta-se essencialmente no registro da nostalgia fálica. De resto, é certamente esta nostalgia que dá à histeria todo o peso de sua invasão espetacular e trans- bordante. No máximo, teremos uma dramatização "poética", num "estado de graça" fantasmado. Ora, nós bem o um estado de graça tem interesse psíquico apenas porque é exclusi- vamente imaginário. A partir do momento em que a coisa toma corpo na realidade, a exibição histérica se atenua, e o histérico, assaltado nas últimas defesas de sua mascarada, escapole com uma pirueta.
histérico tem uma afeição particular pela dimensão do sem- blante, na medida mesmo em que é aí que ele pode entrar no desafio e sustentá-lo. Como tal, o desafio está inscrito em uma estratégia de reivindicação fálica. Para citar apenas um exemplo característico, evoquemos o fantasma da mulher histé- rica identificada com a prostituta. É dentro de um formidável desafio que esta ou aquela histérica percorre o trottoir, ou pára seu carro num lugar estratégico, até o momento em que lhe é dada a oportunidade de responder ao "curioso imprudente": "eu não sou quem você está pensando".
Um outro registro do desafio histérico feminino vê-se facil- mente posto à prova na contestação fálica que freqüentemente governa a relação com um parceiro masculino. Trata-se, no caso, de todas estas situações em que a histérica desafia seu parceiro masculino, "sem mim, você nada seria". Outra maneira de dizer: "Eu te coloco no desafio de me provar que você tem realmente o que é suposto ter". Por menos que o parceiro aceite imprudentemente esta demonstração, a histérica logo au- menta a aposta do desafio.
Na da histeria masculina, o desafio está igualmente alojado sob o símbolo da atribuição fálica. Tudo se passa como se o sujeito não investisse na dimensão do desafio senão na condição de ser convocado pelo desejo do outro. nesta dialética particular do desejo que o homem histérico se lança, a si próprio, num insustentável. Este desafio resulta de conversão
inconsciente entre desejo e virilidade. Ser desejável implica ne-
cessariamente, no histérico masculino, a aptidão para administrar a prova de sua virilidade, junto a mulher. Neste sentido, o histérico se entrega, a si próprio, neste impiedoso desafio de poder desejar mulher através do fantasma onde ela sucumbirá, com a demonstração de sua virilidade.
Em um tal dispositivo, é portanto o gozo da mulher que torna o indício mesmo de sua capitulação diante da
fálica. Não é espantoso que o homem histérico se deixe levar por um tal desafio insustentável. Com a carga, para ele, de responder através comportamentos sintomáticos que bem conhecemos: a
ejaculação precoce e a impotência*.
* Examinaremos problemática maneira mais detalhada quando abordamos a descrição estrutural da histeria, cf. infra, cap. XV, p. 97.