• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO I – As primeiras eras – nas matas, nas montanhas, no

1.6. Dias de fome e morte: os Trajano em Currais Novos:

Aos treze dias do mês de março de 1899, na Vila de Currais Novos, Estado do Rio Grande do Norte, compareceu ao cartório, Miguel Trajano, que declarou ter falecido, no dia anterior, às três horas da manhã, seu filho Manoel Trajano, com trinta anos de idade, deixando viúva Maria Isabel Gonçala de Jesus.

Manoel morreu vitimado pela fome na terra onde nasceu: o sítio Riacho dos Angicos, no lugar Bonsucesso. A causa da morte fora atestada como verídica por testemunhas que afirmaram, em juízo, ter presenciado o momento fúnebre. Além de apresentar o falecimento como dado evidente, o registro de óbito fornece elementos de análise sobre as experiências e os dilemas cotidianos vividos pelos Trajano nas “eras”. A morte, marcada e registrada pela escrita do tabelião e jornalista Ulysses Telemanco de Araujo Galvão, evidencia mais que o último pulsar de uma vida, expressa um tempo, um espaço e um lugar social ocupado pelos familiares do defunto.

Ao atestar o motivo da morte de seu filho, Miguel Preto – como era conhecido – expressa as condições de vida e de sobrevivência da família Trajano no final do século XIX, caracterizada pela pobreza. Nesse contexto, a morte é a expressão física do corpo que não resistiu e pereceu famélico em uma madrugada de março.

Acometido pela fome, que o levou à morte, o falecido não deixou testamento ou bens a inventariar. No registro de óbito não aparecem filhos declarados e seu corpo foi enterrado no Cemitério Público da Vila de Currais Novos. Porém, o homem que, em princípios de 1899, era cadáver – massa inanimada, imóvel e sem reação que parece mostrar, no fim de uma vida, o limite último da história – possui uma trajetória anterior e fala, mesmo sem gesticular a face ou abrir a boca, ainda que não consiga articular uma só palavra e que a sua vida esteja encerrada e enterrada no primeiro livro de óbitos da vila de Currais Novos. Isto é, esse acontecimento fúnebre possui significados no interior da história de vida do indivíduo e está atrelado às trajetórias de sua família.

No episódio da morte de Manoel está presente parte de suas experiências individuais e das redes de solidariedades das quais fez parte. Se a vida já não anima mais o corpo, a história dos envolvidos nesse instante está nele entranhada. Mas, a morte, que expressa dramaticamente a miséria material de seus parentes e do indivíduo, negligencia outros vãos de sua vida, parecendo resumi-lo em um momento, justamente aquele em que sua história se finaliza, acaba e morre. Mas as trajetórias de Manuel possuem outros significados, pois há, na presença daquele corpo morto no Bonsucesso, sentidos que o evento não encerra.

A fome e a morte não resumem sua vida por inteiro, nem finalizam sua história, mesmo que tenham colocado um ponto final na existência física do sujeito e

o feito cair. Sua trajetória não é a síntese do arquétipo do pobre que morre faminto no norte do Brasil em fins do XIX, comum à imagem dos miseráveis que vegetam nos sertões do setentrião brasileiro durante três séculos:105

Ora, seria evidente e, talvez, natural inferir que Manoel Trajano fora mais uma vítima das longas estiagens que grassavam vastas porções territoriais do norte do Brasil recrudescendo a miséria, lugar-comum quando se pensa as populações mais pobres dessa parte do território brasileiro. Ou seja, a condição de pobreza, que compõe a trajetória da família Trajano, estaria vinculada à seca que atingia diretamente a vida de outras tantas famílias que habitavam terras áridas, convivendo com as agruras da fome, da dor e da morte. Lamentável equívoco, visto que sua morte não ocorreu no calor incessante e ressecado do norte brasileiro, mas no meio da umidade catastrófica. O ano de 1899 foi marcado por chuvas intensas que atingiram o Seridó. A força das águas provocou enchentes em várias partes do sertão do Rio Grande do Norte. A maior cheia atingiu o rio Acari, inundando áreas próximas.

Segundo os cronistas Felippe Guerra e Theóphilo Guerra, essa enchente “reputada maior do que as maiores da tradição”, arrebatava violentamente plantações e vidas. Os rigores do inverno eram nefastos, especialmente para a população pobre, afetada diretamente pelo decréscimo das colheitas e a iminência da morte causada pela fome e por doenças. Em grande medida a redução drástica da atividade agrícola e a conseqüente crise de alimentos aparece como resultado imediato e inevitável do caos trazido pelo inverno de 1899. As mortes que as chuvas traziam com a agressividade das águas eram visíveis nos primeiros dias do ano106. Os cronistas afirmam que em janeiro na vila de “Curraes Novos cahiu gente e morreu de fome”107. Dois meses depois, Manoel Trajano falece, acometido pelo

105 As estiagens aparecem com frequência nas fontes produzidas pelo governo provincial quando

trata das questões sociais e dos problemas que afligem o norte brasileiro. Assim, durante o século XIX, a temática aparece em evidência nas linhas do discurso oficial como elemento que impede e emperra o crescimento das províncias nortistas. Na década de 1920, passa a sintetizar a própria idéia de nordeste no contexto de produção de um novo regionalismo. Mas, antes de existir um nordeste, em fins do século XIX e início do posterior, a geografia brasileira estava repartida em duas porções discursivamente opostas: o norte, seco, distinto do sul de clima propício a produção agrícola e ao progresso. Cf. ALBUQUERQUE Jr. Durval Muniz. A Invenção do Nordeste e Outras Artes. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, Ed. Massangana; São Paulo: Cortez, 1999.

106 No Sertão potiguar, as estações mais chuvosas ocorrem quase sempre nos primeiros meses do

ano, período utilizado para o plantio.

107GUERRA, Felippe; GUERRA, Theophilo. Secas Contras as Secas. 3 ed. Fac-similar. Mossoró:

mesmo mal no Bonsucesso:

Continua aqui o rigoroso inverno, tudo está atolando, obrejado, a lavoura pouco aumenta pelo excesso de chuva; prolonga-se pois a fome da população pobre, já não pode mais fazer novas plantações, nem cercas, levadas pelas grandes cheias. Em Curraes Novos um cidadão com uma bela plantação de milho amanheceu sem... as terras de plantação, arrebatadas pela enchente. A fome no Acary, como em todo o Seridó, atingiu o auge, faz diariamente victimas.108

Assim, numa madrugada cinzenta de março, úmida como tantas outras de 1899, morreu o filho de Miguel Preto, acometido pela fome em Currais Novos. No ano anterior, as chuvas começaram a cair, porém, com menor intensidade. O inverno era contínuo, mas a extensão do drama tramado na narrativa de Theóphilo e Felippe Guerra parece ser minimizada pela quantidade de mortos descritos no recém-criado cartório da vila, durante os anos de 1898 e 1899. Entre as cinco mortes registradas naquela localidade, duas foram causadas pela fome. Além do óbito de Manoel, morreu Rita, uma criança com pouco mais de dois anos de idade, filha de Antonio Beserra de Lima e Maria Joaquina da Conceição109. Vale salientar que, na vila, nem todos declaravam seus mortos em juízo e que o Bonsucesso representa uma pequena parte de terra ao norte de Currais Novos.

A morte de Manoel ocorre, portanto, em um momento específico de violência das águas e não de seca. Mas além do contexto em que ocorre o óbito podemos voltar o nosso olhar no tempo, visto que anterior à agonia e à morte de Manoel houve uma vida que começou 30 anos atrás, antes de casar-se com Maria Isabel. Manoel nasceu durante a década de 1860, na Povoação de Currais Novos, onde morava seu pai, Miguel, e outros membros da família Trajano. Internados nas “matas”, em terras atravessadas pelo Riacho dos Angicos esses sujeitos negros e pobres caminharam e construíram suas vidas na constante incerteza da posse – que será oficialmente documentada aproximadamente um século depois em forma de título individual da terra110 - e na ameaça frequente do avanço dos vizinhos com maiores possibilidades materiais de redesenhar o espaço e tirar-lhe partes de suas terras no movimento das cercas e do tempo.

Portanto, os membros da família Trajano viveram e morreram no interior

108 Idem, p.53.

109 Livro de óbitos nº 1, registro nº 143, fl. 55, 12 de dezembro de 1899. Fundo: Cartório do 1º Ofício

da Comarca de Currais Novos.

do Rio Grande do Norte, inseridos numa atmosfera de disputa pelo espaço mediada pelas relações interétnicas e sociais. A morte de Manoel ocorre em meio às “matas”, nos confins da recém-criada Vila de Currais Novos, que anos antes, compunha o território da Vila do Acary111.

Mapa 04: Vila de Currais Novos (1890-1920)

Fonte: Histórico de Currais Novos, Expediente Municipal. Livro n.11, 1912, fls. 110-114v. Arquivo Municipal de Currais Novos; PEREIRA, Jurandyr Pires (Org.). Enciclopédia dos Municípios

Brasileiros, Rio de Janeiro: IBGE,1960. (vol. XVII).

111 Livro de Óbitos nº 1, registro nº 65, fls. 73v-74, 13 de março de 1899, fundo do 1º Cartório de

Esse espaço que chegou do século XIX com contornos fortemente rurais e sua população dividia-se em tipos sociais distintos. Havia os sujeitos que pertenciam às famílias donas de vastas porções de terras, criavam gado e plantavam algodão, herdeiros dos primeiros colonizadores brancos que, no século XVIII, atingiram os sertões do Rio Grande no passo do gado e em confronto com o “gentio”. Alguns são pequenos proprietários, empobrecidos pela partilha de grandes fortunas em testamento de antigos patriarcas e matriarcas. Outros são comerciantes enriquecidos com seus negócios na sede da vila ou por meio de hipotecas de terras feitas à pequenos proprietários. Há ainda uma parcela da população formada por sujeitos endividados e camponeses pobres (agregados ou proprietários de pequenos pedaços de terra).

Nesse sertão central do Rio Grande do Norte, espaço fronteiriço com o Estado da Paraíba, onde as chuvas eram avassaladoras e as secas inclementes, havia aqueles que se deslocavam para as áreas refrigeradas em busca da sobrevivência. O destino quase sempre foi os brejos da Paraíba, o Cariri Cearense e o litoral do Estado112. Os familiares de Trajano seguiram essas travessias quando as águas rareavam.