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CAPÍTULO I – As primeiras eras – nas matas, nas montanhas, no

1.7. Travessias em família: do Ceará-Mirim ao Cariri cearense:

A história de Trajano Passarinho e de seus descendentes foi marcada pela mobilidade. A fixação na pequena porção de terras, que hoje é legado dos antigos, ocorreu a partir do movimento das cercas, da redefinição de espaços que criaram uma geografia antiga da posse e redimensionaram o tamanho da terra. Entre o século XIX e o XX, esses sujeitos transitaram por diversos espaços para sobreviverem. Assim, encontraram as terras do Riacho. Lembremos que as memórias sobre a fundação sempre ressaltam a chegada da família oriunda de outras províncias, como Pernambuco e Ceará, ou das áreas de refrigério do litoral norte-rio-grandense. Havia uma sensibilidade viajante, provisória, enfim, migrante baseada na busca pela sobrevivência e na manutenção de laços de solidariedade com os parentes que não retornavam ao Riacho (ou que jamais estiveram ali).

112 ARAUJO, Douglas. A morte do sertão antigo no Seridó. O desmoronamento das fazendas

Portanto, as travessias da família seguiam o curso dos lugares úmidos. Nos fecundos vales de Ceará Mirim, litoral do Rio Grande do Norte, e nas terras caudalosas do Cariri cearense encontravam ocupação. Nesses lugares a agricultura empregava largamente mão-de-obra livre para o trabalho e a paisagem verde era desenhada pela lavoura canavieira.

O desenvolvimento da indústria da cana-de-açúcar encontrou solo fértil nas terras de Ceará Mirim, Goianinha, Capió, Canguaretama e São Gonçalo em meados do século XIX, depois da seca de 1845113. Em dados divulgados pela Secretaria da Tesouraria Provincial do Rio Grande do Norte no dia 7 de fevereiro de 1860 pelo Oficial Joaquim José Pinto, sobre os negócios da cana-de-açúcar em 1858, a comarca de Ceará Mirim apareceu como a maior produtora da província com 91.600 arrobas de açúcar em 46 engenhos de ferro114.

A produção canavieira cresceu no litoral a partir de 1845 e se expandiu para o norte, que passou a exportar açúcar em quantidade crescente115. Apesar disso, no inicio dos anos de 1860, a falta de braços suficientes para o trabalho surgiu como fator que emperrava a produção de açúcar no Rio Grande do Norte. O volume de arrobas de açúcar anualmente negociado pela província permanecia pequeno em relação a outras partes do norte:

Sabeis, senhores, que terrenos próprios para a plantação de cana de assucar esta província conta da melhor qualidade, os valles do Cunhaú, Capió e Cearamirim nada tem a invejar em uberdade aos mais ricos do Imperio. Verdade é que a indústria do assucar por nascente falta de braços escravos, luta com as maiores dificuldades que em outras províncias.116

Os escravos que entravam na província eram comprados nos mercados pernambucanos. A partir de meados do século XIX os vales açucareiros de Ceará Mirim, São José de Mipibu, Goianinha, Canguaretama e São Gonçalo receberam um maior número de cativos com o aumento da produção117, embora a quantidade de

113 MEDEIROS, Tarcísio. Aspectos Geopolíticos e Antropológicos da História do Rio Grande do

Norte. Natal: Imprensa Universitária, 1973. p.71

114 João José de Oliveira Junqueira, 1860. Falas e relatórios dos presidentes da província do Rio

Grande do Norte. Mossoró: Fundação Guimarães Duque, Fundação Vingt-un Rosado, Col.

Mossoroense, 2001.

115 MONTEIRO, Denise Matos. Introdução a História do Rio Grande do Norte. Natal: EDUFRN,

2000. p.129

116 Relatório de Pedro Leão Velloso, 1862. Falas e relatórios dos presidentes da província do Rio

Grande do Norte. Mossoró: Fundação Guimarães Duque, Fundação Vingt-un Rosado, Col.

Mossoroense, 2001.

mão-de-obra escrava permanecesse pequena em relação a outros espaços do Império. Segundo dados fornecidos em 1888 pela Libertadora Norte-Rio-Grandense, no ano em que foi promulgada a Lei Áurea a província contava com 482 escravos, dos quais 201, isto é, 41,2%, estavam nos engenhos de Ceará Mirim. Quatro anos antes havia ali 777 escravos dos 3310 presentes em toda a província118.

Não é possível precisar se Trajano Passarinho seria um desses negros oriundos de Pernambuco que entraram nos vales açucareiros do litoral como escravos. Seguindo esta mesma rota, Trajano Passarinho pode ter “voado” para longe das terras úmidas do litoral, internando-se pelos matos atingindo o Riacho dos Angicos. Esse tipo de travessia de escravos entre o litoral e o sertão não era incomum durante o século XIX. O cativo Daniel fugiu de Ceará Mirim e casou-se na Serra de Santana com uma filha do escravo Lázaro, patriarca da comunidade da Macambira119. Certo é inferir que, durante o oitocentos e limiar do século XX, a família Trajano se deslocou regularmente para essa área. Alguns nasceram em Ceará Mirim entre as décadas de 1850 e 1860 e permaneceram indo e voltando para aquelas terras periodicamente; outros ficaram e constituíram família. Quando fala da origem dos descendentes diretos de Manoel Barreira (filho de Trajano Passarinho), o Sr. João afirma que:

João: Trajano disse: É, eu vou pro brejo. Aí tirou pro brejo com doze filho.

Lá ainda tem nego de lá morando que voltou em 15 aqui, que chovia o inverno nos brejo, aí ainda tão pra lá. Até um ano desse vei um de lá.

Joelma: Quem era?

João: Era, era, tio João Barreira, não, tio José. Veio morrer aqui, do brejo

(...).

Joelma: E o brejo fica aonde?

João: Longe, longe, minha fia, é longe, num é aqui não. Pega de Natal, é

de João Câmara., bem de Natal pra lá, Mas dos oito só vei um, os ôto num viero mais.120

Além da família Barreira – originada de Manuel Trajano Barreira – também nasceram no brejo, em terras aguadas no litoral do Rio Grande do Norte, Miguel Trajano (aproximadamente no ano de 1857), Marciana Luiza da Conceição (1863) e José Trajano da Cruz (1907). Os motivos que os conduziram sazonalmente em

1984.p.45-46.

118 Idem, p.189.

119 PEREIRA, Edmundo Marcelo Mendes. Comunidade de Macambira: “Negros da Macambira” –

A Associação Quilombola (Relatório Antropológico). Natal: UFRN/INCRA, 2007.

direção às áreas férteis e úmidas do norte também os levaram a romper as fronteiras potiguares, seguindo em direção ao sul e encontrando os engenhos do Cariri, no Ceará.

O constate deslocamento dessa família pode ser verificado nos locais de nascimento dos filhos de Antônia Maria da Conceição (1865-1958) e de seu esposo, Thomaz Lopes de Aquino (1854-1927)121. Damião Lopes nasceu, em 1894, no Ceará, onde permaneceu até os 21 anos de idade122. Em 27 de junho de 1895 Antônio Lopes foi batizado na Matriz de Santana em Currais Novos123.

Além da busca da sobrevivência material em terras caudalosas, a manutenção das relações familiares construídas no Riacho, em Ceará Mirim e no Juazeiro motivou os constantes deslocamentos “nas eras”. Havia mais do que as secas impulsionando aquela família a seguir constantemente em direção às áreas de refrigério

No entanto, é a seca que figura nas falas dos moradores do Riacho quando se recordam dos caminhos trilhados pelos parentes à pé, junto com romeiros. Um dos moradores da comunidade, na década de 1980, descrevia da seguinte forma as atitudes dos mais velhos diante da fome em tempos pouco chuvosos “a seca de 15 foi a maior do mundo. Os negros véios diziam que os antigos comiam couro véio assado. Isso é eles que contavam...”. E segue afirmando que “eram anos difíceis porque não tinha trabalho em lugar nenhum por conta da seca... aí os negros saiam pra procurar serviços, porque aqui não tinha meio de vida”124. Aqueles que permaneciam em Currais Novos precisavam encontravam a sobrevivência no uso da natureza seca e escassa. Nesse momento, desaparecem os relatos sobre a riqueza dos antigos, evidenciada anteriormente e as falas dão lugar às narrativas sobre a fome e as provações vividas no passado:

Que pra trás o povo aqui sofria, que num tinha muito cumê bom, o cumê era aquele feijão pretinho, uma baginha desse tamainho, aí a senhora tirava, aí botava ele de molho hoje até a hora, aí o caldo escorria duas vez, quando botava no fogo aí aparecia a cor dele preta, era o cumê do povo, fava braba, ainda existe aqueles pés, lavava em nove água pra poder comer.

121 Livro de Óbitos nº 04, registro nº 42, fl. 116v, 02 de novembro de 1927. Fundo do Primeiro Cartório

de Currais Novos.

122 Livro de Óbitos nº C-5, registro nº 1.336, 08 de julho de 1979. Fundo do Segundo Cartório de

Currais Novos.

123 3º Livro de baptismo, registro nº 337, fls.98, 27 de junho de 1895. Fundo da Paróquia de Santana. 124 Caboclo. Apud ASSUNÇÃO, Luis. Carvalho de Os Negros do Riacho: Estratégias de

Nove! lavava em nove e escaldava em três, aí comia. Chique-chique era comer do povo... Na seca em 15. (...) Aí o cumê era esse. O angu era o cumê, o cachorro morto, era o cumê que tinha, num tinha cumê, aqui (...) era o cumer do povo, farinha num existia, né. Hoje todo mundo pode dar. O povo de hoje tá rico, né? Hoje o povo tá passando bem, mas pra trás o povo o que via assava, comia, lagartixa, sapo era o cumê do povo que num tinha cumê, né. Aí morria um, num tinha cemitério, enterrava nos mato, num tinha cemitério nesse tempo não, cavava aí, cavava aí nesse... isso aqui era uma mata fechada, cavava lá butava e deixava lá125.

Comia chique-chique, fava braba, tinha lá uma papa que tinha pra comer, fazer papa pros menino. (...) Ela vai a fava braba e mais a água, chique- chique o que esse povo todo conheceu era a roça que tinha, (...) tinha muito, aqui à noite butava, estendia no terreiro, forrava e butava, cortava, cortava, trinchava todinho, tirava a carne pra fazer pão de milho, pra fazer pão pra agente comer126.

A fome constante e a morte iminente são temas que perpassam os relatos sobre as secas. A sobrevivência do corpo devia ser procurada na natureza ressequida, nos restos que sobram da morte, na carcaça dos animais e no vegetal que resiste. O território povoado pela existência humana se convertia em cemitério dos corpos caídos nos anos de estiagens intensas quando, provavelmente, o número de óbitos aumentava. A imagem dos velhos “ricos” proprietários de terras úmidas na Serra, dialoga na memória com outra completamente diversa: a de sobreviventes da fome vivendo em um chão crestado. Nas narrativas dos moradores do Riacho, o tempo da posse é caudaloso: o velho Trajano pediu aquelas terras à D. Pedro II no inverno, mas a permanêcia da família no terreno foi marcada pelas secas e pela fome.

A história dos antigos se modifica na memória, refaz outros recantos da vida, possui novas balizas e outros temas que partem dos primeiros tempos e entram nas “outras eras”. Nesse período, marcado pela seca e pela chuva, pelo deslocamento sazonal, pelas vendas sucessivas de terras, a família segue organizando o espaço de moradia no Riacho dos Angicos, definindo relações de poder e construindo suas genealogias vivas.

125 João de França Pereira (1940). Entrevista realizada em 11 de Outubro de 2008. 126 Laurentino Lopes da Silva (1919). Entrevista realizada em julho de 2007.