• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO II – As outras eras – poder, família e território:

2.4. Ressentimentos negros e caboclos:

Eles pelejaram pra tomar isso daqui, mas num toma mais não. Nem peleje que num toma não, é dos nego mesmo (...) é porque esse terreno é pra posse. É pra posse, num tem quem tome, só Deus e o Governo, esses toma, mas os ôto. Eles nem peleje...155

No trecho supracitado, O Sr. Laurentino se reporta à década de 1960, quando Osvaldo Medeiros, - filho de um proprietário local chamado Manoel Salustiano de Medeiros, conhecido como Manoel Macaco – tentou adquirir, mediante compra, as terras do Riacho dos Angicos. Osvaldo e a esposa, Almarinda Salustiano de Medeiros, moravam em Natal e pretendiam anexar às suas propriedades em Currais Novos as terras ocupadas pelos negros156. Damião Lopes, articulou a negociação que acirrou as tensões internas, os ressentimentos e as disputas em família pela herança. Nesse episódio, não havia pleno acordo entre os moradores quanto à venda das terras. Parte significativa da família não a aprovava porque seus membros iriam ficar desalojados e, por fim, o espaço permaneceu com os negros.

O argumento usado pelo Sr. Laurentino para que a venda não ocorresse foi que repassar as terras do Riacho para outrem significaria consumar a perda do território onde vivem, isto é, retirar dos negros que residem no Riacho o lugar de moradia. Ele interpreta a proposta de compra como uma tentativa de arrancar-lhes um território que ficou “pra posse” depois da morte do velho Trajano. Em outros termos, na fala do Sr. Laurentino as terras do Riacho foram conquistadas pelos negros desde tempos imemoriais.

Esse lugar não pode ser tomado pois, antes da família se estabelecer ali, aquele espaço não constituía propriedade individual, pertencia aos “santos” e ao governo. Ele segue afirmando que "Essa terra aqui é de D. Pedro II, era dos santos, esse terreno vivia aqui desprezado, aqui tudo era mato, tudo só mata, só mata, só

155 Laurentino Lopes da Silva,(1915). Entrevista realizada em Julho de 2007.

156 Manoel Macaco que morreu em 1958, era proprietário de uma terras no Bonsucesso com 400

braças de frente, por duas mil e quatrocentos de fundos, adquirida por compra feita a Ladislau Galvão e sua mulher, Ercidia Severina da Conceição, Maria Salvina da Conceição, Francisca Salvina de Jesus e Manoel José Germano e outros, conforme escritura particular datada de 24.10.1928 e escrituras públicas datadas de 27.12.1938, 26.12.1938 e 20.8.1945. (Cf. Inventário nº 937, 1958, do Fundo do 1º Cartório de Currais Novos.

mata...". A fixação dos negros a partir da posse e a sua manutenção no presente se articulam à permanência desde os tempos de D. Pedro II. Assim, as terras atravessadas ao sul pelo Riacho dos Angicos passam a existir enquanto sítio quando a família se apropria do espaço, lhe conferindo sentido de posse, de moradia, de lugar de trabalho, de território onde construíram suas famílias e seus projetos de vida. Além disso, a oferta de Osvaldo lhe parecia pouco atrativa:

Nós vamo simbora, eu vou vender, ele [Damião] sempre dizia (...) que eu vou butar pra aqui seu Osvaldo de Mané Macaco que morava ali, mora ali do ôto lado, que ele é filho de Mané Macaco, pra tomar isso aqui. Ele disse “eu tomo, pois é, eu num tomo, porque nós vamo... eu quero é comprar” (...). O povo... aqui num foi ninguém, fomos tudo a gente pra justiça por causa dessa terra (...). Osvaldo botou um dinheiro bem pouquinho, botou dois mil, botou dois mil réis. Mais Osvaldo num botou dinheiro pra comprar as terra dos nego não. “E eu mais num dou não” (...) que Osvaldo vai tomar os terreno dos nego todinho. Aí ele chegou, o dotô chegou aqui lá na prefeitura, explicamos que “nós não tamo aqui, nós somo aqui e ele quer tomar o terreno da gente. “Osvaldo, deixe esses nego morar aí rapaz, quê que você quer tomando o terreno dos nego, num tome não, deixa aí que aí é a morada deles. Pr’onde é que esse povo vai?

A terra é a “morada”. Ela significa muito mais do que um meio de retirada da subsistência pela ocupação produtiva do espaço, ela é o lugar de volta, é a certeza de que a casa está ali erguida. A tentativa de venda foi o momento mais agudo na forja de uma diferenciação interna entre a família dos “caboclos” da dos “negros”. No entanto, a percepção dessa diferença não começa a partir da década de 1960. Ela existe na autoatribuição étnica da família de Joana Caboclo desde o século XIX, no alto da Serra de Santana e, posteriormente irá nomear e distinguir os descendentes de Joana entre os parentes de seu esposo no Riacho

Entre os parentes de Trajano, a construção dessa diferença ocorreu em função do legado da terra. As diferenciações étnicas se operaram de diferentes maneiras a partir das primeiras décadas do século XX, quando Joana Maria da Conceição (1897-1989), oriunda de uma localidade da Serra de Santana, se casou religiosamente com Antônio Lopes da Silva, morto por afogamento em um poço no Bonsucesso aos 31 anos, no dia 09 de novembro de 1926157, deixando a viúva com cinco filhos (José Lopes ou Zé Banda, Ana158, Tereza Maria da Conceição, Maria Alice e Augusto Lopes da Silva). Embora estivesse casada com Antônio e, portanto,

157 Livro de Óbitos nº 04, registro nº 203, fl. 49v, 10 de novembro de 1926.

158 Falecida aos sete anos em 1930. Cf. Livro de Óbitos nº 05, registro nº 147, fls. 109 e 109v, 24 de

fizesse parte da família por laços rituais, Joana retornou para a casa dos pais na Serra de Santana com seus filhos. Depois, começou a trabalhar em serviços domésticos no Serrote do Melo, local próximo ao Riacho. Segundo dona Cícera, os filhos de Joana “desceram também, (...) só quem ficou lá na Serra foi Augusto que ficou com o avô, o pai de cumade Joana, o resto vei tudo mais ela pra cá, só que eles ficaram ali pelo Riacho, na casa de um e de ôto”159.

Os filhos de Joana Caboclo e Antônio Lopes se criaram na terra do pai e constituíram família com os parentes negros. Mais de meio século depois da morte de Antônio Lopes cerca de 60% da população do Riacho era composta por descendentes de Joana Caboclo160. Damião Lopes, Zé Birro, Damiana, Tereza, Maria Dalva, Júlia e Severina e os herdeiros do falecido Antônio disputariam aquelas terras, possivelmente, até a década de 1980. Assim, o matrimônio entre uma cabocla e um negro aparece como um instante crucial na história do povo que vive no Riacho, pois essa união demarca a fissura da família em duas partes, gerando conflitos acerca da herança das terras nos quais articulam-se o “eu”, o “nós” e os “outros” a partir de diferenças decodificadas pela dinâmica interna.

Os assim chamados “caboclos” afirmam que são descendentes de Joana e, portanto, se autodefinem como “caboclos”, mas se consideram também “negros do Riacho” uma vez que descendem do antigo fundador. Para os “caboclos” aquele é um fato secundário uma vez que todos descendem da mesma pessoa, o velho Trajano, sendo todos da família161.

O autor afirma que, para o “negro”, o “caboclo” aparece como o “outro”, possuindo uma impureza d’alma, é feiticeiro, enganador, infame, aprecia o roubo e os golpes, provoca desavenças e balbúrdia. Para os “caboclos”, a descendência de Joana Caboclo não corrompe os vínculos familiares estabelecidos com os demais moradores da comunidade, afinal, todos são, antes de tudo, parentes e mantêm laços de consanguinidade com Trajano Passarinho, o primeiro negro que teria chegado ao Riacho. Esse parentesco legitima o direito à terra também para os “caboclos” que, nos anos de 1980, não possuíam a documentação oficial de posse daquelas terras, que foi deixada por Damião, antes de falecer, sob a guarda da irmã

159 Cícera Barbosa Gomes da Silva (1932). Entrevista realizada em 18 de janeiro de 2008.

160 Esse estudo etnográfico foi realizado na década de 1980 e verificou que os “negros” eram cerca

de 40 pessoas e os “caboclos” aproximadamente 59 indivíduos. Cf. ASSUNÇÃO, Luiz Carvalho de

Os Negros do Riacho: Estratégias de Sobrevivência e Identidade Social. Natal: UFRN/CCHLA,

19994. (Col. Humanas Letras). p. 21.

Severina Preta, e da sobrinha Maria.

Os conflitos entre núcleos familiares se acirraram a partir do óbito de Antônia, aos 93 anos, em 1958. Não por acaso, na década seguinte, um de seus filhos, Damião Lopes, participou de uma tentativa malograda de venda daquelas terras e, em 1973, buscou formalizar a posse individual junto ao INCRA.

Assim, com a morte de Antônia Maria da Conceição, no final dos anos 1950, se impõe a questão de definir quais eram os herdeiros legítimos do sítio. O antropólogo Luiz C. Assunção sugere que, para os filhos vivos da velha Antônia, a propriedade legal da terra lhes pertencia exclusivamente, pois eram os herdeiros diretos do velho Trajano Passarinho. Segundo eles, os “caboclos”, que haviam se multiplicado, não possuíam direitos sobre aquele espaço. Para os filhos e netos de Joana Caboclo, o Riacho também lhes pertencia, afinal eram todos da mesma família.

Diante da tensão que dividia os sujeitos, a terra e a memória, os “negros” e os “caboclos” defendiam que a legitimidade da posse da terra passava pela identificação de um ancestral em comum: o negro Trajano Passarinho. No cerne deste embate entre parentes estava a noção de herança e o sentimento de pertença. Os elementos identitários estavam em disputa dentro da família que se dividia e, ao mesmo tempo, permanecia unida. Isto é, não se trata de uma polarização rígida entre negros e caboclos, mas da manutenção problemática de uma identidade percebida como externa e, portanto, alijada de direitos tradicionais garantidos pelo sangue negro “puro”, “não raciado”.

Quando entramos na casa desses sujeitos, encontramos relações diversas que unem as famílias dos Negros à dos Caboclos, dos Besouro à dos Goiamum e dos Lopes à dos Trajano. Esses nomes não representam grupos de parentesco distintos, mas núcleos familiares que se diferenciaram na história de uma mesma parentela, cuja raiz mais profunda é Trajano Passarinho. As diferenças organizam o espaço e são rearticuladas sempre que um núcleo se une a outro por matrimônio. Ora, nas uniões conjugais há casos concretos que expõem a relatividade dessas divisões: Luiz Pereira da Silva (conhecido como Luiz Grande), Laurentino Lopes da Silva e Lauro Lopes da Silva (pertencentes à família dos negros) desposaram mulheres descendentes de Joana Caboclo (Tereza, Maria Alice e Maria Dalva respectivamente).

Portanto, no passado e no presente, pensar uma diferenciação absoluta entre negros e caboclos é inviável; os casamentos ou “uniões” emaranharam as fronteiras e recriaram núcleos nos quais as identidades se refazem e se recompõem. O trânsito constante entre núcleos familiares pelo matrimônio e a morte dos velhos diluíram tais embates e criaram outros. Com o passar das “eras”, os antigos se foram, levaram parte de suas histórias, seus conflitos e seus saberes que foram ressignificados na memória, entre lembranças e esquecimentos. Chegou a hora de nos encontrarmos com as “eras” dos novos que envelhecem aos poucos e dos novos que representam o presente e o futuro no Riacho, reinventam antigas práticas e constróem suas formas criativas de viver. Para os velhos – sujeitos anacrônicos, de outro tempo – resta a saudade do passado e de si mesmos...