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3. PARTE II: DICIONÁRIOS E SEU FUNCIONAMENTO

3.2. O DICIONÁRIO ENQUANTO OBJETO

Somos apaixonados pelas palavras, pelo que elas representam, pelo que elas significam ou não. Na infância, tínhamos uma caderneta em que costumávamos anotar vocábulos novos ou aqueles que considerávamos difíceis, adorávamos ouvir quem costumava falar de maneira rebuscada. Naquela lista, escrevíamos o significado que fazia sentido em nós. Era no dicionário onde os termos que não conhecíamos eram significados, onde as dúvidas eram sanadas, onde o saber se colocava com a certeza de que lá encontraríamos solução para todos os obstáculos da língua. Hoje buscamos, além de consultar o dicionário, lê-lo com um olhar analítico, o que nos faz compreender o modo como ele produz sentidos uns e não outros na conjuntura atual. Sabemos que o dicionário também é passível de falhas e

que também é contraditório, que tomado como discurso produz efeitos de sentidos entre interlocutores.

Da mesma forma, compreendemos que uma palavra que “vale” para um sujeito, talvez não “valha” da mesma maneira para outro. A noção de “discurso”, enquanto efeito de sentidos, está sempre “em relação a”, porque o sentido é definido não como algo em si, mas como “relação a” (ORLANDI, 2007). Sobre isso, Nunes (2010, p. 153) corrobora dizendo que a “Análise de Discurso leva adiante a concepção saussuriana de valor, afirmando que o sentido é sempre em “relação a”.

No caso desta proposta de tese, em que buscamos compreender o funcionamento do político no discurso da Educação do Campo e como ele se dá no

Dicionário da Educação do Campo, a partir da tomada de posição do sujeito, é

preciso levar em consideração o fato de se tomar como material a ser analisado um dicionário e, de modo particular, um dicionário de especialidade. Orlandi (2002, p. 118) afirma que devemos “pensar um dicionário”, ao invés de nos iludirmos com sua completude. Além disso, para a autora, devemos assumir a incompletude, assim como a diferença, a alteridade constitutiva para, por meio da forma material (linguístico-histórica) do dicionário, trabalharmos com ele em funcionamento, abrindo espaço para a elaboração de relações.

Nesse seguimento, é impossível não usar o próprio dicionário para compreender sobre a sua especificidade e seu funcionamento. Tomá-lo enquanto “detentor de um saber” não da língua, mas de um campo do saber, que se constitui como objeto de consulta em um espaço-tempo – que foi produzido em determinadas condições de produção e com uma memória que, como um discurso, provoca efeitos de sentidos em sujeitos e para sujeitos que dele se alimentam. A consulta foi feita a fim de buscar como são disciplinados esses saberes em cursos de Licenciatura em Educação do Campo no Brasil.

Diante disso, e a partir do dicionário, é possível perceber que nem tudo cabe em um dicionário, que foi necessário fazer escolhas e que essas se deram sob determinados posicionamentos que valem para alguns e que não valem para outros, porque o discurso está sempre “em relação a”.

Ao tomar, por exemplo, a própria noção de “idoso”, enquanto que, para muitos diz respeito àqueles “que têm muitos anos de vida”44, enfocando principalmente a

idade, para o Dicionário da Educação do Campo, no entanto, os sentidos de “idoso” são outros. Não se trata de um “idoso”, velho, acabado, ultrapassado, mas de um “idoso do campo”, aquele que sabe, que pode ensinar os jovens, que precisa ser valorizado, porque sempre esteve no campo e lá deve permanecer. No instrumento linguístico, a idade não é fator determinante para o significado de “idoso”.

O dicionário é entendido sobretudo como um objeto histórico e social, passando assim a funcionar no interior de um complexo de formações discursivas, de acordo com Nunes (2010). São essas formações discursivas que vão determinar o que constitui ou não um dicionário. Por tudo isso é preciso observar com especial atenção os efeitos que se produzem a partir dos modos de elaboração de um dicionário e, mais detidamente, um dicionário de especialidade.

Acreditamos que o dicionário de especialidade é constituído por diferentes saberes advindos de diferentes formações discursivas, visto que:

a) há saberes próprios de uma formação discursiva que dizem o que é um dicionário e como ele funciona na língua em que está escrito;

b) há saberes oriundos de uma formação discursiva da especialidade que constituem suas especificidades, suas formas, seus limites.

A partir da relação entre, pelo menos, essas duas formações discursivas, surgirá, sob a forma de um sentido evidente para o sujeito – afetado pela história – o dicionário de especialidade. Entendemos que essa forma-sujeito da especialidade é quem vai, dentro da regionalização de cada formação discursiva, encontrar modos de lidar com seus saberes e negociar sentidos no interior da formação discursiva dominante.

Tomando o dicionário de especialidade, entendemos que o Dicionário da

Educação do Campo assume a Forma-Sujeito Educação do Campo, isto é, o

sujeito do saber de uma Formação Discursiva predominante, a FD Educação do

Campo, constituída também por saberes regionalizados de diferentes formações

discursivas, tais como:

44 Refere-se aos sentidos de idoso trazidos dos sujeitos investigados no projeto desenvolvido por

Delevati e Petri (2010), disponível no livro Um outro olhar sobre o dicionário: a produção de sentidos (PETRI, 2010).

a) saberes sobre o que é um dicionário (lexicografia) e sobre como a identificação do sujeito com a língua em que o dicionário de especialidade está escrito. Estar sob o “efeito ideológico” de saber a língua, “nossa língua”, “a língua comum”, dos “brasileiros” (ORLANDI, 2002, p. 108) é também reconhecer-se identificado ao que ele é e como lê-lo. Dito de outro modo, saber a língua é fundamental para ler o escrito da especialidade;

b) saberes sobre educação e sua história de constituição, saberes dos movimentos sociais, dos MST, enfim, dos “militantes”;

c) saberes sobre essa – que nomeamos – educação especial, enquanto especialidade, por meio de pesquisas, teorias, reflexões, ou seja, a formação discursiva da produção do conhecimento científico.

Seguindo a reflexão sobre a confecção de um dicionário, Nunes (2010a), inscrito em uma teoria discursiva, explica que “atualmente, com as novas tecnologias, a informatização dos procedimentos lexicográficos é um imperativo cada vez mais presente” nesse processo em que, de acordo com o autor, passa por algum tipo de trabalho de arquivo, tendo em vista a reunião de fontes e seu aproveitamento. Nunes (2010a) afirma que:

A constituição de um corpus consiste em uma primeira etapa do trabalho do lexicógrafo. O corpus armazena materiais de língua oral ou escrita e é construído em vista de objetivos específicos, ainda que um mesmo corpus, uma vez constituído, possa ser utilizado para realizar diferentes trabalhos. Certamente, quanto mais interpretado, anotado, balizado o corpus, mais específica será sua finalidade (NUNES, 2010a, p. 164).

Por esse viés, a determinação de qual palavra ou expressão compõe o dicionário é uma escolha influenciada por aspectos sócio-histórico-ideológicos. E isso se torna ainda mais notório no que diz respeito aos dicionários de especialidades. Que corpus foram coletados para a confecção do Dicionário da

Educação do Campo? Essa eleição foi realizada por um lexicógrafo, se é que há

um lexicógrafo? Quem interpretou esse corpus? E sob quais condições de produção? Essas seleções têm quais finalidades? Que memória carrega cada uma das entradas na especialidade para que seja essa palavra e não outra?

Nunes (2010a), em Lexicologia e Lexicografia estabelece uma relação entre a lexicologia, a lexicografia e a Análise de Discurso, mostrando o dicionário enquanto objeto que funciona na sociedade e na história. De acordo com o autor, “a

articulação entre o léxico e a história, materializada na relação língua-discurso, faz com que se tenha vista a dinâmica do léxico, seus movimentos e deslocamentos” (NUNES, 2010a, p. 158).

Além disso, Nunes (2010a, p. 149) faz uma diferença entre essas áreas, explicando que a lexicografia “desenvolve métodos e técnicas para produzir dicionários”, enquanto que lexicologia “identifica e descreve as unidades lexicais”. De acordo com o autor, é a lexicografia que estabelece os métodos de confecção de um dicionário em suas diversas formas (monolíngues, bilíngues, gerais, escolares etc.).

Para mostrar esse deslocamento, Nunes (2010a) exemplifica: a palavra “mutirão” deixou de ser utilizada no campo e passou a ser usada no espaço urbano, principalmente, nas periferias. “O termo mutirão era utilizado para significar um trabalho coletivo, uma ajuda comunitária” (NUNES, 2010a, p. 159) e, após algumas transformações sociais, como subdivisões de terras, a diversificação de plantações, novas relações econômicas e trabalhistas e a urbanização, acrescenta-se, o êxodo rural, a palavra mutirão passa a significar em um lugar outro, como por exemplo, “a associação dos moradores do bairro promoveu um mutirão”.

De fato, o Dicionário da Educação do Campo, tomado como um “objeto” (NUNES, 2006), como um discurso, permite compreendermos como são produzidos efeitos, como a história funciona, como a memória se constrói e se atualiza, como os sentidos produzem-se e deslocam-se, inscrevendo-se em um lugar que lhe é próprio: o da sua especialidade. Para além disso, interessa-nos também estabelecer relações da Análise de Discurso articuladas com a História das Ideias Linguísticas, que compreende o dicionário como um “instrumento linguístico” (AUROUX, [1992] 2014).