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2. PARTE I: EDUCAÇÃO DO CAMPO

2.4. A EDUCAÇÃO NA E DA EDUCAÇÃO DO CAMPO

Retomamos a Constituição de 1988, artigo 205, para recordar que ficou estabelecido que a educação é um direito de todos e um dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando o pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. Nesse viés, foi a partir do final da década de 1990 que o poder público passou a receber reinvindicações por uma educação voltada àqueles que vivem no e do campo.

Nesse percurso, mesmo que ainda generalista, percebemos que a educação rural foi historicamente relegada a espaços marginais nos processos de elaboração e implementação de políticas educacionais que levassem em consideração essas realidades na sua especificidade. Uma das causas para isso ter acontecido talvez possa ser a fronteira existente entre o rural e o urbano. “Rural” estaria para o abandono, para a exclusão, para o esquecimento, enquanto que “urbano” corresponderia ao espaço de vida e de resistência. Rural reportaria ao abandono “do campo” pelo Estado, demandando, portanto, a criação de políticas públicas voltadas para as pessoas desse “rural” esquecido.

A discussão sobre a valorização de uma educação voltada às questões campesinas tem sido debatida em diversos setores da sociedade. No entanto, em alguns grupos – Movimentos Sociais, Secretarias de Educação, Ministério da Educação (MEC), Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) –, esses debates se dão com maior intensidade, promovendo uma valorização da cultura do campo por meio de propostas educacionais voltadas às especificidades curriculares dos campesinos.

Assim, para responder à questão: “qual a concepção de educação para a Educação do Campo?”, recuperamos uma afirmação de Caldart (2008, p. 04): “não se trata de discutir a filiação teórica, ou os autores que seguimos”. A questão é mais profunda, “e diz respeito à relação entre teoria e prática”. Ainda de acordo com a autora:

A materialidade de origem da Educação do Campo projeta e constrói determinadas relações que lhes são constitutivas. Antes (ou junto) de uma concepção de educação, ela é uma concepção de campo: porque, neste caso, como pensamos a educação; se pensarmos o campo como latifúndio, não temos como pensar a Educação do Campo; se pensarmos a Reforma Agrária como uma política social ou compensatória apenas, não vamos pensar um sistema público de educação para os camponeses (CALDART, 2008, p. 21).

Dessa forma, é preciso considerar que a Educação do Campo nasce, por um lado, pela própria identificação do sujeito a que ela se destina, tanto como um projeto de campo quanto como um projeto de educação para esses sujeitos38. Por

outro lado, a visão em relação à Educação do Campo deve ser pensada de forma alargada, pois vai além da chamada “educação rural”, que, na opinião de Caldart (2008, p. 05) foi uma “visão pragmática e instrumentalizadora da educação”, a Educação do Campo, nas palavras da autora, “pensa a lógica da vida no campo como totalidade em suas múltiplas e diversas dimensões” (CALDART, 2008, p. 05).

De acordo com a definição de Ribeiro (2012) para a entrada “educação rural” no Dicionário da Educação do Campo, a educação rural é uma modalidade de educação que transcende a escola destinada às populações que vivem em áreas rurais e garantem seu sustento por meio do trabalho com e da terra e é por isso que

38 Importante destacar que pensamos o sujeito não empírico, mas um sujeito afetado pelo poder, pelo

Estado, sobretudo, pela ideologia. Trata-se, de acordo com Haroche (1992, p. 21), de “uma forma de poder que classifica os indivíduos em categorias, identificando-os, amarra-os, aprisiona-os em sua identidade”. Voltaremos a essa questão quando tratarmos da tomada de posição do sujeito da militância e do sujeito da produção do conhecimento científico da e sobre a Educação do Campo.

a educação rural é indissociável do trabalho. Para a autora, “o vínculo com a terra, o meio de produção que não resulta do trabalho e que é essencial à produção de alimentos – e, portanto, essencial à vida –, coloca a educação rural no cerne da luta de classes” (RIBEIRO, 2012, p. 300), mais precisamente, a educação rural visaria à formação de mão de obra para trabalho, garantindo assim a condição de classe.

Souza (2008), em pesquisa que trata da produção do conhecimento sobre Educação do Campo – intitulada Educação do Campo: políticas, práticas,

pedagógicas e Produção Científica –, permite verificar o modo como a Educação do

Campo vem sendo trabalhada pelos movimentos sociais e “inaugura duas frentes” no debate educacional brasileiro: a) a primeira frente possível diz respeito ao fato de construir uma “noção de educação pública pautada nos interesses da sociedade civil organizada, em contraponto à educação pública estatal que historicamente marca a gestão e a prática pedagógica no Brasil” (SOUZA, 2008, p. 1091); e b) a segunda frente, de acordo com a autora, se dá acerca da prática pedagógica nas escolas do campo, expressando as divergências políticas entre a concepção de educação rural pautada na política pública estatal e a concepção de campo pautada no debate empreendido pelos movimentos sociais de trabalhadores.

A autora ainda acrescenta que são conhecimentos que permitem questionar o modo de produção capitalista em suas contradições, bem como o lugar do Estado na estrutura capitalista. O Estado ou o que é estatal não é público ou do interesse público, mas tende ao favorecimento do interesse privado ou aos interesses do próprio Estado, com sua autonomia relativa.

Dessa forma, pensar a Educação do Campo, para Nascimento (2009), significa assumir três compromissos básicos: um ético/moral com a pessoa desumanizada historicamente; um compromisso com a intervenção social e com o educar, o que, de acordo com o autor, significa intervir para transformar as realidades de exclusão pedagógicas tão frequentes nos municípios e estados; e, por fim, um compromisso com a cultura camponesa em suas diversas facetas, seja para resgatá-la, recriá-la ou conservá-la.

Nesta primeira parte de nossas reflexões, mostramos a construção da Educação do Campo levando em consideração “suas raízes” (CALDART, 2008) de constituição, a saber: o campo, as políticas públicas e a educação. No entanto, há de se considerar que a Educação do Campo, ao ser tratada como um conceito em constante constituição, perpassa por outras tendências, ao passo que ela vai se

afirmando na sociedade, seja como uma linha de pesquisa teórica da academia, como uma prática educativa, como tema de debate em discussões sindicais ou dos próprios movimentos sociais. Caldart (2008, p. 02) observa que “há quem prefira tratar a Educação do Campo tirando o campo (e seus sujeitos sociais concretos) da cena”, possivelmente para tirar as contradições sociais. Há aqueles que tiram a dimensão da política pública, “porque têm medo que a relação com o Estado contamine seus objetivos sociais emancipatórios primeiros”. Seguindo ainda Caldart (2008), há aqueles que ficariam mais tranquilos se a Educação do Campo pudesse ser tratada como uma pedagogia, cujo debate vem apenas das questões da educação, o que, por vezes, justifica ser conceituada, como uma “proposta pedagógica para as escolas do campo” (CALDART, 2008, p. 02).

De maneira geral, resgatamos algumas principais noções da Educação do Campo para compreender como ela se constitui, o que ela propõe e a quem. Para tanto, levamos em consideração algumas materialidades que foram desde a ordem política-legislativa (como a Lei da Terra e as Diretrizes da Educação do Campo) a questões teóricas (com CALDART, MOLINA, ARROYO, entre outros). Utilizamos, sobretudo, o Dicionário da Educação do Campo (2012) para trazer à baila algumas dessas reflexões não como Recortes Discursivos, mas como suporte teórico, uma vez que a forma como ele está organizado permite ser lido tanto na forma de “objeto” de estudo quanto como um “instrumento”, ou ainda, como um objeto e instrumento não da língua, mas de um saber. Diante do exposto, a seguir adentraremos em questões referentes ao dicionário de especialidade, o que buscamos compreender pelo viés discursivo – como trabalhado pela Análise de Discurso de linha francesa em relação à História das Ideias Linguísticas.

O Dicionário

Ao avô, José Pereira de Souza Rosa, pertenceu. Do saber, em busca, o ajudou! Também, a Ludgero Pereira Cintra,

pai, entre outros, assistência prestou!

Andou assim, o vetusto dicionário, de mão em mão, prodigalizando a missão sublime de ilustrar e servir. Contemplou, igualmente, nova e aguerrida geração: Euclides, Aparecida, Laudelina... Abriu-lhes o porvir!

Todos da família, com idêntica preocupação, compulsaram-no. Páginas e páginas volveram, à procura de resposta à alguma indagação!

Descendentes outros, aquinhoados foram, e bem! Eis porque, gerações sucessivas o amaram intensamente; oh bela obra, vinda do mar além!

Embora velhinho, continua sempre querido! É o predileto, dentre seus pares mais modernos,

por lembrar, com eterna saudade, o distante passado...

Tornou-se, assim, distinta e venerável relíquia!... Jamais, da numerosa estirpe, será esquecido. As novas progênies dele cuidarão com alegria!...

Belo Horizonte, 27 de março de 1989. Euclides Pereira Cintra39

39 O Diccionario da Língua Portuguesa e Diccionario de Synonymos (poético e de epithetos),

editado em Paris, em 1871, por J. I. Roquete e José de Fonseca, livreiros do Imperador do Brasil e do Rei de Portugal esteve presente na família de Euclides Cintra desde 1874. A obra passou de geração a geração, quando em 1990, Euclides Pereira Cintra, ao mandar recuperá-la, encaderna junto ao dicionário uma página datilografada intitulada “Alácre Recordação”, em que relata a história da obra,