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Diferenciando o moralismo moderado de Carroll do eticismo

4. O moralismo moderado de Noël Carroll

4.2 Diferenças teóricas, objeções e problemas

4.2.3 Diferenciando o moralismo moderado de Carroll do eticismo

Berys Gaut intitula sua teoria bastante próxima ao moralismo moderado de Carroll de eticismo. O eticismo, assim como o moralismo moderado, defende que:

a) Não é o caso que uma obra depende de ser eticamente boa para ser esteticamente elogiável;

b) Manifestar atitudes moralmente boas também não é condição necessária para uma obra ser esteticamente boa (tal como a “a)”), essa medida é tomada apenas por moralistas radicais que reduzem um valor ao outro; c) Há uma pluralidade de valores estéticos (ou artísticos), dos quais o valor

ético das obras de arte é apenas um tipo;

62 Embora pareça carregar consigo pressuposições, como as acerca da natureza da moral, esse

não parece ser um problema para o moralismo moderado de Carroll, na medida em que as outras posições também o fazem, de um modo ou de outro. Talvez, em uma análise que embora profunda, desvirtuar-nos-ia de nosso foco inicial, em um exame minucioso poderíamos concluir que o que se encontra por trás de inúmeras discordâncias nessa discussão parece estar ancorado primeiramente em pressuposições profundas: acerca da natureza da moral, dos juízos morais, dos juízos estéticos e até mesmo da natureza humana.

106 d) Propõe um balanço geral que pese todos pontos valoráveis de uma obra

para então saber como fica sua avaliação.

De forma geral, o eticismo

... é a tese de que a avaliação ética de atitudes manifestadas pelas obras de arte é um aspecto legítimo da avaliação estética de tais obras, tal que, se uma obra manifesta atitudes eticamente repreensíveis, é nessa medida esteticamente defeituosa, e se uma obra manifesta atitudes eticamente elogiáveis, é nessa medida esteticamente elogiável. (GAUT, 1998, p.182, tradução nossa)

Para Berys Gaut, o principal ponto de sua avaliação moral das obras levaria em conta a atitude que o trabalho realmente possui, não a que ele declara ter frente às situações que ele representa. Para Giovannelli, isso significa que Gaut se refere somente à atitude manifestada pela obra, da mesma forma que podemos distinguir entre as atitudes que as pessoas realmente tem e aquelas que elas dizem ter quando olhamos para seu comportamento (GIOVANNELLI, 2004). Também não seria o caso de que uma obra nunca poderia, em nenhuma situação, apresentar uma atitude moralmente reprovável. Ela teria permissão para tal em um contexto onde a atitude geral da obra (e não somente aquela atitude isolada) fosse uma atitude moralmente elogiável.

Já Carroll se concentra em uma dimensão diferente, qual seja, a solicitação do engajamento de nossos poderes morais, por parte da obra (e por conseguinte o aprofundamento ou perversão de nossa compreensão moral). Carroll (2010, p. 197) declara que, embora compartilhe algumas visões e estratégias argumentativas com Gaut, não é seu objetivo “ir tão longe”. Nas palavras de Giovannelli, poderíamos dizer, não é o objetivo de Carroll defender uma relação sistemática entre defeitos morais e defeitos estéticos (ou virtudes morais e virtudes estéticas).

Gaut também não considera, como Carroll, uma avaliação a partir de como o público real responde à obra. Ele, por sua vez, avalia de acordo com o que o público deveria responder. Essa visão nos leva a uma compreensão diferente do termo “resposta meritória”, também utilizado por Gaut. Diferente de referir-se somente ao erro no design da obra, que tem sua raiz na emoção moral requisitada e atingida, para o autor, uma resposta será meritória a partir da base

107 moral pela qual é moralmente elogiável que se tenha tal resposta dado o que a obra requer (Schultz traça bem essa distinção).

Para compreender melhor essa outra dimensão normativa que se estende àqueles que ousam responder conforme requisitado por obras moralmente comprometidas, analisemos a seguinte passagem:

Posso criticar alguém por ter prazer na dor de alguém, por se divertir com a crueldade sádica, por estar irritado com alguém que fez algo errado, por desejar algo ruim. O mesmo é verdadeiro quando respostas são direcionadas a eventos fictícios, pois essas respostas são reais, não apenas imaginadas. Se realmente apreciamos ou somos entretidos por uma exibição de crueldade sádica em um romance, isso nos coloca em uma má situação, reflete aspectos doentios de nosso caráter, e podemos ser devidamente criticados por respondermos dessa maneira (GAUT,1998, p.194, tradução nossa).

Outra diferença considerável se soma a partir do momento em que Gaut quer levar em consideração em seu julgamento, de maneira mais forte, a atitude manifesta da obra. Com isso, sua teoria se expande até uma teoria capaz de julgar obras de arte de gêneros como o da música sem texto. Basta que seja cabível uma interpretação que demonstre de que modo tal peça musical impõe certa atitude perante a algo.

A música sem texto também é submetida ao criticismo ético se pudermos atribuir devidamente à música uma dada situação e uma resposta prescrita a ela. Se as sinfonias de Shostakovich são protestos musicais contra o regime estalinista, podemos julgá-las eticamente. (GAUT, 1998, p.193, tradução nossa)

No caso de Carroll, sua teoria não se arrisca nesses terrenos. Ele se atem, em grande medida, às obras de arte narrativas por se tratarem de casos paradigmáticos do envolvimento das obras de arte com a moral (pois, como declara, é difícil imaginar uma narrativa que trate de relações humanas sem tocar em questões éticas). Sua sugestão mais arriscada é a de que um gênero como o retrato talvez também pudesse apresentar casos sujeitos a esse tipo de julgamento.

Segundo Landon Schultz, em suas primeiras elaborações do moralismo moderado (principalmente nos artigos “Moderate Moralism” de 1996 e “Art, Narrative and Moral Understanding” de 1998), Carroll apresenta uma formulação bastante similar à do eticismo de Gaut.

108 (a) Uma obra pode ser julgada artisticamente em termos de sua contribuição

à educação moral;

(b) Algumas obras se direcionam à compreensão moral, tal que um defeito moral em uma obra contaria como um defeito estético na medida em que esse impedisse a resposta a qual a obra almeja.

A premissa (b) notavelmente é um pensamento bastante próximo do de Aristóteles na Poética, como podemos notar na seção a respeito de como deve se configurar o herói trágico para que a resposta trágica seja atingida. O eticismo de Gaut (mais precisamente, seu argumento da resposta meritória), segundo Schultz, teria a seguinte formulação:

(a) Algumas obras recomendam certas respostas morais ao público; (b) Algumas dessas respostas serão meritórias em termos éticos; e

(c) Uma obra a qual recomenda, como parte de seus objetivos artístico, uma resposta nãomeritória é artisticamente falha.

Embora as formulações pareçam bastante próximas, a de Gaut se compromete com dois tipos de instâncias normativas: sua avaliação ética não diz respeito apenas ao mérito da obra ser capaz de provocar a resposta que almeja, mas também ao mérito como um “merecer moral”, dependente da paisagem moral.

Assim, se uma obra recomenda a excitação erótica a partir do prospecto de tortura sexual, como em Juliette de Sade, então a questão sobre se as características da obra merecem ou não a resposta per se, a resposta é nãomeritória no sentido amplo, tal que a obra tenha recomendado uma resposta a qual é não meritória tout

court, e portanto é falha, sobre a base da premissa (3). Logo, qualquer

resposta moralmente inapropriada a qual é recomendada à audiência por uma obra constitui uma falha artística. (SCHULTZ, p.2-3, tradução nossa)

O dito mérito de Gaut permearia outros meios além da avaliação do design. O moralismo moderado, contudo, afirma apenas que a falha ocorre quando a falha (sendo ela moral ou não) interfere nos objetivos da própria obra.

Desse modo, nota-se uma diferença considerável entre ambas posições. O Eticismo seria capaz de encontrar uma falha artística em uma obra mesmo

109 que essa merecesse a resposta que almeja quando avaliássemos suas características enquanto obra de arte (ou seja, quando a obra oferece os meios para que tal resposta seja atingida). Como o mérito de Gaut permeia outras avaliações, a obra não passaria pelo exame ético porque a própria resposta que ela recomenda (mesmo que seja garantida pela qualidade artística da obra) é moralmente reprovável, o que implicaria de qualquer modo uma falha ética.

“No eticismo a obra falha em termos que se estendem para além da obra (em termos éticos). No moralismo moderado, a obra falha nos seus próprios termos”. (SCHULTS, p.4, tradução nossa). O eticismo seria capaz de apontar um desencontro diretamente entre aquilo que a obra recomenda e aquilo que a própria ética recomendaria, o que não parece ser o caso de Carroll. Optando por algumas diferenças teóricas, Carroll tenta se esquivar de alguns problemas através de uma posição que sempre tenta ser moderada. Contudo, ele não escapa de outros, conforme veremos na próxima seção.