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II. O mito de Pedro e Inês e o romance histórico pós-moderno

1. Romance histórico e pós-modernismo no final do século XX

1.2. A difusão das perspectivas pós-modernas

Ao longo das últimas décadas, o termo «pós-modernismo» tornou-se, como afirma Amalia Pulgarín Cuadrado, um dos mais debatidos e contraditórios da cultura contemporânea [cf. Pulgarín Cuadrado, 1995: 11]. Linda Hutcheon acrescenta, mesmo, que se trata de um conceito “wilfully contradictory” [Hutcheon, 1989: xiii], o que já nos coloca na pista de um dos seus princípios fundamentais: a necessidade de fazer questionar, de obrigar a reflectir sobre os diversos assuntos abordados. A opção pelo confronto com o leitor, que pode fazer surgir situações de choque mais ou menos violento, é apenas uma das estratégias que o romancista pós-moderno utiliza para atingir o seu objectivo de chamada de atenção para os temas que considera prementes e obrigatórios.

As dúvidas relacionadas com este conceito são diversas, pelo que as várias tentativas de definição que têm sido produzidas pelos teóricos se revelam, de alguma forma, insuficientes ou parcelares. Curioso é o facto de, enquanto muitos autores consideram que estamos perante um termo ainda em consolidação e, portanto, em mudança constante [cf. Reis, 2005: 295], outros arriscarem já a previsão do seu fim: “O principal problema com o conceito de pós-modernismo na teoria da cultura de hoje é o facto de ele ser ainda um conceito em gestação à data em que já se anuncia a sua agonia final” [Ceia, 1998: 10].

Em todo o caso, pensamos que as tentativas de Douwe Fokkema e de Fernando Pinto do Amaral são, complementarmente, as que mais nos aproximam de uma ideia concreta sobre as linhas centrais do código pós-moderno. O primeiro, comparando de forma exaustiva esta corrente contemporânea com o modernismo, esclarece as relações criadas entre o leitor e o autor, entre este e o próprio texto, ou mesmo entre o discurso e o

contexto social em que todos estes elementos se situam [cf. Fokkema, 1988: 67-74]. Já o segundo prefere salientar a relativização que, a vários níveis, o texto pós-modernista promove, seja no que se refere aos códigos narrativos tradicionais, seja no âmbito da concepção de linearidade temporal, ou mesmo no que diz respeito à noção de verdade na percepção da realidade humana [cf. Amaral, 2004: 80].

Claro que outros autores nos apresentam noções que acabam por especificar as ideias genéricas que descrevemos. É o caso de Linda Hutcheon, com a sua definição de “historiographic metafiction” ou a noção de “self-reflexivity” e a sua ligação com a necessidade de diferença, de individualidade no tratamento dos temas [cf. Hutcheon, 1989: 5; 70]; Carlos Ceia também sublinha a importância da metaliterariedade de um texto, ainda mais se, para além de “interpelações esporádicas ao leitor”, se tratar de “uma obra assumidamente auto-reflexiva” [Ceia, 1998: 45]. Ana Paula Arnaut, por outro lado, aponta o facto de, em muitos aspectos, o pós-modernismo constituir apenas a utilização sistemática e consciente de “técnicas e artifícios de narração a que anteriormente se recorria”, como a “polifonia narrativa”, a “fluidez genológica” ou os “exercícios metaficcionais ou auto-reflexivos” [Arnaut, 2002: 357]. Finalmente, Carlos Reis enumera algumas das contribuições desta tendência literária, identificando-as como “inovações temáticas, ideológicas e formais”, por exemplo através de relações intertextuais, construções metaficcionais, deslegitimação de narrativas consagradas ou reescrita do texto histórico [cf. Reis, 2005: 296].

Como já anteriormente declarámos, parece-nos que a relação entre o romance histórico e a perspectiva pós-moderna seria, no tempo actual, inevitável. Como diz Karl Kohut, “parecería incompleta una concepción de la posmodernidad que no incluiría la dimensión histórica” [Kohut, 1997: 20]. É neste contexto que surgem alguns conceitos interessantes, como a distinção entre novela histórica ilusionista e anti-ilusionista [cf. Spang, 1998; 65] ou a separação das noções de romance auto-reflexivo e ficção ucrónica, as duas principais vias propostas por Elisabeth Wesseling no que se refere ao romance histórico mais recente [cf. Wesseling, 1991: 113].

Um dos problemas que se levantam com a nova ficção histórica parece ser a possibilidade de corte com tudo o que possa ser considerado consagrado. A título de exemplo, atentemos na seguinte proposta cautelosa de definição avançada por Mata Induráin: “La característica más evidente es que todas las novelas […] sitúan su acción

(ficticia, inventada) en un pasado (real, histórico) más o menos lejano” [Mata Induráin, 1998: 13]. A isto, a própria Elisabeth Wesseling responde da seguinte forma: “A uchronian fiction may be set in the past, where it shows alternate history in the making. It may also be set in a vaguely defined present or future” [Wesseling, 1991: 102]; a mesma autora acaba por explicar, mais tarde, a ideia apresentada: “the aim is not to write versions of history that are true to the past, but to tell stories that may open up new possibilities for the shaping of the future” [Idem: 194].

Esta atitude de rejeição genérica dos conceitos anteriormente seguidos torna-se uma espécie de princípio que se aplica também à área do romance histórico: “a ficção histórica pós-moderna afirma-se contra as convenções próprias dos seus clássicos modelos, propondo uma nova forma de representar ou de conceber o passado” [Marinho, 1995: 190]. Isto nota-se, essencialmente, no que diz respeito ao Romantismo, já que, relativamente ao Modernismo, embora a principal motivação pareça ser o confronto, a alteração, diversos aspectos demonstram a existência de alguma continuidade, quebrada, por exemplo, pelo uso propositado do anacronismo que os modernistas, por princípio, evitaram [cf. Wesseling, 1991: 93].

É com base nestes pressupostos que Fátima Marinho estabelece o início da presença pós-moderna na literatura portuguesa na década de sessenta do século XX, mais propriamente ainda nas obras posteriores a 1963 [cf. Marinho, 1999: 147]46. As hipóteses de definição da vertente portuguesa do conceito de pós-modernismo não diferem em muito do que já foi apresentado num âmbito mais global. Maria Alzira Seixo realça “os finais alternativos, as sequências paralelas, as contrafacções históricas, a ficção ucrónica e a intenção paródica” [Seixo, 1994: 111], enquanto Paula Arnaut sublinha que, embora “sujeitas a nuances simbólicas e, em alguns casos, ostensivamente subversivas”, as características nacionais serão basicamente as mesmas que se encontram nas obras de autores estrangeiros: “a mistura de géneros e decorrente fluidez genológica, a polifonia e a fragmentação narrativas, e a metaficção (ou a modelização paródica da História em outros romances)” [Arnaut, 2002: 17].

Estas apropriações da História pelo romance contemporâneo defrontam, no entanto, diversas resistências, quer dos próprios produtores de ficção, como opina

46 Embora outros autores, como Ana Paula Arnaut, considerem marco decisivo a publicação de O Delfim,

Miguel Real47, quer de outras procedências: “há quem, pura e simplesmente, recuse o direito a «mexer com a História», quem recuse aos escritores o direito a colocar palavras inventadas na boca de personagens históricas, o direito a preencher com a sua imaginação as lacunas ou pontos mortos do nosso conhecimento dos factos passados” [Aguiar, 1997].

Ainda assim, o caminho do pós-moderno torna-se irreversível na nossa literatura, ficção histórica incluída, como afirma Luís Adão da Fonseca: “alguns romances históricos mais recentes apresentam manifestações de heterogeneidade e de subalternização da racionalidade típicos da pós-modernidade” [Fonseca, 2004: 275]. Justificar-se-á, portanto, a opinião de João Aguiar, segundo o qual “podemos falar de um romance histórico português, não isento, claro está, de fortes influências exteriores, mas com traços que lhe são próprios” [Aguiar, 1997]. Um dos aspectos específicos da ficção histórica portuguesa seria, de acordo com o mesmo escritor, que “os autores portugueses, quando escolhem o género histórico, tendem a preferir a história portuguesa ou os períodos antecedentes que a ela se referem” [Idem], o que se verifica à evidência no caso da sua própria produção ficcional.

Assumiremos, portanto, a existência de diversidade no que se refere ao conceito de pós-modernismo. Isto mesmo aponta, ironicamente, Karl Kohut: “Si buscamos, a pesar de todo, un lazo interior entre las diferentes concepciones de la posmodernidad, éste sería, tal vez, el concepto de heterogeneidad” [Kohut, 1997: 12]. Consideramos, aliás, essencial ao próprio conceito a abertura a múltiplas formas de ver e entender tanto o presente como o passado.

Assegura-nos Jeroen Dewulf que “se há uma importante lição a tirar da viagem pós-moderna nas ciências humanas de finais do século passado, é que as fronteiras passaram a ser relativas […] na medida em que o conceito das mesmas passou a depender de um ponto de vista individual” [Dewulf, 2004: 213]; essa relatividade, ligada à individualidade da perspectiva assumida, é elemento fulcral na análise pós-moderna da História, seja no próprio discurso historiográfico48, seja no âmbito da escrita ficcional.

47 Este autor considera que a «Geração de 90» portuguesa não leva a sério a História, não a considera uma

tradição a respeitar ou um futuro a anunciar [cf. Real, 2001: 99].

48 Embora seja de considerar este conceito com algumas reticências, Reis Torgal menciona a “chamada

«história pós-moderna»” e, mais adiante, afirma que a “temática do pós-modernismo […] começou também a «invadir» a história” [Torgal, 1998a: 391; 392].

Especificamente no campo da análise histórica, considera Hayden White: “It is not so much the study of the past itself that assures against its repetition as it is how one studies it, to what aim, interest or purpose” [White, 1987a: 82]. Assumir uma perspectiva pessoal, uma forma individual de abordar as evidências ou as personagens históricas poderá ser, assim, o modo mais adequado de repensar a História (e de, eventualmente, aceitar o presente e preparar o futuro).

Como veremos mais adiante, em cada uma das obras que escolhemos para núcleo da nossa análise deparamos com esta atitude de reflexão crítica e reconstrução individual do passado. Assim, e assumindo embora alguma simplificação do conceito, tal facto permitirá, ainda que parcialmente, conferir-lhes o rótulo de produtos literários pós-modernos.