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II. O mito de Pedro e Inês e o romance histórico pós-moderno

1. Romance histórico e pós-modernismo no final do século XX

1.1. O ressurgimento do romance histórico

O romance histórico consolida, como vimos, a sua presença na literatura portuguesa nas últimas duas décadas do século XX e, no dizer de Fátima Marinho, com “uma fortuna só comparável à dos tempos áureos do Romantismo” [Marinho, 1999: 147]. Sendo verdade que se trata de duas situações bastante distanciadas, tanto temporal como ideologicamente [cf. Reis, 2005: 294], teremos também que admitir o seu paralelismo no que se refere à importância relativa no seio da literatura nacional.

É certo que a vontade de promover o conhecimento da História é comum a estes dois tempos literários, mas pensamos que as suas diferenças no caso português não se distanciam das apontadas por Elisabeth Wesseling para o romance histórico inglês: “Whereas nineteenth-century novelists sought to complement historiography by enlivening available historical information in the interests of entertainment and instruction, contemporary writers rather critically comment upon historiography by investigating the nature and function of historical knowledge” [Wesseling, 1991: 193].

Esta tendência literária que perpassa pelo modernismo43 e se instala no próprio pós-modernismo não é mais que um reflexo do que se verifica também no âmbito da historiografia. A tendência para a desmistificação do carácter objectivo do discurso histórico tem-se manifestado de forma a não deixar dúvidas, não apenas fora do nosso país, mas também entre os pensadores portugueses: “O historiador conta uma história, uma história que ele forja recorrendo a um certo número de informações concretas” [Duby, 1994: 13]; “o discurso, mesmo científico, acerca do passado, não é a sua imagem fiel, mas uma expressão do que o seu autor pensa acerca da Humanidade” [Mattoso, 1997: 21].

43 Elisabeth Wesseling afirma que foram os escritores modernistas a modificar a posição tradicional do

romancista face ao estudo da história, “from a complementary into a metahistorical one” [cf. Wesseling, 1991: 93].

Igualmente incisivo, Adam Schaff afirma que “a verdade atingida no conhecimento histórico é uma verdade objectiva relativa” [Schaff, 1988: 246], até porque, segundo o mesmo autor, os resultados práticos do trabalho efectuado “dependem, em grande medida, da personalidade do historiador, da sua erudição, da sua formação teórica e filosófica, das suas convicções pessoais determinadas pela sua situação social, etc.” [Idem: 209]. Deste modo, a visão do passado pode ser assumidamente pessoal, o que leva cada vez mais estudiosos dos fenómenos históricos a preconizar a “necessidade de escrever em nome próprio e na primeira pessoa” [Mattoso, 1997: 29].

Parece, portanto, que voltamos a uma situação, comum nos finais do século XIX e inícios do seguinte, em que, embora por caminhos bastante diferentes, a História e a Literatura se aproximam44, até porque, como afirma Teresa Cerdeira, é um facto “mais ou menos inelutável” que “sejam equivalentes os processos que conduzem à memória do que aconteceu e à imaginação do que poderia ter acontecido” [Cerdeira, 2004: 155]. Põe-se hoje, com tanta pertinência como o fez Almeida Garrett em meados do século XIX, a questão do sacrifício alternativo às musas de Homero ou de Heródoto: na verdade, dificilmente saberemos em qual dos altares arde o fogo mais verdadeiro, mesmo porque, como nos diz Hayden White quase século e meio mais tarde, “one can produce an imaginary discourse about real events that may not be less «true» for being «imaginary»” [White, 1995: 133].

Apesar dos pontos comuns, tanto no que se refere à historiografia como em relação à obra literária, a evolução é, no entanto, evidente. Miguel Real compara, implicitamente, os dois momentos literários, definindo o que denomina “Novo Romance Histórico” como um modelo que se mostra “fiel às fontes historiográficas sem deixar de ficcionar, não é apologético ou endoutrinador e não se encontra ao serviço de visões gerais do mundo que encaram o romance […] como um instrumento de conversão do leitor e de propaganda geral” [Real, 2001: 88]. No que podemos considerar um complemento a estas afirmações, Fernando Pinto do Amaral assinala como “um dos traços mais significativos da nova geração de ficcionistas portugueses” a “vontade de contar histórias verosímeis e partilháveis com os leitores” [Amaral, 2004: 89].

44 Parece-nos bastante elucidativa a afirmação de Reis Torgal a este propósito: “A «promiscuidade» entre

João Aguiar, um dos nomes incontornáveis quando se fala do romance actual de tema histórico, assume uma opinião aparentemente contrastante, afirmando que “seja inconscientemente seja de forma deliberada, há no nosso romance histórico uma

intencionalidade […]. Essa intencionalidade refere-se a uma chamada de atenção dos

leitores para a nossa identidade como Portugueses”45, uma vontade “de evocar um pouco do que fomos, enquanto povo e enquanto país. Para que, simplesmente, o não esqueçamos ou mesmo para compreendermos o que hoje somos” [Aguiar, 1997].

Pensamos não serem totalmente inconciliáveis as perspectivas atrás descritas; no entanto, consideramos que as opiniões de João Aguiar se adequam mais rigorosamente à globalidade do romance histórico português contemporâneo, até porque acreditamos, como Hayden White, que o estudo da História nunca é inocente, inclusivamente do ponto de vista ideológico [cf. White, 1987a: 82].

A nível estritamente literário, se esse aspecto já era visível, de alguma forma, no romance histórico da época romântica, o qual chegou mesmo a assumir-se como um meio mais eficaz que a própria historiografia oficial na promoção do conhecimento histórico, segundo Elisabeth Wesseling [cf., 1991: 45], parece-nos mais evidente ainda em relação ao seu equivalente contemporâneo. Diz-nos Carlos Reis que o romancista apenas abandonará o romance histórico no momento em que tiver renunciado à sua própria responsabilidade cultural [cf. Reis, 1992: 146], ideia que reconhecemos também nas palavras de Carlos Mata Induráin: “Si en la historia el hombre puede buscar su propia identidad, la novela histórica contribuye a evitar la amnesia del pasado en una época necesitada igualmente de raíces y de esperanzas” [Mata Induráin, 1998: 30].

O aparecimento das concepções pós-modernas na nossa literatura será, definitivamente, produto da conjunção destes dois vectores, procurando-se muitas vezes nas raízes do passado comum as explicações para o presente ou mesmo as pistas para as esperanças futuras. Deste modo se explicará também, numa perspectiva essencialmente pessimista (mas muito actual), que se apresente em conjunto “o decréscimo de confiança na leitura da História e na ideia de futuro” [Amaral, 2004: 80].

Como reflecte Miguel Real, “existem recorrências na História: o que aconteceu pode vir a acontecer” [Real, 2001: 114]. Daí que, no que diz respeito particularmente ao

45 Os itálicos provêm do original; sempre que tal aconteça em citações futuras, consideramos dispensável

essa anotação; pelo contrário, procederemos sempre a uma menção específica quando se trate de sublinhados ou itálicos introduzidos por nossa iniciativa.

romance histórico pós-moderno, a relação com o passado seja essencial para alguns, enquanto para outros esta só se entende em estreita ligação com o presente e com o próprio futuro [cf. Kohut, 1997: 19]. Assim, também ao pós-modernismo podemos associar a curiosa imagem literária que Marco Larios utilizou para descrever os pontos de contacto entre historiografia e literatura: “La novela y la historia son dos discursos de invención que se apasionan por el tiempo” [Larios, 1997: 135]. Parece-nos que o romance histórico da época pós-moderna reflecte também essa paixão.