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Seção 1 – As relações entre o direito internacional e o direito constitucional e a busca pela

A) Dignidade e seus corolários: integridade psicofísica, liberdade e solidariedade

O direito é força de transformação da realidade social. A ele cumpre o desafio de estabelecer os valores fundamentais comuns da sociedade, fornecendo a moldura moral e ética necessária à elaboração das leis. Ao mesmo tempo, o direito deve assegurar os mais amplos espações de liberdade possíveis que permitam a realização das aspirações pessoais de cada

200 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 13 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 82.

pessoa, em sua trajetória de vida particular. Nesse ponto, surge uma questão primordial que consiste em identificar quais os atributos essenciais à pessoa humana.202

Como atributo intrínseco ao ser humano, a dignidade extrai suas raízes do cristianismo, da ética e da filosofia moral. No campo do direito, o interesse pelo estudo da dignidade é mais recente e decorre de sua afirmação em Tratados de Direitos Humanos e Constituições Nacionais. Embora concebida de maneira vaga, imprecisa e polissêmica, a dignidade não deixa de ser algo real, vivenciado concretamente por cada indivíduo.203

O término da Segunda Guerra Mundial marca a ascensão da dignidade como um conceito jurídico. A crença no formalismo e no raciocínio puramente dedutivo e na divisão entre direito público e privado começam a ruir, dando ensejo à aproximação entre o direito, a filosofia moral e a política. A dignidade evoluiu como um conceito multifacetado, havendo razoável consenso de que, enquanto valor fundamental, ela se encontra subjacente às democracias constitucionais, mesmo quando não prevista expressamente pelos textos de suas Constituições.204

No Brasil, o respeito à dignidade tornou-se um comando jurídico formal com a promulgação da Constituição de 1988. A dignidade aparece no texto constitucional como fundamento do Estado brasileiro e alicerce de toda a ordem jurídica democrática nacional, não cumprindo apenas com o papel de assegurar um tratamento humano e não degradante e de proteção da integridade física dos indivíduos. Considerando a sua normatividade, a dignidade determina a completa transformação de um direito que não mais encontra a sua razão de ser em valores individualistas.205

Ana Paula de Barcellos enfatiza que a realidade jurídica brasileira, fundada na Constituição de 1988, adota a dignidade humana como princípio fundamental e finalidade principal do Estado. A eficácia positiva da dignidade impõe ao Estado o dever de assegurar as condições materiais de existência de seus cidadãos.206

202 MORAES, Maria Celina Bodin de. O conceito de dignidade humana: substrato axiológico e conteúdo normativo. In: SARLET, Ingo Wolfgang et al (Coord.). Constituição, Direitos Sociais e Direito Privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 107-149, p. 110.

203 SARLET, Ingo Wolfgang. As dimensões da dignidade da pessoa humana: construindo uma compreensão jurídico-constitucional necessária e possível. Revista Brasileira de Direito Constitucional, São Paulo, p. 361- 388, jan./jun. 2007, p. 362. Disponível em: <https://bdjur.stj.jus.br/jspui/bitstream/2011/27252/dimensoes_ dignidade_pessoa_humana.pdf>. Acesso em: 07 ago. 2018.

204 BARROSO, Luís Roberto. A Dignidade da Pessoa Humana no Direito Constitucional Contemporâneo: A Construção de um Conceito Jurídico à Luz da Jurisprudência Mundial. 2º reimpressão. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2013, p. 61-63.

205 MORAES, Maria Celina Bodin de. Op. Cit., p. 118.

206 BARCELLOS, Ana Paula de. A Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais: O princípio da dignidade da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 248-249.

Ao assumir a condição de princípio fundamental, a dignidade serve como justificação moral e fundamento jurídico-normativo dos direitos fundamentais. Segundo Luís Roberto Barroso, a dignidade funciona como fonte de direitos e de deveres, incluindo direitos não enumerados de forma expressa pelo texto constitucional, mas que são reconhecidos como parte das sociedades democráticas maduras. Além disso, a dignidade informa a interpretação dos direitos constitucionais, auxiliando na definição de seu alcance em casos concretos.207

Ao explorar as dimensões da dignidade, Ingo Wolfgang Sarlet aponta para o seu caráter irrenunciável e inalienável. A dignidade não pode ser criada, concedida ou retirada, ainda que possa vir a ser indevidamente violada. Como atributo inerente a todas as pessoas (dimensão ontológica da dignidade), a dignidade não comporta discricionariedade em seu reconhecimento.208

Por outro lado, a dignidade também deve ser assegurada em sua dimensão comunitária ou social. Uma vez que todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos (artigo 1° da DUDH), a dignidade precisa ser tutelada no âmbito da intersubjetividade e da pluralidade, assegurando que os indivíduos sejam tratados com igual consideração e respeito por parte do Estado e da sociedade.209

Marina C. Bodin de Moraes identifica os princípios da igualdade, da integridade psicofísica, da liberdade e da solidariedade como corolários da dignidade humana. A autora defende que essa decomposição permite solucionar conflitos entre situações jurídicas subjetivas que tenham amparo em um dos referidos princípios através da ponderação em favor do conceito da dignidade: “somente os corolários, ou subprincípios em relação ao maior deles, podem ser relativizados, ponderados, estimados. A dignidade [...] vem à tona no caso concreto, quando e se bem feita aquela ponderação”.210

O princípio da igualdade será abordado no próximo tópico deste trabalho. No tocante ao princípio da integridade psicofísica, Moraes assinala que estão contemplados tradicionalmente em seu âmbito de proteção o direito de não ser torturado e certas garantias penais, como a proibição de sujeição do indivíduo a penas cruéis. Na esfera cível, a integridade

207 BARROSO, Luís Roberto. A Dignidade da Pessoa Humana no Direito Constitucional Contemporâneo: A Construção de um Conceito Jurídico à Luz da Jurisprudência Mundial. 2º reimpressão. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2013, p. 66.

208 SARLET, Ingo Wolfgang. As dimensões da dignidade da pessoa humana: construindo uma compreensão jurídico-constitucional necessária e possível. Revista Brasileira de Direito Constitucional, São Paulo, p. 361- 388, jan./jun. 2007, p. 366-369. Disponível em: <https://bdjur.stj.jus.br/jspui/bitstream/2011/27252/dimensoes_ dignidade_pessoa_humana.pdf>. Acesso em: 07 ago. 2018.

209 Ibidem, p. 369-373.

210 MORAES, Maria Celina Bodin de. O conceito de dignidade humana: substrato axiológico e conteúdo normativo. In: SARLET, Ingo Wolfgang et al (Coord.). Constituição, Direitos Sociais e Direito Privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 107-149, p. 119.

psicofísica tem ampliado o seu alcance, servindo de garantia para numerosos direitos de personalidade. Os maiores dilemas quanto à efetividade do princípio da integridade psicofísica permanecem atrelados ao ramo do “Biodireito” em face do avanço da biotecnologia e de suas consequências para a esfera psicofísica do ser humano.211

A tutela do princípio da integridade psicofísica das mulheres no Brasil tem como marco jurídico fundamental a Lei Maria da Penha que estabelece mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Além disso, importantes Convenções internacionais já incorporadas ao ordenamento jurídico brasileiro asseguram a proteção da integridade psicofísica das mulheres, a exemplo da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres, de 1979, e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, de 1994.

A liberdade surge como corolário da dignidade em sua dimensão ontológica, consubstanciando-se no livre exercício da vida privada. “Liberdade significa, cada vez mais, poder realizar, sem interferência de qualquer gênero, as próprias escolhas individuais, mais, o próprio projeto de vida, exercendo-o como melhor convier.”212

Como desdobramento da liberdade, a autonomia fundamenta o livre arbítrio dos indivíduos, lhes permitindo buscar, por conta própria, o ideal de viver bem e de ter uma vida boa. Uma pessoa autônoma define as regras que vão reger a sua própria vida, pressupondo como condições a capacidade, a independência e a escolha. A autonomia é parte da liberdade individual de cada pessoa que não pode ser suprimida por interferências sociais ou estatais por abranger as decisões pessoais mais básicas.213

A liberdade e a autonomia, todavia, não se sustentam se o direito não assegurar a integridade psicofísica de todas as pessoas como condição indispensável a uma existência digna e ao exercício dos direitos de personalidade e de bem-estar.214

Mas, como já dito, o direito hoje não encontra o seu valor fundamental na vontade individual das pessoas. Os ideais de humanidade e de dignidade, consolidados nas Constituições do Século XX, dão novo suporte ao direito que agora conclama os Poderes Públicos a uma atuação promocional, calcada na realização da justiça distributiva. Nesse

211 BARROSO, Luís Roberto. A Dignidade da Pessoa Humana no Direito Constitucional Contemporâneo: A Construção de um Conceito Jurídico à Luz da Jurisprudência Mundial. 2º reimpressão. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2013, p. 82.

211 MORAES, Maria Celina Bodin de. O conceito de dignidade humana: substrato axiológico e conteúdo normativo. In: SARLET, Ingo Wolfgang et al (Coord.). Constituição, Direitos Sociais e Direito Privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 107-149, p. 127.

212 Ibidem, p. 138.

213 BARROSO, Luís Roberto. Op. Cit., p. 82. 214 Ibidem, p. 127.

contexto, a solidariedade surge como princípio constitucional indispensável à realização da dignidade em sua dimensão comunitária.

A Constituição de 1988 trata da solidariedade social como objetivo fundamental da República Federativa do Brasil (Artigo 3º, inciso I). Inserida de forma programática no texto constitucional, a solidariedade visa alcançar uma “igual dignidade social” para todas as pessoas, garantindo “uma existência digna, comum a todos, em uma sociedade que se desenvolva como livre e justa, sem excluídos ou marginalizados.”215

O espírito da solidariedade conduz a busca pela melhoria da qualidade de vida de todas as pessoas. Consequentemente, exige que a vulnerabilidade humana seja tutelada, sobretudo em relação aos grupos sociais mais frágeis que necessitam de especial proteção da lei. Enquanto princípio constitucional, a solidariedade deve orientar a elaboração das leis e das políticas públicas, bem como a interpretação e aplicação do direito, como forma de assegurar a realização da igualdade substancial e da justiça social.