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CAPÍTULO 2 INCLUSÃO SOCIAL DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA

2.3 O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

2.3.2 A dignidade pela norma

Nem sempre é possível que os valores sociais sejam o agente de mudança da consciência dos indivíduos de determinada sociedade sobre certas situações concretas. Por isso, há de se ter atenção que a norma, enquanto elemento compulsório, representa a harmonização de certos elementos que não se solidificaram na cultura, ou na medida do desenvolvimento

80 Em sentido próximo a este raciocínio, v. MONIZ, Idália. Melhorar a Qualidade de Vida das Pessoas com

deficiência em Portugal, Lisboa: Cadernos Sociedade e Trabalho, n.º 8. Ministério do Trabalho e da Solidariedade

Social. DGEEP/MTSS, 2007. p. 245. Trecho interessante do estudo merece destaque, a saber: “A deficiência não pode ser encarada como uma fatalidade. Todos somos responsáveis pela remoção dos obstáculos sociais e físicos. A sociedade em geral tem que promover ambientes inclusivos. O modelo de intervenção assistencialista e caritativo é uma realidade passada, em que a integração das pessoas com deficiência não era defensável através de direitos. Temos que reconhecer e promover o direito fundamental à igualdade como parte estruturante e integrante do nosso modelo social”.

81 A cultura e a cosmovisão dos indivíduos, como dito, podem sofrer evoluções ou reveses. Comentário interessante

encontramos na obra de António Manuel Hespanha sobre a ordem e a desigualdade, que num sentido próximo, colabora com nossa proposta de análise dos movimentos valorativos da sociedade: “Esta ideia de que todos os seres se integram, com igual dignidade, na ordem divina, apesar das hierarquias aí existentes, explica a especialíssima relação entre humildade e dignidade que domina o pensamento social e político da Europa medieval e moderna. O humilde deve ser mantido na oposição subordinada e de tutela que lhe corresponde, designadamente na ordem e governo políticos. Mas a sua aparente insignificância esconde uma dignidade igual à do poderoso. E, por isso, o duro tratamento discriminatório no plano social (na ordem da natureza, do direito) é acompanhado de uma profunda solicitude no plano espiritual (no plano da graça, da caridade, da misericórdia). Este pensamento – que se exprime na parábola evangélica dos lírios do campo e se ritualiza nas cerimónias dos lava pés – explica, ao lado das drásticas medidas de discriminação social, jurídica e política dos humildes (miserabiles pessoae, pobres, mulheres, viúvas, órfãos, rústicos, indígenas africanos ou americanos), a protecção jurídica e a solicitude paternalista dos poderes para com eles, protecção que inclui uma especial tutela do príncipe sobre os seus interesses: foro especial, tratamento jurídico mais favorável (favor), por exemplo em matéria de desculpabilização perante o direito penal, de prova, de presunção de inocência ou de boa fé”. HESPANHA, António Manuel -

Cultura jurídica européia: síntese de um milênio, Florianópolis: Fundação Boiteux, 2005. p. 110. Sem temer o

erro, o exemplo trazido por Hespanha pode ter a deficiência incluída no rol do tratamento discriminatório narrado por ele.

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histórico-político; sendo assim, a norma é o meio adequado da manutenção de direitos e garantias que poderiam levar muitos anos para serem efetivados. Pensamos ser o caso da dignidade das pessoas com deficiência a partir da norma, que num primeiro momento é abstrata, mas que logo produz desejável alcance material, concreto.

Imaginemos a dignidade como um princípio supremo da ordem jurídica82. A dignidade, portanto, deveria ser um princípio ou postulado acima de ideologias ou filosofias partidárias. Não existe, assim, um detentor da dignidade humana; não existe um grupo que possa afirmar-se como arautos da dignidade – esta é assente na ordem jurídica, mas, sobretudo, na ordem da existência humana.

Obviamente, não ignoramos o fato das tensões existentes entre um direito a ser tutelado e a invocação do princípio da dignidade humana para o caso concreto. O que seria desarrazoado é a invocação da dignidade humana e sua interpretação, segundo regras (e valores) que vituperam o seu conteúdo basilar, criando hipóteses discordantes e arbitrárias83.

Tal como o instituto do dano moral, não deveria ser invocado por meros dissabores cotidianos, a ofensa à dignidade humana, não deveria ser invocada ante situações que envolvem problemas regulares da vida, previsíveis quanto ao modo como se apresentam.

Embora saibamos das atrocidades cometidas entre as guerras do início do século XX e regimes ditatoriais que cometeram as maiores atrocidades conhecidas na História humana foram realizadas (e ainda são), não se justifica o excesso de proteção de políticas públicas realizadas pelo Estado, que provoca descrédito quanto ao conteúdo daquilo que seria o sentido da dignidade humana. Em outras palavras, a dignidade deve ser defensável por aquilo que é o sentido ontológico para a qual foi criada.

Escusamo-nos dos detalhes fáticos para não se cometer injustiças, mas afirmando que a norma deve acolher aquilo que é digno, e não aquilo que pareça interessante e especial aos olhos da Ciência Jurídica.

A deficiência é: não é um estado momentâneo (em regra), um mero objeto de estudo. A norma, por conseguinte, deve proteger esta condição permanente dos indivíduos com deficiência, embora sendo iguais a todo e qualquer ser humano, estão numa desvantagem – que pode ser fruto de muitos fatores, como genéticos, físico-químicos, de violência, de guerra, de ordem psíquica etc. – e esta é a diferença quando a norma acolhe estes indivíduos, numa

82 NOVAIS, Jorge Reis - A Dignidade da Pessoa Homana: dignidade e direitos fundamentais, Coimbra:

Almedina, 2018. p. 9.

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tentativa de dar-lhes dignidade jurídica, pois a dignidade suprema já está inserida em suas vidas, a iniciar-se pela concepção e prolongar-se no nascimento e desenvolvimento do ser. Infelizmente, como referido em linhas anteriores, a cosmovisão da sociedade criou o estigma do incapaz.

Seria, assim, a norma o elemento que resta para compensar as desigualdades sociais que insistem perdurar, existir. No caso em estudo, a política de inclusão social pelo trabalho é a tentativa real de compensar pessoas, indivíduos, que de fato são, e não apenas estão.