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Igualdade, deficiência e discriminação positiva

CAPÍTULO 2 INCLUSÃO SOCIAL DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA

2.2 O PRINCÍPIO DA IGUALDADE

2.2.3 Igualdade, deficiência e discriminação positiva

No âmbito do Direito, a igualdade é, em apertada síntese, a não discriminação de pessoas que encontram-se em situação desigual, conhecida como discriminação positiva. 68

A igualdade como princípio ou como postulado elege valores reais para afastar- se a discriminação das pessoas com deficiência. Quando a lei proporciona direitos e deveres a um grupo em especial, quer, com isso, elencar certos valores que não poderiam de outro modo serem efetivados, dada a desigualdade fática que o problema concreto apresenta.

Pode-se dizer que no plano normativo o legislador reforça certos preceitos para o cumprimento de políticas públicas em favor das pessoas com deficiência, com o objetivo de afastar a discriminação deste grupo e, assim, garantir o cumprimento dos direitos e deveres inerentes ao caso concreto. Por exemplo, quando o legislador cria a garantia de cotas69 no

serviço público para as pessoas com deficiência está garantindo que o intérprete e o aplicador do Direito possam perceber a substância do valor que está em causa, dando-lhes uma direção para que ponderem tal valor e, deste modo, apliquem ao caso concreto a materialização do Direito garantido.

No plano cultural, o princípio da igualdade serve como aglutinador ou mesmo como correção das situações desiguais que a diferença possa criar70. Na verdade, o Estado e

67 Em sentido próximo, v. CANOTILHO, J. J. Gomes, Op. cit., pp. 567 e 568; diz-nos o autor: “Esta igualdade

conexiona-se, por um lado, com uma política de “justiça social” e com a concretização das imposições constitucionais tendentes à efectivação dos direitos económicos, sociais e culturais […] Por outro, ela é inerente à própria ideia de igualdade dignidade social (e de igual dignidade da pessoa humana) consagrada no artigo 13.º/2 que, deste modo, funciona não apenas com fundamento antropológico-axiológico contra discriminações, objectivas ou subjectivas, mas também coo princípio jurídico-constitucional impositivo de compensação de desigualdade de oportunidades e como princípio sancionador da violação da igualdade por comportamentos omissivos (inconstitucionalidade por omissão)”.

68 O termo comumente utilizado no Brasil é “discriminação negativa”, embora se encontre em literatura diversa o

termo “discriminação positiva”, este último mais difundido em Portugal e Europa.

69 O sistema de cotas no ordenamento português para o acesso das pessoas com deficiência no serviço público foi

introduzido pelo DL n.º 29/2001, de 3 de fevereiro. Para aprofundamento da questão e comentários históricos v. SANTOS, Rodrigo Godinho - O sistema de quotas para pessoas com deficiência no acesso ao emprego

público: ontem, hoje…e amanhã? pp. 169-192. No Brasil, embora tenha havido a recepção de diversos tratados

internacionais sobre o tema “deficiência”, a questão das cotas foi apenas idealizada com a Lei 13.146 de 06 de julho de 2015, a chamada Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência – LBI (Estatuto da Pessoa com Deficiência).

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jurisdicionados deverão, por via transversa, afastar a discriminação e promover a igualdade de condições para aqueles que sofram de alguma deficiência ou incapacidade, elementos esses que por si só criam obstáculos à efetivação do Direito e da justiça.

Tais elementos formais e materiais estão presentes nas Constituições modernas, como a brasileira (Art. 7º, inciso XXXI) e portuguesa (Art. 13.º, n.º 1), numa espécie de discriminação positiva que amplia certos direitos e reforça não só a igualdade formal, mas também a igualdade material entre os indivíduos.

Para o que aqui nos interessa, a igualdade de condições requer a confrontação de duas hipóteses: a não discriminação dos indivíduos portadores de deficiência e, ao mesmo tempo, a discriminação positiva por parte do Estado e dos agentes envolvidos para promover justamente a não discriminação stricto sensu, dada a situação (circunstância) que provoca a dicotomia “não discriminação” e “discriminação positiva”, embora a discriminação positiva deva estar defesa em lei71. Referimo-nos ao Estado por este ser o detentor das regras

legislativas, ao passo que aos jurisdicionados cabe aceitar a discriminação positiva como o elemento ponderador da desigualdade que se apresenta.

Esta quebra da legalidade aparente está em consonância com nossa proposição, na medida em que certas situações justificam ou autorizam tal mitigação da igualdade formal em homenagem à concretude dos deveres preliminares que dependem das possibilidades fáticas e, ao mesmo tempo, definem que “o vínculo demonstrável seja constitucionalmente pertinente”72. Em outras palavras, a justificação da discriminação positiva nasce da regra constitucional preestabelecida, ao mesmo tempo em que se justifica o acolhimento de um postulado fundamental para o exercício pleno da cidadania pelos portadores de deficiência.

Por último, referencia-se que nem todas as necessidades das pessoas com deficiência poderiam ser objeto de tutela na questão laboral de forma homogênea, a compensar dificuldades imanentes, pois em cada situação há-de se ponderar as possibilidades fáticas e normativas.

71 MELLO, Celso Antônio Bandeira de - Conteúdo jurídico do princípio da igualdade. . São Paulo: Malheiros

Editores, 3ª edição, 8ª tiragem, 2000. p. 45. Diz-nos o autor: “Não se podem interpretar como desigualdades

legalmente certas situações, quando a lei não haja ‘assumido’ o fator tido como desequiparador. Isto é,

circunstâncias ocasionais que proponham fortuitas, acidentais, cerebrinas ou sutis distinções entre categorias de pessoas não são de considerar. Então, se a lei se propôs distinguir pessoas, situações, grupos, e se tais diferenciações se compatibilizam com os princípios expostos, não há como negar os discrimens. Contudo, se a distinção não procede diretamente da lei que instituiu o benefício ou exonerou de encargo, não tem sentido prestigiar interpretação que favoreça a contradição de um dos mais solenes princípios constitucionais”.

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É importante, porém, salientar na mesma linha de raciocínio utilizada outrora, que a diferenciação no tratamento das pessoas com deficiência e aquelas tidas como normais é uma permissão baseada segundo critérios de valor objetivo constitucionalmente relevantes. Assim, a discriminação positiva (ou negativa, como utilizado preferencialmente por autores brasileiros) é, na análise proposta, a concretização das políticas públicas realizadas pelo Estado para corrigir desigualdades, retirando-o de uma posição de neutralidade para a efetivação do Estado social. Aos jurisdicionados (sociedade no sentido amplo do termo) caberá cumprir a proposta do Estado social, e não apenas cumprir, é necessária a mudança de consciência com uma nova cultura de integração, como, por exemplo, as cotas nas empresas privadas para deficientes e mesmo a adaptação das estruturas organizacionais, com o intuito de apoiar as necessidades específicas destes grupos73.