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A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E O NOVO SISTEMA ÉTICO DE REFERÊNCIA MUNDIAL.

3 OS DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS: DA PROGRAMATICIDADE À JURIDICIDADE.

3.3 A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E O NOVO SISTEMA ÉTICO DE REFERÊNCIA MUNDIAL.

É unânime a doutrina quanto à dificuldade de se definir um dos conceitos mais essenciais do Constitucionalismo: a dignidade humana. Como indica Maria Celina Bodin de Moraes138, passados mais de 15 anos da promulgação da Constituição, a doutrina se aprofunda e se avolumam o número de obras editadas na busca de um conceito reconhecidamente vago, fluido, indeterminado, polissêmico e de uso indiscriminado.

Essa dificuldade de conceituação pode ser verificada na feliz expressão de Ingo Sarlet139, para quem, mesmo não havendo dúvidas que a dignidade é algo real, parece ser mais fácil dizer o que ela não é, do que expressar o que ela é140.

Na construção do conceito de dignidade recorre-se à Filosofia, à Política e à História, não cabendo ao ordenamento jurídico determiná-lo, definir suas características ou avaliar a dignidade141.

Além disso, a dignidade da pessoa humana apresenta-se como uma “categoria axiológica aberta”, não podendo ser definida de maneira “fixista”, posto que “não se harmonizaria com o pluralismo e a diversidade de valores que se manifestam nas sociedades democráticas contemporâneas”, mas sim um conceito em constante concretização e delimitação pela práxis constitucional. Mesmo assim, a necessidade de um conceito minimamente objetivo se impõe em face da exigência de um certo grau de segurança e estabilidade jurídica142.

Como nos alerta Eduardo C. Bittar143, ainda que a vagueza da expressão represente um desafio insuportável para a razão dos céticos, deve-se superar a sensação de beco, de encruzilhada sem direção, por uma outra, pois dignidade

138

MORAES, Maria Celina Bodin de. O conceito de dignidade humana: substrato axiológico e conteúdo normativo. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Constituição, direitos fundamentais e Direito Privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2003, p. 107/108, 111.

139

SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais. 8ª Ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Ed., 2010, p. 48.

140

Como registra BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos Princípios Constitucionais: o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 254; “não há quem possa, sem seriedade intelectual, afirmar, por exemplo, que uma pessoa tem sua dignidade respeitada se não tiver o que comer ou o que vestir, se não tiver oportunidade de ser alfabetizada, se não dispuser de alguma forma de abrigo”.

141

MORAES, ibidem, p. 116. 142

SARLET, ibidem, p. 49 e 67. 143

BITTAR, Eduardo. C. Hermenêutica e Constituição: a dignidade da pessoa humana como legado à pós-Modernidade. In: FILHO, Agassiz Almeida; MELGARÉ, Plínio (orgs.). Dignidade da pessoa humana (fundamentos e critérios interpretativos). São Paulo: Malheiros, 2010, p. 253.

humana é, antes de tudo, uma expressão que serve como fundamento do Direito e do próprio Estado, norte das ações governamentais, télos das políticas sociais, princípio hermenêutico, diretriz para a legislação infraconstitucional, base para a aplicação judicial dos direitos, ponto de partida para a leitura do ordenamento jurídico, foco de dispersão com o qual se deve construir a proteção da pessoa humana, núcleo de sentido das práticas jurídicas e fundamento para a criação de instrumentos de proteção da pessoa humana.

A noção de dignidade sempre permeou o pensamento humano. Sua ideia “é a convergência de diversas doutrinas e concepções de mundo que vêm sendo construídas desde longa data na cultura ocidental”; não está ausente do pensamento grego e ganha alento com o cristão, com a cultura de que todos são iguais perante a criação144.

De fato, podemos observar que, durante a própria evolução da sociedade até os dias de hoje, a percepção de “dignidade” também veio sofrendo mutações, perpassando da noção social, à metafísica, até a racional.

Na Antiguidade Clássica, a dignidade (dignitas) era um atributo social, um conceito atrelado à cidadania. Representava a posição ocupada pelo indivíduo na sociedade, o seu grau de reconhecimento pelos demais membros da comunidade; havendo, portanto, pessoas mais ou menos dignas145 que outras. Dignus é aquele que merece estima e honra, aquele que é importante146.

A partir das formulações do jurisconsulto e filósofo romano Marco Túlio Cícero, desenvolveu-se a compreensão da dignidade considerada além da concepção dada pela posição social ocupada pelo indivíduo na Antiguidade Clássica, coexistindo com uma forte vinculação à imposição natural, pois, se todos nascem submetidos às mesmas leis naturais, seria vedado que uns prejudicassem a outros. A dignidade passa a ser entendida também como a pretensão de respeito e consideração a que cada ser humano faz jus (sentido moral)147.

O Cristianismo foi o responsável por atribuir um sentido moral ou divino à dignidade, ou seja, pela concepção de uma dignidade advinda da relação individual com Deus, sendo o homem centro da criação148, imagem e semelhança de Deus149. 144 BITTAR, ibidem, p. 239/266. 145 SARLET, ibidem, p. 32. 146 MORAES, ibidem, p. 107. 147 SARLET, ibidem, p. 33. 148 MORAES, ibidem p. 112.

De inspiração jusnaturalista, entendia-se que o homem possuía direitos básicos e naturais que deveriam ser respeitados, inclusive impondo limitação ao poder absolutista e monárquico150.

Contudo, como observa Eduardo C. Bittar151, são os filósofos modernos que darão uma configuração mais precisa para o tema, sendo Immanuel Kant o “portal do Iluminismo” e o “referencial teórico da Modernidade”. Para Mariana Filchtiner Figueiredo152, a Modernidade quebraria a lógica da dignidade derivada “da imagem de Deus”, na medida em que o humanismo característico desse período revalorizaria o homem, colocando-o no “centro do mundo”.

Maria Celina Bodin de Moraes 153 refere que, em 1486, as ideias de Giovanni Pico, Conde de Mirandola, proferidas na “Oratio de Hominis Dignitate” – texto considerado o discurso fundador do renascimento humanista, o primeiro horizonte da Modernidade –, vinculavam a dignidade humana ao compromisso com a valorização filosófica do homem, não referindo à necessária e habitual relação de subordinação, de causa e consequência, entre criador e criatura dos textos anteriores (sentido metafísico); tanto que suas teses foram consideradas heréticas pelo Papa Inocêncio VIII, muito embora viesse a ser absolvido posteriormente pelo Papa Alexandre IV.

Pico reconhecia o homem como criatura de Deus, mas afirmava que a ele fora atribuída uma natureza indefinida para que fosse seu próprio árbitro, soberano e artífice, capaz de ser e obter aquilo que ele próprio quer e deseje154.

Ingo Sarlet155 registra, no entanto, que apenas por Samuel Pufendorf foi possível encontrar uma ruptura definitiva com a tradição metafísica anterior e a elaboração de uma formulação tipicamente secular e racional da dignidade humana. Para Pufendorf, a dignidade não está fundada na natureza, no prestígio social nem numa concessão divina, mas sim na liberdade do ser humano de optar de acordo com a sua razão e agir conforme o seu entendimento, cabendo ao monarca respeitar essa condição.

149

SARLET, ibidem p. 34. 150

SERRANO, Mônica de Almeida Magalhães. O Sistema único de Saúde e suas diretrizes constitucionais. São Paulo: Verbatim, 2009, p. 11.

151

Ibidem, p. 247. 152

FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Direito Fundamental à Saúde – parâmetros para sua efetividade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 48.

153 Ibidem , p. 114. 154 SARLET, idem, p. 35. 155 Ibidem, p. 35/36.

Já com Immanuel Kant (em “Crítica da Razão Prática”, de 1788), o processo de secularização do conceito de dignidade se completa, servindo como base doutrinária até os dias de hoje. Abandonando-se completamente as “vestes sacrais”, com base na autonomia ética do ser humano e na sua natureza racional, “dignidade” seria entendida então como o atributo exclusivo da pessoa humana, como a faculdade de determinar a sim mesmo e agir conforme certas leis. Para Kant, o homem é o fim em si mesmo e não como meio de uso arbitrário dessa ou daquela vontade; repudiando-se toda e qualquer forma de coisificação e instrumentalização do ser humano. Quando uma coisa não tem preço, quando está acima de todo o preço e, portanto, não permite equivalente, ela tem dignidade156.

Apresentadas a construção histórica e a referida dificuldade na definição de seu conceito, ateremo-nos à proposição de Ingo Sarlet157 para a dignidade humana; nos seguintes termos:

Qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sai participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos, mediante o devido respeito aos demais seres quer integram a rede da vida.

Muito embora a noção mais precisa da dignidade tenha sido construída pela Modernidade, Eduardo C. Bittar158 conclui que ela é uma herança para a Pós- Modernidade, na medida em que perpassa por uma compreensão não-unilateral das culturas, projetando-se para fora das fronteiras e distinções regionais, para alcançar o plano das relações entre os povos, com profundo respeito às diferenças e afirmação das multiculturalidades; só havendo, portanto, dignidade quando a própria condição humana é entendida, compreendida e respeitada em suas diversas dimensões, o que impõe a expansão da consciência ética como prática diuturna de respeito à pessoa humana.

A dignidade passa assim a ser entendida definitivamente como uma inerência do ser humano enquanto sujeito de direitos, simplesmente entendido enquanto “ser”.

156 SARLET, ibidem, p. 37/42. 157 Ibidem, p. 70. 158 Ibidem, p. 263/264.

Nas palavras de Mariana Filchtiner Figueiredo159, a dignidade é compreendida como “qualidade intrínseca de todo o ser humano”, sendo “irrenunciável e inalienável, qualificando-o como tal e dele não podendo ser destacada”. Como consequência, todas as normas decorrentes da vontade legisladora dos homens precisam ter como finalidade o homem, a espécie humana enquanto tal160.

Assim, a dignidade da pessoa humana passa a ser o fundamento, o ponto de convergência, da ordem jurídica internacional do pós Segunda Guerra Mundial, e da qual a maioria das nações do mundo ocidental hauriram o substrato constitucional de suas ordens internas.

O imperativo categórico kantiano informa-se pelo valor básico, absoluto, universal e incondicional da dignidade humana, a qual inspira a regra ética maior, de respeito pelo outro, torna-se comando jurídico no Brasil, com a Constituição de 1988161, assim como o fez em outras partes, especialmente com o término da Segunda Grande Guerra Mundial, em reação às atrocidades cometidas pelo nazi- facismo, que foram encartadas na Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948162.

A partir da Declaração Universal de 1948, a dignidade passa a ser inerente a todos os membros da família humana e tudo que tenda a desumanizar o homem será considerado como um atentado a esta dignidade163.

De fato, como observa Jorge Reis Novais164 no Estado Social, a dignidade da pessoa humana não é mais a do “individualismo possessivo, a do homem burguês e isolado”, que garantia uma esfera de autonomia livre de qualquer intervenção

159

Ibidem, p. 52. 160

MORAES, Maria Celina Bodin de. O conceito de dignidade humana: substrato axiológico e conteúdo normativo. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Constituição, direitos fundamentais e Direito Privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2003, p. 115/116.

161

Muito embora a dignidade da pessoa humana esteja alçada como fundamento da República Federativa do Brasil (art. 1º, III), isso ocorreu apenas na Constituição brasileira de 1988; MATEUS, Cibele Gralha. Direitos fundamentais Sociais e relações privadas (o caso do direito à saúde na Constituição Brasileira de 1988). Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 44/45; registra que a Constituição brasileira de 1934, inspirada no Constitucionalismo Social emergente na Europa, previu, pela primeira vez no Constitucionalismo brasileiro, um capítulo dedicado à ordem econômica e social, vinculando-o diretamente à garantia de uma “vida digna” (art. 115), muito embora no período histórico no qual estava inserida aquela Constituição (Estado Novo), um regime político ditatorial, consideravam-se direitos constitucionalmente assegurados como “mera previsão”.

162

MORAES, ibidem, p. 115/116. 163

PAVIA, Marie-Lucie. La dignite de la personne humaine. In: CABRILLAC, Rémy; FRISON-ROCHE, Marie-Anne; REVET, Thierry (org.). Libertés et droits fondamentaux. 6 ed. Paris: Dalloz, 2000, p. 121/139; apud FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Direito Fundamental à Saúde – parâmetros para sua efetividade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 50.

164

NOVAIS, Jorge Reis. Os princípios constitucionais estruturantes da República Portuguesa. Coimbra: Coimbra Ed, 2011, p. 53, 56.

estatal; mas sim aquela própria de um indivíduo comunitariamente integrado e condicionado, titular de direitos fundamentais oponíveis ao Estado e aos concidadãos, socialmente vinculado ao cumprimento de direitos e obrigações que a decisão popular soberana lhe impõe como condição de possibilidade de realização da dignidade e dos direitos de todos. No Estado de Direito de nossos dias são as ideias do pluralismo, tolerância, neutralidade confessional e inclusividade, baseadas na igual liberdade e dignidade de cada um, que mais adequadamente correspondem à atualização do ideal de racionalização e limitação jurídica do Estado com vista à garantia dos direitos e liberdades fundamentais.

Osvaldo Canela Júnior165 assenta que o descaso com os direitos fundamentais sociais perdurou até o fim da 2ª Guerra Mundial, quando as nações mundiais se reuniram para declarar, em 1948, que o homem era o centro de irradiação contínua de direitos não suscetíveis de restrição, senão por consenso de toda a comunidade e com vistas à proteção do bem comum, e que a dignidade humana era o bem maior da humanidade, seu bem soberano; sendo adotado um novo “sistema ético de referência” a ser institucionalizado nas diversas Constituições.

Realmente, para Ingo Sarlet166, a partir da 2ª Guerra Mundial, a dignidade humana passou a ser reconhecida expressamente nas Constituições, após ter sido consagrada pela Declaração Universal, de 1948.

Como afirma Jorge Reis Novais167, mesmo sendo formalmente acolhido no texto constitucional, adquirindo foros de relevância jurídica e força normativa; o princípio da dignidade da pessoa humana não perde a sua feição de valor moral legitimador da força normativa da Constituição de um Estado de Direito Material.

Com base na “formula do objeto”, de clara inspiração kantiana, que passou a ser adotada pelo Tribunal Constitucional Alemão do pós-2ª Guerra Mundial, Novais168 informa que a pessoa será inconstitucionalmente degradada e coisificada quando o Estado a afete desnecessária, fútil ou desproporcionalmente ou quando se proceda a uma “instrumentalização da autonomia individual” ou uma “redução objetiva das oportunidades de livre desenvolvimento da personalidade” que não

165

CANELA JÚNIOR, Osvaldo. Controle judicial de políticas públicas. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 32, 116. 166 SARLET, ibidem, p. 72. 167 Ibidem, p. 51. 168 NOVAIS, idem, p. 57.

sejam justificadas pela estrita necessidade de realização de fins, valores ou interesses dignos de proteção jurídica” e “efetuadas segundo procedimentos e com sentido e alcance constitucionalmente conformes.

Segundo Flávia Piovesan169, no processo de reconstrução dos direitos humanos, do pós-2ª Guerra Mundial, encontramos, de um lado, a emergência do Direito Internacional dos Direitos Humanos, e, de outro, a nova feição do Direito Constitucional ocidental, em resposta ao impacto das atrocidades então cometidas. Como consequência, tanto no âmbito internacional, quanto no interno, a dignidade da pessoa humana é o princípio que unifica e centraliza todo o sistema normativo, assumindo especial prioridade, passando a dignidade humana a simbolizar, segundo a autora, verdadeiro superprincípio constitucional, a norma maior a orientar o constitucionalismo contemporâneo, nas esferas local e global, dotando-lhe de especial racionalidade, unidade e sentido. Sob essa ótica, a Constituição brasileira de 1988 elege o valor da dignidade humana como “valor essencial, que lhe dá unidade de sentido”, destacando-se, dentre os fundamentos que alicerçam o Estado Democrático de Direito brasileiro, a cidadania e a dignidade da pessoa humana170.

No caso específico dos direitos sociais, a adoção da dignidade enquanto princípio resulta na possibilidade de se reconhecer um direito ao mínimo existencial – conceito que aprofundaremos logo abaixo –, possibilitando, por exemplo, impor o fornecimento de prestações materiais pelo Estado, de modo a evitar que a pessoa humana seja obrigada a viver em condições de penúria extrema e, involuntariamente, transformada em “mero objeto do acontecer estatal”; como observa Jorge Reis Novais171.