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OUTROS “ATIVISMOS” QUE NÃO VÊM GANHANDO TANTA OPOSIÇÃO DOUTRINÁRIA.

4 O ATIVISMO JUDICIAL E A JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA.

4.4 OUTROS “ATIVISMOS” QUE NÃO VÊM GANHANDO TANTA OPOSIÇÃO DOUTRINÁRIA.

Como vimos, o “ativismo judicial” guarda proporção histórica com a assunção do Poder Judiciário à condição de autêntico Poder de Estado, em igualdade de condições com o Executivo e o Legislativo.

Esse desenvolvimento histórico perpassa o pós-Revolução Francesa, o declínio do Estado Legislativo e teve seu ápice durante o Welfare State, no qual a legiferância não atendeu às inúmeras e diversas demandas sociais.

O Judiciário, outrora alçado ao status de guardião da constitucionalidade das leis e dos atos e omissões dos demais Poderes, foi chamado a decidir sobre “casos difíceis”, aplicar princípios, interpretar cláusulas abertas e indeterminadas, obrigar a Administração Pública ao cumprimento de prestações materiais ligadas a direitos sociais; enfim, a adotar uma postura cada vez mais ativa, proativa, intervencionista, construtiva e criadora de direito, na tutela de direitos fundamentais.

Essa nova postura do Judiciário – diametralmente oposta àquela típica do Estado Liberal – causou grande impacto no Direito e na Sociedade, na medida em que, ao suprir a ineficiência, omissão e ineficácia dos demais Poderes, passou a ser enxergado como último bastião da cidadania.

Desamparado pela classe política e pelos governantes, o cidadão carente não vê alternativas senão as demandas judiciais injuntivas contra o Poder Público para ver realizados direitos básicos, muitas vezes ligados à dignidade da pessoa humana e ao mínimo existencial, a exemplo do direito à saúde.

O protagonismo judicial na efetivação da vontade constitucional e o consequente prestígio decorrente da aplicação do princípio da igualdade em sua

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vertente substancial não vêm agradando a diversos setores, antes tidos como os únicos agentes de transformação social.

O uso retórico e ideológico da expressão “ativista” é o símbolo que marca as decisões judiciais que ousam enveredar pelo campo das “political questions” e abalar o paradigma da separação de poderes, questionando-se a legitimidade desses julgados.

O “ativismo judicial” passa a ser tema de amplo debate doutrinário no universo jurídico, tanto por seus opositores, quanto pelos interessados em lapidar a atuação “agigantada” do Judiciário, adaptando-a a critérios razoavelmente científicos.

Através do resgate histórico, foi possível verificar o aproveitamento intencional da imprecisão conceitual que marca a expressão “ativista”, desde o nascedouro, com o objetivo de tachar pejorativamente determinadas decisões judiciais progressistas e concretizadoras de direitos fundamentais sociais, primando- se pela disseminação do desentendimento e de definições ideológicas apaixonadas, em detrimento do esclarecimento metodológico, que vem prejudicando a promoção de um debate verdadeiro sobre a legitimidade da atuação do Judiciário no controle da constitucionalidade; como bem observam Dimitri Dimoulis e Soraya Gasparetto Lunardi270.

Contudo, podemos observar, pelas críticas dirigidas às decisões judiciais tidas como “ativistas”, que o ponto de insatisfação reside especificamente naquelas que determinam ao Poder Público a promoção ou mesmo a própria realização de direitos fundamentais de cunho social, ou seja, aquelas medidas de efetivação do princípio da igualdade em sua vertente material.

Noutros termos, a objeção teórica em relação ao “ativismo judicial” incide somente sobre aquelas decisões judiciais que determinam a efetivação de medidas governamentais que se prestam a promoção social, que são dirigidas à oferta de verdadeiras condições materiais à ampla parcela da população, outrora espoliada pela desequilibrada relação capital-trabalho, durante o absenteísmo do Estado Liberal, e que agora reivindica sua parcela de participação com igualdade de condições na vida social.

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DIMOULIS, Dimitri; LUNARDI, Soraya Gasparetto. Ativismo e Autocontenção judicial no controle de Constitucionalidade. In: FELLET, André Luiz Fernandes; PAULA, Daniel Giotti de; NOVELINO, Marcelo (orgs.). As novas faces do ativismo judicial. Salvador: Juspodium, 2011, p. 460.

Por via reversa, outros fenômenos institucionais, ligados ao agigantamento de funções, com igual potencial de questionamento quanto à legitimidade e suposta violação ao princípio da separação de poderes, não recebem a mesma atenção e oposição dos puristas teóricos; permitindo a compreensão dos verdadeiros interesses ideológicos velados pelo discurso jurídico de bloqueio social.

Não se vê, por exemplo, uma movimentação doutrinária tão expressiva a rebelar-se contra o ativismo judicial no âmbito da Justiça do Trabalho em nome da proteção do trabalhador. A sociedade e a cultura jurídica parecem apoiar os arrojos ativistas em prol desses direitos.

Nossa interpretação sobre essa questão seria a de que, como o efeito dessas decisões incidem com muito mais frequência sobre o patrimônio de particulares (empregadores), ao mesmo tempo que beneficiam uma grande massa de trabalhadores que, por sua vez, revertem o proveito econômico auferido para o consumo de bens e serviços; isso interessaria à ideologia (neo)liberal e ao Capitalismo.

Nesse mesmo aspecto, não se vê maiores resistências ao modo como a Justiça do Trabalho tem, há décadas, praticamente legislado, material e processualmente, através da expedição de “Enunciados” e “Orientações” normativas, conferindo a tais institutos, que não passaram pelo crivo da representatividade democrática, um poder normativo superior às leis em sentido formal.

Sem determo-nos em maiores detalhes, outras situações ainda mais graves, indicando uma suposta usurpação de funções constitucionais pelo Poder Judiciário se instalaram na cultura jurídica brasileira sem maiores questionamentos acerca de possível violação da separação de poderes e da legitimidade desses instrumentos271.

271

Podemos citar como exemplo o caso dos “Enunciados” oriundos das Jornadas de Direito Civil, promovidas pelo Centro de Estudos Judiciários - CEJ, do Conselho da Justiça Federal - CJF, que vêm sendo usualmente citados e obedecidos pelos magistrados como fonte de direito, mas sem qualquer respeito hierárquico às leis em sentido formal, quanto à não-aplicabilidade do art. 406 do Código Civil de 2002 para os casos de juros de mora legais, tendo como índice a Taxa SELIC, diante da previsão do Enunciado nº 20, da I Jornada de Direito Civil, do CEJ do CJF, assim assentada: “Art. 406: A taxa de juros moratórios a que se refere o art. 406 é a do art. 161, § 1º, do Código Tributário Nacional, ou seja, um por cento ao mês. A utilização da taxa Selic como índice de apuração dos juros legais não é juridicamente segura, porque impede o prévio conhecimento dos juros; não é operacional, porque seu uso será inviável sempre que se calcularem somente juros ou somente correção monetária; é incompatível com a regra do art. 591 do novo Código Civil, que permite apenas a capitalização anual dos juros, e pode ser incompatível com o art. 192, § 3º, da Constituição Federal,

Uma situação bastante marcante quanto a esse aspecto envolve as Súmulas Vinculantes, expedidas pelo Supremo Tribunal Federal - STF, consideradas uma espécie de “super-lei” de “injuntividade idêntica à de que desfrutam os preceitos da própria Constituição”, como bem revela Inocêncio Mártires Coelho272, as súmulas vinculantes, com eficácia erga omnes, obrigam os demais Poderes ao seu cumprimento e observância, podendo até mesmo inibir a propositura de projetos de lei que lhe afrontem, exceto o seu próprio órgão emissor, o STF, que pode criar, alterar ou cancelar esses enunciados normativos.

Não se vê a mesma insurgência doutrinária, como a que é dirigida contra o ativismo judicial, questionando essa espécie de legislação judicial. Ao contrário, como o próprio Inocêncio Mártires Coelho273 observa, é com tamanha naturalidade com que se aceita e se prestigia a legislação judicial, posto que já se tornou na cultura jurídica conferir à jurisprudência o status de fonte imediata do Direito, gerando expressiva produção doutrinária o tema da normatividade das decisões judiciais, assim como se tornou profícua no mundo jurídico a publicação de repertórios jurisprudenciais.

Paulo Gustavo Gonet Branco274 não enxerga como ativista a função quase- normativa, ínsita à competência jurisdicional do STF, através da edição de súmulas vinculantes; tampouco entende haver de se criticar a frequência com que o STF fiscaliza as leis e emendas à Constituição, diante da configuração legislativa dada ao controle de constitucionalidade de nosso país, que, nitidamente, tem o propósito alargador da atuação do STF.

Assim, até onde foi possível verificarmos, o cerne da questão envolvendo a resistência ao “ativismo judicial”, na verdade consiste numa resistência à realização dos direitos de igualdade, tão solapados pelo Capitalismo de cunho liberal, que

se resultarem juros reais superiores a doze por cento ao ano”; Cf. AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de (org.). Jornada de Direito Civil. CJF, 2007 (disponível em http://columbo2.cjf.jus.br/portal/publicacao/download.wsp?tmp.arquivo=1296); indicando que aquele Conselho da Justiça Federal expede normas jurídicas vinculativas de decisões judiciais (Orientações Normativas) que podem, inclusive, confrontar dispositivos legais formais (art. 406 do Código Civil).

272

COELHO, Inocêncio Mártires. Ativismo judicial ou criação judicial do direito? In FELLET, André Luiz Fernandes; PAULA, Daniel Giotti de; NOVELINO, Marcelo (orgs.). As novas faces do ativismo judicial. Salvador: Juspodium, 2011, p. 487.

273

Ibidem, p. 486. 274

BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Em busca de um conceito fugidio – o ativismo judicial. In: FELLET, André Luiz Fernandes; PAULA, Daniel Giotti de; NOVELINO, Marcelo (orgs.). As novas faces do ativismo judicial. Salvador: Juspodium, 2011, p. 396.

preconizava o distanciamento do Estado com a Sociedade e a desregulação jurídica das relações sociais de cunho privado em prol das leis de mercado.

Verificamos, portanto, que o “ativismo judicial” só se revela perigoso (na visão de seus opositores), a justificar extensa produção doutrinária, quando a Administração se vê compelida pelo Judiciário a planejar políticas públicas, realizar escolhas alocativas de recursos, discutir democraticamente e votar leis orçamentárias compatíveis com as prioridades constitucionais, além de despender recursos e fiscalizar, com elevados níveis de eficiência, a sua aplicação; tudo no intuito de fornecer, em maior grau, oportunidades de desenvolvimento da personalidade em sua plenitude à ampla parcela da população que foi vitimada pela desigualdade material do Capitalismo pré-Welfare State.

Apenas em momento assim vem à tona a discussão acerca de um suposto abuso nas funções institucionais do Judiciário e a violação do princípio da separação dos poderes, mas que, em seu pano de fundo, oculta a verdadeira resistência dos poderes eleitos pelo voto direto em se verem despojados da condição messiânica de únicos condutores da concretização de direitos fundamentais sociais aos economicamente necessitados: seus eleitores.

O Poder Legislativo é, em sua maioria, formado por representantes de interesses econômicos, cujo desempenho político dos dias atuais culminou numa justificada descrença populacional na representatividade parlamentar, batendo às portas do Judiciário para ver realizados direitos constitucionalmente garantidos, mas que não se coadunam com as prioridades de uma desidiosa Administração Pública.

Parece possível concluir, igualmente, que o embate Capitalismo- Comunismo, que marcou a ONU durante a elaboração de um tratado internacional de direitos humanos, revelou o interesse das nações de modelo econômico liberal em não se vincular a direitos individuais que demandem um maior comprometimento de recursos orçamentários e um maior envolvimento de competências técnicas e fiscalizadoras para com o bem público; tentando, a todo o custo, privá-los de exigibilidade, preferindo incluí-los dentre aqueles de realização gradual (programatividade), a cargo dos interesses políticos e das circunstâncias econômicas (reserva do possível), mantendo-se assim um grau mínimo de intervenção estatal nas questões sociais.

Diante dessas circunstâncias, questionamos, então, quais seriam os verdadeiros interesses por trás do incômodo com um Judiciário mais comprometido

com a solução de casos difíceis, que tanto angustiam a sociedade, ao mesmo tempo em que desvelam um Legislativo inerte para com a solução daqueles mesmos problemas?

Ao que nos parece, o embate envolve mais uma questão política – a disputa de espaços e de manutenção de poder – do que propriamente jurídica; o que não justifica que nesse meio-tempo a população padeça e espere uma solução para seus problemas emergentes. Há situações que não podem esperar o jogo burocrático e político, demandando atuação imediata – como é o direito à saúde, que, em muitos casos, também põe em risco o direito à vida.

Se uma atuação judicial ativista é um mal – como querem fazer parecer alguns – será apenas um “mal necessário” e adequado ao contexto de inércia ou ineficiência dos Poderes Públicos, pois, num cenário democrático ideal, o controle judicial dos atos (e omissões) administrativas bastaria a compelir a Administração a corrigir a violação (por omissão) de direitos fundamentais, legislando para implementar determinados direito sociais a contento.

Portanto, se a questão sobre a atuação ativista do Judiciário repousa nalguns pontos eriçados pela doutrina antagônica, ao verificarmos aqueles que mais permeiam as críticas, solidarizamo-nos com as legítimas preocupações quanto a uma atuação verdadeiramente desmesurada e subjetiva por parte do Judiciário.

Tanto é assim que focaremos, em capítulo posterior, acerca de parâmetros de atuação judicial na concretização do direito social da saúde, no fornecimento de medicamentos; parâmetros tais, que, por um lado, não deixem a concretização de direitos sociais prestacionais inteiramente sob a discricionariedade administrativa – o que poderia significar, em última análise, à sua completa irrealização; mas que também, por outro lado, não permitam reinar a temida e alardeada “jurisdiocracia” ou “governo de toga”.