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3. A CONSTITUIÇÃO DE CORPOREIDADES DO CATOLICISMO EM

3.2 Unção dos enfermos e o Corpo Escatológico: mudança de um modo de ser

3.2.2 Dilemas morais e o morrer em Brumal

A fim de ampliar as representações sobre a morte e o morrer para os católicos de Brumal, incluímos no roteiro de entrevista dois dilemas morais, que consideram, de um lado, morte, saúde e valores da cosmologia católica e, de outro lado, mudanças históricas ocorridas, por exemplo, o avanço da dinâmica científica. O primeiro dilema moral diz respeito ao aborto de bebês anencéfalos e o segundo, à eutanásia.

Sobre o aborto, cabe destacar os seguintes argumentos:

Conformista mulher: Aí só porque tá nova, fez o que não deve, vai e tira o menino, então assim, hoje em dia com o tanto de informação que tem, tanto de precauções existe, então eu não acho certo abortar não e outra também se a pessoa engravidou era pra engravidar eu penso assim. Então porque ela vai tirar? Num é certo isso, pra mim, e eu penso assim.

Conformista homem: Mesmo nessa situação eu sou contra ainda, porque a criança é uma alma pura, então ela não é culpada, ela merece nascer, viver, todo mundo tem esse direito. Falar que você é totalmente contra ou totalmente a favor é complicado. Observante mulher: Eu penso assim, tudo bem, vai morrer, eles foram muito na questão do risco para a mãe e que é inevitável a criança morrer, mas a gente vê que de vez em quando alguns casos tidos como inevitáveis aconteceram. E outra criança é sempre alegria, sempre une a família, independente se ela tem uma doença ou não. Aí você pega uma criança anencefela, a família vai se reunir e unir em torno dela. E também tem o sofrimento que edifica, por mais que seja difícil, mas de repente a criança vai dar uma alegria muito grande pra família.

Devoto: Voltando no que a bíblia diz: “eu vim para que todos tenham vida”, a igreja não aprova o aborto. Mas por outro lado, a gente tem que entender que será uma criança que vai vir sofredora, vai vir para vegetar, ela já vai nascer sem vida, vai levar risco para a mãe, então vale o aborto, mas isso sou eu quem acha [aparente confusão].

Devota: Eu sou contra, se Deus quis que o filho nascesse assim, é que essa condição era pra você passar, tudo tem um propósito e você vai entender isso com o tempo. Você, por exemplo, tudo que passou. Então eu acho que fazer isso, é ir contra a vontade de Deus. As pessoas, hoje acreditam muito na ciência, mas pra Deus nada é impossível e a ciência também é cheia de falhas. Enfim, eu não sou a favor do aborto em nenhuma situação, por que isso rompe com o que Deus quer, que é ser vida, dar a vida.

Diácono: Eu acho que o aborto quanto essa questão dos anencéfalos, a gente pensa sempre na condição humana, porque quantas pessoas que recuperara. Por exemplo, Beethoven, que marcou por onde passou, e queriam aborta-lo, e tantas outras pessoas. Aí nós partimos sempre do princípio, que como cristo diz: “eu vim para que todos tenham vida”. Percebe sempre nesse sentido, a vida deve ser respeitada. Como te disse, a igreja busca uma coerência, como você prega vida e a aceita o aborto. Acho que a morte deve vir natural e não provocada.

Diversidade de argumentos legitimadores também estão presentes nas falas a favor e contra a eutanásia, por meio do desligamento de aparelhos hospitalares:

Conformista mulher: Mas no meu caso, eu acho que dependendo do estado da pessoa, melhor desligar, porque a pessoa vai ficar lá sofrendo, cê ta vendo que a pessoa ta sofrendo, a pessoa não ta nem conversando eu no meu caso eu falava pra desligar. Até porque a gente gosta mesmo da pessoa, porque deixar ela sofrendo. Conformista homem: (dilema mesmo) È isso é complicado. No caso, Deus me livre e guarde, se fosse meu pai, primeiro eu não ia querer desligar por questão de amor mesmo, meu pai né? Então quanto mais eu pudesse ter meu pais vivo do meu lado, melhor. Mas segundo também, tem questão de amor também, porque é uma questão constrangedora, é ruim cê ver uma pessoa das que você mais ama sofrendo. Eu acho que por mais, que seja sofrido, a gente tem que pensar com certa frieza, para analisar isso aí e ver que o melhor pra ele, descansar, do que ficar sofrendo.

Observante mulher: Você acredita em milagres? Eu acredito [enfática]. Sou totalmente contra, mais uma vez, você pega, tem muita gente que foi dada como morta estava em coma e voltou. Vai ficar sequela, acho que todos os casos. Mas se

você desliga o aparelho você vai tá matando a pessoa é um crime. Mesmo que a pessoa esteja respirando com a ajuda de aparelho, quer dizer que ela respira.

Devoto: Então é preferível que desligue o aparelho, se for da vontade de Deus que ele saia daquela condição, ele vai sair, a gente faz oração pra ajudar e espera. E também todos nós temos o nosso dia de partir mesmo, nós não vamos ficar aqui eternamente.

Devota: Como disse antes, se Deus quis que você passasse por isso é porque existe um porque e você tem que aceitar. Outra coisa, eu conheço muita gente que tava em coma e depois de 30 dias voltou. Imagina se a pessoa tivesse desligado os aparelhos. A ciência não tem certeza de nada também. Eu sei que pra Deus não tem nada impossível, a gente tem é que ter bastante fé. E também, as pessoas tem que aprender a aceitar aquela condição, se Deus quis assim, é porque tem algum propósito e com certeza aquilo será melhor para sua vida, mas as pessoas não tem paciência pra entender isso.

Diácono: Mas ao mesmo tempo, a gente não tem certeza, do que Deus pode fazer por uma pessoa, então sempre fica aquela esperança. A Igreja acredita muito nisso, não na morte provocada, mas na morte natural, por mais que isso traga sofrimento.

Os trechos transcritos possibilitam perceber indícios do convívio, nem sempre harmonioso, entre explicações religiosas e científicas, desdobradas em configurações socioculturais atuais. Afinal, por muito tempo a Igreja deteve as explicações referentes à condição humana ou, como argumenta Montes (1998), tem perdido espaço no mercado de bens de salvação, sendo o avanço do positivismo um dos motivos para isso.

Durante as entrevistas foi possível perceber certo relativismo, principalmente para justificar a esperança em algum milagre ou na ajuda divina, diante de casos como esses:

Devoto: Outra coisa, a ciência e esses avanços todos aí. A ciência é um dom de Deus, mas tem gente que acha que é superior. A ciência tem que considerar cada caso. Então se os cientistas trabalharem com a sabedoria dos dons de Deus, eles vão saber se hora de desligar os aparelhos ou hora de continuar a fazendo alguma coisa. Eles têm que trabalhar juntos, mas tendo Jesus Cristo como guia.

Por fim, constata-se que para o católico, independentemente da categoria a que pertença, a morte é a única certeza compartilhada. Para eles, somente Deus sabe o momento certo para cada um morrer e essa condição irremediável, aparentemente triste, é amenizada em função de suas consequências e em função de quem é o falecido. Ou seja, se uma pessoa morre com idade avançada, tendo realizado ações valorizadas pela cosmologia católica, como as de fraternidade, benevolência e humildade, torna-se mais fácil aceitar sua ausência definitiva. Quando ocorre, entretanto, a morte de um jovem, devido a atos de violência e criminalidade, ou mesmo por doença, esse fato é inaceitável, entre outros motivos, por

produzir anomia no coletivo de envolvidos, de sua família e de sua comunidade. Os trechos abaixo exemplificam isso:

Devoto: Não sei se você lembra quando mãe morreu, eu estava levando ela pra Itabira, pra fazer alguns exames de rotina, ela no meio do caminho começou a passar mal, eu já liguei pro meu irmão Joãozinho que morava em Itabira e já disse que mãe chegaria lá pra ser internada. Então, reunimos os irmãos todos e fomos pra capela ficar em vigília, pedindo que se fosse da vontade de Deus que ela partisse que fosse o mais rápido possível, para que ela não ficasse sofrendo. Os filhos todos criados, os exemplos ela já tinha deixado. Assim, ela foi internada às 10 da manhã do sábado e às 10 da noite do domingo ela morreu. Voltamos à capela e oramos para agradecer [comovido]. Choramos sim, mas de saudade e não de tristeza, e alegres que pelo que ela fez, ela conseguiu uma parte perto de Deus.

Diácono: Eu acredito na salvação. Vivenciar a morte mesmo assim, não é fácil. Por exemplo, meu primo Eduardo, da mesma idade que eu, só que tomou caminhos diferentes, mas acho que se ele se arrependeu de tudo, ele conseguiu a salvação.

Ainda podemos acrescentar que “uma teodiceia plausível permite aos indivíduos integrar as experiências anômicas de sua biografia no nomos socialmente estabelecido e a seu correlato subjetivo em sua própria consciência” (BERGER, 1985, p.70). Em outras palavras, a teodiceia garante a organização da experiência mortuária como parte do nomos construído socialmente. Muito embora, os resultados provocados pela experiência social com a morte sejam de difícil mensuração. Talvez por isso, ela seja de tão grande eficácia na desorganização e nas ameaças que apresenta às estruturas de plausibilidade e legitimação. Não somente constituídas pelo catolicismo, mas todo por todo o nomos socialmente estabelecido.